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“despolitização” induz a maioria das pessoas a perceber as eleições
como o único meio de fazer política. Essa contração foi acompanhada por
um deslocamento: as eleições “acontecem” na TV e no rádio. Lá chegando,
incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo conservador,
transforma tudo em entretenimento
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por Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida no LE MONDE BRASIL |
Processos de infantilização das campanhas eleitorais sempre ocorrem nas
democracias de massa. No esforço para capturar os votos da maioria em
sociedades em que o poder político e econômico é detido por uma minoria,
algum tipo de manipulação é imprescindível. Referindo-se ao século XIX,
quando surgiram as primeiras democracias eleitorais, Eric Hobsbawm
observou as afinidades entre a era da democratização e a hipocrisia
política.1
Estudiosos sofisticados não apenas teorizaram como justificaram esse
processo, considerando-o um componente positivo de qualquer democracia
possível. Foi o caso de Joseph Schumpeter, em seu clássico Capitalismo, socialismo e democracia,2
publicado em 1942 e hoje mais influente do que nunca. Para esse autor
austríaco exilado nos Estados Unidos, é teoricamente incorreto e
politicamente arriscado levar a sério a etimologia de democracia (poder
do povo). O povo jamais teve ou terá o poder, que sempre foi e será das
elites. Nesse sentido, a democracia se define como um conjunto de
procedimentos que asseguram a concorrência entre elites organizadas em
empresas políticas, ou seja, partidos, que concorrem pela preferência do
consumidor político, isto é, o eleitor. Este, como qualquer consumidor,
não é um exemplo de racionalidade ao fazer sua escolha. Daí algumas
condições para que a democracia prospere, como, por exemplo, um debate
político que não coloque questões estruturais em pauta. E que o eleitor
deixe o eleito em paz. A este, e não àquele, o mandato pertence.
Essa concepção dita procedimental da democracia, ao traçar uma forte
analogia entre a política e o mercado (idealizando este último),
contribui para legitimar a superficialização do debate político, o
alijamento da maior parte da população de questões mais sérias e a forte
presença dos profissionais em propaganda eleitoral. É provável que o
fantasma de Schumpeter ronde as atuais eleições brasileiras,
especialmente no “horário político” da TV e nas matérias publicadas pela
grande imprensa. Até porque, como se trata de pleitos municipais, é
mais fácil a disseminação da ideia de que basta um bom gerente para que
os principais “problemas” estejam em boas mãos.
Não exageremos nas simplificações. Para além da manipulação – e para
que esta funcione em maior ou menor grau –, existem fortes determinações
estruturais. É o caso da construção altamente ideologizada de uma
comunidade de indivíduos-cidadãos livres e iguais, inclusive quanto ao
acesso à informação política, em sociedades marcadas por ferozes
relações de exploração e dominação. Uma propaganda do TSE que apresenta o
eleitor como “patrão” expressa, de modo enviesado e um tanto confuso,
essa construção. Não ficaria mais próximo da vida como ela é apresentar a
maioria dos eleitores como “não patrões”?
Essa maioria não patronal é o grande alvo do “horário político”. A ela
se dirigem os candidatos travestidos de super-heróis, prometendo, a cada
quatro anos, resolver os “problemas” de moradia, assistência
médico-hospitalar, creche, esgoto, água tratada, emprego, habitação etc.
Só não explicam a origem de seus superpoderes ungidos de espírito
público e amor ao próximo, bem como por que, historicamente, tudo isso
desaparece assim que se encerra a estação de caça aos votos.
Na vida real, os “patrões” não costumam rasgar dinheiro. Não gastam seu
precioso tempo assistindo ao show dos horários eleitorais em que um
promete mudar aeroportos ou erguer aerotrens; outro afirma com a maior
seriedade que eliminará congestionamentos de trânsito aproximando locais
de trabalho e de moradia (e vice-versa); um terceiro garante que
nomeará um ministério do nível de ministros (grito socorro?) e que os
serviços públicos funcionarão porque ele aparecerá onde não o esperam
(Jânio vem aí?).
Nenhum se refere a um aspecto importantíssimo para a aplicação de
políticas, inclusive no plano municipal: nessa situação de crise
capitalista que se aprofunda e de forte comprometimento das contas
nacionais com o pagamento da dívida pública a boa parte dos grandes
“patrões” (bancos, fundos de pensão, grandes empresas industriais
brasileiras e transnacionais), é quase nula a capacidade do Estado, em
seus distintos níveis, de colocar em prática políticas sérias,
especialmente sociais. Poupa-se o eleitor desse assunto enfadonho, até
porque – reza o saudável senso comum – crise capitalista não é assunto
de prefeito ou vereador. Melhor destacar que é amigo da presidenta e do
governador; que é administrador experiente e competente; que, assim como
foi o maior ministro de tal área, será o maior prefeito. E que, ao
contrário do adversário, não é amigo do Maluf.
É claro que existem diferenças políticas entre as candidaturas
relevantes, aí se incluindo partidos cuja competitividade eleitoral é
ínfima. E, mesmo em seus melhores momentos, as disputas eleitorais
filtram e refratam os principais interesses das forças sociais. Mas um
importante aspecto comum em uma cidade altamente politizada como São
Paulo consiste no peso extraordinário que adquire a interpelação do
eleitorado como essencialmente passivo. Lutas populares, nem pensar.
Basta o voto (claro que em mim!) para mudar o destino da maioria
daqueles a quem a propaganda eleitoral se dirige. Um grande autor, em
sua fase juvenil, fez uma crítica mordaz desse duplo mundo, o
“celestial”, onde, apagadas as diferenças, todos viram “cidadãos”; e o
“terreno”, onde o homem é o lobo do homem.3 Nas grandes
metrópoles brasileiras, essa dupla vida nos incomoda quando deparamos
com homens e mulheres pobres, expostos ao sol inclemente deste inverno
surreal, segurando cartazes de candidatos com os quais não têm nenhuma
afinidade político-eleitoral, até porque isso é o que menos importa.
Para quem paga, é tirar partido de mão de obra sobrante e, portanto,
barata. Para quem segura o rojão, também tanto faz ser placa de
empreendimento imobiliário ou de qualquer “político”. Melhor do que
“compro ouro”. Para todos nós que passamos de carro, por que se
indignar? No melhor dos casos, cumpriremos nosso dever cívico,
depositando o voto na urna, e esperamos – quem sabe até cobrando – que
as “autoridades” resolvam a situação dessa gente com as quais (situação e
gente) nada temos a ver.
Exatamente devido aos impactos que produz no sentido de desorganizar a
ação coletiva e autônoma dos dominados – inclusive no que se refere à
produção e circulação de informações –, esse processo de
“despolitização” não é politicamente neutro. Ao contrário, contribui, em
São Paulo ou em São Luís, para a reprodução de um dos padrões de
dominação e exploração mais predatórios do planeta.
Também cabe evitar a ideia igualmente simplista de que o esforço de
manipulação opera sobre um terreno vazio e passivo (um espécie de folha
de papel em branco) e sempre obtém os mesmos resultados. No fundamental,
o que está em jogo é, em cada conjuntura, a maior ou menor capacidade
de intervenção popular na vida política.
Essa capacidade sofreu drástica redução nos últimos anos. Partidos
antes combativos passaram por fortes mutações, ao longo das quais
obliteraram seus espaços de participação (inclusive debates internos).
Políticas sociais importantes para, em caráter emergencial, melhorar as
condições de vida de populações que estavam em extrema miséria tampouco
ampliaram aquela capacidade. Ao contrário, reforçaram a percepção de que
o governante é um pai (ou uma mãe), com especial carinho para com os
mais desprotegidos. E, como vimos, no plano nacional, sem tempo para
negociar com a totalidade dos professores das universidades federais
envolvidos numa ação coletiva (uma greve) durante mais de cem dias; e,
no estadual/municipal, o bárbaro massacre dos moradores do Pinheirinho,
em São José dos Campos (SP), também organizados na luta política por
direitos constitucionais elementares. Enquanto isso, o especulador não
tem do que se queixar, e um candidato “do bem” se vangloria de, quando
secretário estadual da Educação, jamais ter deparado com uma greve de
professores.
Sorte dos trabalhadores e trabalhadoras que não se metem em confusão, até porque esse processo de despolitização segue pari passucom
o de judicialização da vida política. Mas por que nos preocuparmos?
Afinal, a essência da maioria dos candidatos pode se resumir no refrão
de um deles: passa o tempo todo pensando nos pobres.
Com essa drástica redução da capacidade de ação popular coletiva, não é
mais necessário, como foi em 1989, que um importante dirigente
industrial, Mário Amato, alerte que, caso determinado candidato
vencesse, 800 mil empresários abandonariam o Brasil; ou, no pleito
seguinte, outro peso pesado dos industriais advertisse que a eleição do
mesmo candidato seria o equivalente a uma bomba de hidrogênio despencar
sobre este país abençoado por Deus. Na campanha eleitoral de 2002, o
marqueteiro-mor do mesmo candidato, ao coordenar importantes figuras
políticas na feitura de uma propaganda televisiva, disse para todos
erguerem a mão em forma de L. “A mão direita ou a esquerda?”, perguntou
alguém. “Como quiser”, respondeu o pragmático guru, “quem for de
direita, com a direita; quem for de esquerda, com a esquerda.”4
Não por mera coincidência, assinou-se a “Carta aos brasileiros”; apesar
de algumas rusgas passageiras, houve forte apoio empresarial; e o
partido concluiu sua passagem para a idade da razão.
Os impactos “despolitizadores” sobre os processos induzem a grande
maioria das classes populares a perceber as eleições como o único meio
legítimo de fazer política. Essa contração foi acompanhada por um
deslocamento: as eleições “acontecem” principalmente na televisão e no
rádio (as chamadas redes sociais ainda engatinham nesse processo). Lá
chegando, incorporaram-se a um dispositivo que, além do conteúdo
abertamente conservador, transforma tudo em entretenimento. Em outros
termos, o centro da atividade eleitoral mais visível se transfere para
meios de comunicação tremendamente oligopolizados e que reproduzem, na
imensa maioria das transmissões, (novelas, noticiários, propagandas)
processos de infantilização. Lutas pelo aprofundamento da participação
política no Brasil requerem democratizar e diversificar os meios de
comunicação.
Quando Schumpeter escreveu seu célebre livro sobre democracia, o
desfecho da Segunda Guerra Mundial, fortemente articulada a uma crise do
capitalismo, ainda estava incerto e restavam poucas democracias
liberais no planeta. Em um livro schumpeteriano bem mais simplista, A terceira onda, Samuel Huntington se congratulava, em 1993, pelo espraiamento desse regime por grande parte do planeta.5
Todavia, no atual contexto de profunda crise capitalista, tendem a
aumentar os desencontros entre esse regime e a participação popular. Se
Schumpeter e tantos outros negam a possibilidade do poder do povo,
diversos estudiosos, como Slavoj Žižek,ao abordar uma questão bem mais
específica, recorrem a uma expressão cada vez mais em voga para nos
referirmos a essa reviravolta sinistra: a democracia se volta contra os
povos.6
Diante dos riscos de que o modelo schumpeteriano de democracia chegue
ao seu esgotamento no bojo da atual crise, é urgente inventar novas e
profundas formas de efetiva participação popular na política.
Resta saber se isso é possível sem reinventar a sociedade.
Lúcio Flávio Rodrigues de Almeida
é professor do Departamento de Política da PUC-SP
Ilustração: Daniel Kondo
1 E. Hobsbawm, A era dos impérios, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1988, p.130.
2 J. A. Schumpeter, Capitalismo, socialismo e democracia, Fundo de Cultura, Rio de Janeiro, 1961.
3 Karl Marx, A questão judaica,Boitempo, São Paulo, 2010.
4 A sequência aparece no documentário Entreatos,de João Moreira Salles.
5 Samuel Huntington,A terceira onda: a democratização no final do século XX, Ática, São Paulo, 1994.
6 Slavoj Žižek, “Democracy versus the people. A new account of Haiti’s
recent history shows how the genuinely radical politics of Lavalas and
its”, New Statesman, 14 ago. 2008.
|
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
segunda-feira, 15 de outubro de 2012
"Pode deixar que eu cuido disso": a infantilização do voto
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