LUTA DE CLASSES OU RESPEITO ÀS DIFERENÇAS? |
Historicamente,
a luta pela redução das desigualdades se fundamentou na partilha justa
da riqueza. Há alguns anos, um novo tipo de demanda articula a igualdade
ao respeito às diferenças e minorias e ao combate às discriminações.
Podemos pensar na relação dessas concepções, de forma que elas se
reforcem reciprocamente?
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por Nancy Fraser no LEMONDEBRASIL |
O “reconhecimento” se impôs como um conceito-chave de nosso tempo.
Herdado da filosofia hegeliana, encontra novo sentido no momento em que o
capitalismo acelera os contatos transculturais, destrói sistemas de
interpretação e politiza identidades. Os grupos mobilizados sob a
bandeira da nação, da etnia, da “raça”, do gênero e da sexualidade lutam
para que “suas diferenças sejam reconhecidas”. Nessas batalhas, a
identidade coletiva substitui os interesses de classe como fator de
mobilização política – cada vez mais a reivindicação é ser “reconhecido”
como negro, homossexual ou ortodoxo em vez de proletário ou burguês; a
injustiça fundamental não é mais sinônimo de exploração, e sim de
dominação cultural.
Essa mutação é um desvio que conduzirá a uma forma de balcanização da sociedade e à rejeição das normais morais universais?1
Ou oferece a perspectiva de corrigir a cegueira cultural associada a
certa leitura materialista, desacreditada pela queda do comunismo de
tipo soviético, que, cego à diferença, reforçaria a injustiça ao
universalizar falsamente as normas do grupo dominante?2
Essas perguntas revelam duas concepções globais de injustiça. Na
primeira, a injustiça social resultaria da estrutura econômica da
sociedade e se concretizaria na forma de exploração ou miséria. A
segunda, de natureza cultural ou simbólica, decorreria de modelos
sociais de representação que, ao imporem seus códigos de interpretação e
seus valores, excluiriam os “outros” e engendrariam a dominação
cultural, o não reconhecimento ou, finalmente, o desprezo.
Essa distinção entre injustiça cultural e injustiça econômica não deve
mascarar o fato de que, na prática, as duas formas estão imbricadas e,
em geral, se reforçam dialeticamente. A subordinação econômica impede de
fato a participação na produção cultural, cujas normas, por sua vez,
são institucionalizadas pelo Estado e pela economia.
Corrigir ou transformar?
A solução contra a injustiça econômica passa por mudanças estruturais:
distribuição de renda, reorganização da divisão do trabalho, submissão
das decisões de investimentos ao controle democrático, transformação
fundamental do funcionamento da economia. Esse conjunto, como um todo ou
em partes, depende da “redistribuição”. A solução para a injustiça
cultural, por sua vez, está em mudanças culturais ou simbólicas:
reavaliação de identidades desprezadas, reconhecimento e valorização da
diversidade cultural ou, mais globalmente, alteração geral dos modelos
sociais de representação, o que modificaria a percepção que cada um tem
de si mesmo e do grupo ao qual pertence. Esse conjunto de fatores
depende, pois, do “reconhecimento”.
Os dois conceitos divergem na concepção de quais são os grupos que
vivenciam injustiças. No sistema em que a prioridade é a distribuição,
são as classes sociais no sentido amplo, definidas primeiro em termos
econômicos, que sofrem injustiças segundo a relação com o mercado ou com
os meios de produção. O exemplo clássico, oriundo da teoria marxista, é
a classe trabalhadora explorada, mas essa concepção inclui também
grupos imigrantes, minorias étnicas etc. No sistema em que o
reconhecimento é prioridade, a injustiça não está diretamente ligada às
relações de produção, mas a uma falta de consideração. O exemplo mais
comum são os grupos étnicos que os modelos culturais dominantes
proscrevem como diferentes e de menor valor, assim como os homossexuais,
as “raças”, as mulheres. As reivindicações ligadas à redistribuição
exigem, em geral, a abolição dos dispositivos econômicos que constituem a
base da especificidade dos grupos, e como consequência desse processo
essas reivindicações tenderiam a promover a indiferenciação entre esses
grupos. Ao contrário, as reivindicações ligadas ao reconhecimento, que
se apoiam nas diferenças presumidas dos grupos, tendem a promover a
diferenciação (quando não o fazem performativamente, antes de afirmar
seu valor). Política de reconhecimento e política de redistribuição
figuram, portanto, em tensão.
Como, nessas condições, pensar a justiça social? Deve-se priorizar a
classe em detrimento do gênero, da sexualidade, da raça e da etnia e
rejeitar todas as reivindicações “minoritárias”? Insistir na assimilação
de normas majoritárias em nome do universalismo ou do republicanismo?
Ou será preciso tentar aliar o que resta de impreterível na visão
socialista e o que parece justificado na filosofia “pós-socialista” do
multiculturalismo?
Há duas formas de acabar com a injustiça. As soluções corretivas, em
primeiro lugar, visam melhorar os resultados da organização social sem
modificá-la em suas causas profundas. As soluções transformadoras, por
outro lado, se aplicam em profundidade às causas: a oposição se situa,
dessa forma, entre sintomas e causas.
No âmbito social, as soluções corretivas, historicamente associadas ao
Estado de bem-estar social liberal, são empregadas para atenuar as
consequências de uma distribuição injusta, deixando a organização do
sistema de produção intacta. Durante os dois últimos séculos, as
soluções transformadoras foram associadas ao socialismo: a mudança
radical da estrutura econômica que sustenta a injustiça social, ao
reorganizar as relações de produção, modifica não somente a repartição
do poder de compra, mas também a divisão social do trabalho e das
condições de existência.
Um exemplo esclarece essa distinção. Os auxílios atribuídos em função
dos recursos dos quais dispõe certo grupo, orientado geralmente ao apoio
material aos mais pobres, contribuem para cimentar as diferenciações
que levariam ao confronto. Assim, a redistribuição corretiva no âmbito
social toma a forma, nos Estados Unidos, de ação afirmativa(em
geral traduzida por “discriminação positiva”). Essas medidas buscam
garantir a minorias uma parte equitativa dos postos de trabalho e da
formação, sem modificar sua natureza ou nome. No âmbito cultural, o
reconhecimento corretivo se traduz por uma nacionalização cultural, que
se esforça por garantir o respeito a essas minorias valorizando, por
exemplo, a “negritude”, mas sem alterar o código binário branco-negro
que lhe dá sentido. A ação afirmativa pode ser vista, portanto, como uma
combinação de política socioeconômica liberal antirracista com política
cultural – no caso dos negros – blackpower.
A questão é que essa solução não ataca as estruturas que produzem
desigualdades de classe e raciais. As reacomodações superficiais se
multiplicam sem limites e contribuem para tornar ainda mais perceptível a
diferenciação racial, para dar aos mais desprovidos a imagem de uma
classe deficiente e insaciável, que sempre necessita de ajuda e até
mesmo da orientação de um grupo privilegiado; muitas vezes, essa
interação resulta em tratamento de favor. Assim, uma aproximação que
visa reverter as injustiças ligadas à redistribuição pode terminar
criando injustiças em termos de reconhecimento.
Combinando sistemas sociais universais e imposição estritamente
progressiva, as soluções transformadoras, por outro lado, visam
restaurar a todos o acesso ao trabalho, com tendência a dissociar esse
elemento da satisfação de necessidades fundamentais. Daí a possibilidade
de reduzir a desigualdade social sem criar categorias de pessoas
vulneráveis, apresentadas como necessitadas da caridade pública. Tal
aproximação, centrada nas injustiças da distribuição, contribui para a
solução de certas injustiças de reconhecimento.
Redistribuição corretiva e redistribuição transformadora pressupõem,
ambas, uma concepção universalista do reconhecimento, ou seja, a
igualdade moral das pessoas. Mas elas repousam em lógicas diferentes no
que concerne à diferenciação dos grupos.
As soluções coletivas para a injustiça cultural dependem do chamado
multiculturalismo: trata-se de acabar com o desrespeito de identidades
coletivas injustamente desvalorizadas, ao mesmo tempo deixando intactos o
conteúdo dessas identidades e o sistema de diferenciação identitária
sobre o qual repousam. As soluções transformadoras, por outro lado, são
habitualmente associadas à desconstrução. Buscam acabar com o
desrespeito transformando a estrutura de avaliação cultural subjacente.
Ao desestabilizarem as identidades e a diferenciação existentes, essas
soluções não se limitam a favorecer o respeito a alguém: mudam as
percepções que temos de nós mesmos.
O exemplo das sexualidades desprezadas esclarece essa distinção. As
soluções corretivas à homofobia são, em geral, associadas ao movimento
gay e buscam revalorizar a identidade homossexual. As soluções
transformadoras, ao contrário, se parecem mais com o movimento queer,
que busca desconstruir a dicotomia homossexual/heterossexual. O
movimento gay considera a homossexualidade uma cultura, dotada de
características particulares, um pouco como a etnicidade. Esse “modelo
identitário”, adotado em diferentes lutas pelo reconhecimento, pretende
substituir imagens negativas de si, interiorizadas e impostas pela
cultura dominante por uma cultura própria, que, manifestada
publicamente, obteria o respeito da sociedade em seu conjunto. Esse
modelo traz avanços, mas, ao sobrepor política de reconhecimento e
política de identidade, pode engendrar a naturalização da identidade de
um grupo e essencializá-la por meio da afirmação da “identidade” e da
diferença.
O movimento queer, ao contrário, aborda a homossexualidade
como correlato construído e desvalorizado da heterossexualidade: nenhum
dos dois termos tem sentido sem o outro. O objetivo não é mais valorizar
uma identidade homossexual, mas abolir essa dicotomia. O movimento gay
busca valorizar a diferenciação existente entre os grupos sexuais – como
as políticas corretivas de redistribuição do Estado de bem-estar social
o fazem para as diferenças sociais –; o movimento queerpretende problematizá-la – como o socialismo e a sociedade sem classes.
a psicologização
Ao tratar a falta de reconhecimento como um prejuízo engendrado de
forma autônoma por valores ideológicos e culturais, a corrente
identitária oculta seu vínculo com a justiça distributiva e o abstrai de
sua relação com a estrutura social. Por isso, muitas vezes seus
defensores ignoram a injustiça econômica e concentram seus esforços
unicamente na transformação da cultura, considerada uma realidade em si.
Por exemplo, esse sistema poderia negligenciar os vínculos,
institucionalizados nos sistemas de assistência social, entre as normas
heterossexuais dominantes e o fato de que certos recursos sejam negados
às pessoas homossexuais. Por outro lado, essa corrente pode interpretar a
desigualdade econômica como simples expressão de hierarquias culturais:
a opressão de classe decorre, nessa lógica, da depreciação da
identidade proletária. Como imagem inversa de um marxismo vulgar que
outrora deixava a política de reconhecimento de lado para priorizar a
política de redistribuição, o culturalismo vulgar supõe que a
revalorização de identidades depreciadas atacaria também as origens da
desigualdade econômica.
Ao modelo identitário (corretivo) se opõe o chamado modelo estatutário
(transformador): a negação do reconhecimento não é mais considerada uma
deformação psíquica ou um prejuízo cultural autônomo, e sim uma relação
institucionalizada de subordinação social, produzida por instituições
sociais. O objeto do reconhecimento não deveria ser a identidade própria
de um grupo, mas o estatuto dos membros desse grupo de pertencimento
integral ao meio social onde estão inseridos. Essa política propõe
desconstruir as duas formas conexas (econômica e cultural) de
transformar a sociedade e decifrar quais são os obstáculos à igualdade.
Não se trata, portanto, de postular direitos iguais a todos,3
mas de reivindicar a paridade da participação de todos nas relações
sociais, definir o campo da justiça social como, simultaneamente,
redistribuição e reconhecimento, classe e estatuto nas relações sociais.
Evitar a psicologização e a moralização talvez seja a chave para
construir uma estratégia coerente, que contribua para eliminar os
conflitos e contradições entre esses dois grandes modelos de luta.
Nancy Fraser
Titular da catédra Repensando a Justiça Social do Colégio de Estudantes
Mundiais da Fundação da Casa de Ciências Humanas. Autora de Les
mouvements du féminisme. De L'insurrection des années 60 au
néoliberalisme {Os movimentos do feminismo. Da insurreição dos anos 1960
ao neoliberalismo}, Lá Découverte, 2012
Ilustração: Lollo 1 Cf. Richard Rorty, Achieving our country: leftist thought in twentieth-century America [Alcançando nosso país: a esquerda pensada nos Estados Unidos do século XX], Harvard University Press, Cambridge, 1998; Todd Gitlin, The twilight of common dreams: why America is wrecked by culture wars [O crepúsculo dos sonhos comuns: por que os Estados Unidos estão mergulhados em guerras], Metropolitan Books, Nova York, 1995. 2 Cf. Charles Taylor, “The politics of recognition” [A política do reconhecimento], em Amy Gutman (org.), Multiculturalism: examining the politics of recognition [Multiculturalismo: examinando as políticas de reconhecimento], Princeton University Press, 1994. 3 Axel Honneth, La lutte pour la reconnaissance [A luta pelo reconhecimento], Le Cerf, Paris, 2000. |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 5 de julho de 2012
Igualdade, identidades e justiça social
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