“Desinformar-se e enfrentar a investida
dos meios de comunicação capitalistas”
Jornalista que acompanha os
zapatistas fala sobre a importância do trabalho de contra-informação
para as batalhas que se passam “abajo y a la izquierda”
Das periferias para o
centro, a comunicação alternativa vai buscando brechas para transferir o
poder da palavra dos maiores aos pequenos. Modificando a ordem dos
caminhos da comunicação, o movimento zapatista, do México, experimentou,
na década de 1990, a possibilidade de, por meio da internet, ser ouvido
no mundo desde sua realidade local.
Uma das protagonistas dessa
ação foi Gloria Muñoz Ramírez, jornalista que acompanha o Exército
Zapatista de Libertação Nacional (EZLN)desde seu levante em 1994, no
estado de Chiapas. Gloria segue militando na contra-informação. Seu mais
novo projeto é dirigir a revista mensal Desinformémonos.
Em
janeiro deste ano, o Brasil de Fato iniciou um intercâmbio de conteúdo
com a publicação. Com versão na web (
http://desinformemonos.org), a
iniciativa envolve colaboradores de inúmeras partes do planeta e é
traduzida para o português, grego, italiano, inglês, francês, alemão, e a
língua indígena tseltal, bastante falada no sul do México.
A
seguir, a diretora de Desinformémonos fala sobre esse projeto
internacional e a experiência acumulada em anos junto aos zapatistas.
Brasil
de Fato – Pode nos falar um pouco de como nasceu o projeto
Desinformémonos?
Gloria Muñõz – Consideramo-nos
uma ferramenta de luta por um mundo melhor, ou seja, por um mundo
justo, livre e democrático. Aderimos às batalhas que se passam “abajo y a
la izquierda”, à margem do poder e dos poderosos. Estamos do lado da
autonomia dos povos, pelo direito a decidir sobre nossos próprios
destinos. Somos, sem ambiguidades, fruto de uma luta que, desde 1º de
janeiro de 1994, nos transformou: o levantamento do Exército Zapatista
de Libertação Nacional (EZLN). E é no terreno da “desinformação” que
atuaremos.
Por que “Desinformémonos”?
Pegamos
o nome emprestado de Mario Benedetti [poeta e escritor uruguaio morto
em maio do ano passado]. Estávamos preparando esse projeto quando fomos
surpreendidos pela triste notícia de sua morte. Pusemos pra tocar um CD
com seus poemas, gravado para La Casa de las Américas, como uma singela
homenagem a esse grande poeta e lutador das causas justas. De repente,
no meio da incipiente edição dessa revista, lá estava o poema:
desinformémonos hermanos/ hasta que el cuerpo aguante/ y cuando ya no
aguante/ entonces decidámonos/ carajo decidámonos/ y revolucionémonos.
Depois,
veio o jogo de palavras. Desinformar-se e enfrentar a investida dos
grandes meios de comunicação capitalistas, aqueles que nos dizem o que,
como, quando, onde e por que, do ponto de vista – e para benefício – dos
poderes políticos e econômicos, dirigido àqueles que se creem os donos
do mundo. “Desinformémonos”: desfazer-nos do que nos oferecem e
munirmo-nos de Outra Informação, geralmente invisível, na qual os
depoimentos dos “ninguéns”, como diz Eduardo Galeano [jornalista e
escritor uruguaio] são o que nos dá sentido e corpo, horizonte e
destino. Os povos têm suas próprias vozes e eles mesmos se encarregam de
que os demais as escutem. O que nos propusemos em Desinformémonos é ser
olhado e ouvido... caixinhas de ressonância. Escutar, como diria o
estimado escritor [inglês] John Berger, “as vozes da terra... sempre em
baixo”. Sem confundir, como ele mesmo nos alerta, “a intenção deliberada
de desinformar com o estar desinformado”. A resistência, nos disse no
processo de inauguração desse espaço, “está em saber escutar a terra. A
liberdade é descoberta pouco a pouco, não do lado de fora, mas nas
profundidades da prisão”.
Quem são os
colaboradores do projeto?
Bom, somos pessoas de muitas
partes do mundo. Nosso ponto de vista pretende ser global e abarcar
lutas e resistências dos cinco continentes. Atualmente, tocam esse
projeto homens e mulheres do México, Argentina, Brasil, Estados Unidos,
Alemanha, França, Espanha e Itália, com colaboradores na Grécia,
Palestina, Turquia, Irã, Bélgica, Chile, Grã Bretanha, República Árabe
Saaráui e Honduras.
Em sua experiência junto aos
zapatistas, foi possível acompanhar como eles utilizaram de maneira
muito hábil a internet para comunicar suas posições para todo planeta.
Como isso se deu?
A ideia do uso da internet pelos
zapatistas nasceu como um mito que, em muitos sentidos, persiste ainda
hoje. Em 1994, a internet ainda era algo muito incipiente e os primeiros
comunicados do EZLN eram xerox distribuídos a nós jornalistas na cidade
de San Cristóbal de las Casas, em Chiapas. Com o tempo, um exército de
mulheres e homens anônimos se incumbiu de difundir as palavras
zapatistas pela internet. Na selva em que vivem os zapatistas, não havia
sequer luz, que dirá um computador. Assim, o mérito da difusão da
palavra zapatista no ciberespaço não é propriamente zapatista, mas de
todos que acreditaram nesse movimento e fizeram circular seus
comunicados e pronunciamentos. Atualmente, algumas comunidades em
resistência têm acesso à internet, mas isso é algo relativamente novo e
não pode ser generalizado.
De que maneira a
internet pode fazer frente aos meios de comunicação tradicionais em
favor dos movimentos sociais?
Esse ciberespaço, ainda
que criado pela elite, tem servido de ferramenta, vínculo e ponte para
os setores da base nos últimos quinze anos. As lutas e a resistência dos
povos campesinos e indígenas, dos migrantes, trabalhadores, estudantes,
jovens e um longo etcétera, transitam pela rede produzindo
identificações onde menos se esperava, isso apesar do acesso à internet
ainda estar longe de ser uma realidade, ao menos nos países do chamado
Terceiro Mundo. Mas isso não é necessariamente uma carência.
Provavelmente não necessitam dessa “conexão”. O que desejamos com
Desinformémonos é aproveitar esse espaço virtual, não apenas por falta
de recursos para nascer em papel, como gostaríamos, mas porque
reconhecemos nesse meio uma alternativa para conhecer o outro, a outra,
suas histórias e tragédias, de um lado ao outro do planeta. Desejamos,
como diria o mestre do jornalismo [bielo-russo] Ryszard Kapuscinski,
“converter-nos imediatamente, desde o primeiro momento, em parte de seus
destinos”. Afinal, somos os mesmos, as mesmas. E estamos na mesma
situação. Entretanto, a internet, ao menos no México e em muitos países
da América Latina, não é um meio acessível para toda a população. Nas
áreas rurais e nos bairros de periferia, as pessoas não estão conectadas
à rede. Essa é a razão, creio, de que o principal meio de comunicação
popular, por excelência, continua sendo o rádio e de que, até agora, não
haja espaço para se substituir a comunicação alternativa em papel.
Insisto que estou falando do mundo dos de baixo.
É por isso
que na Desinformémonos criamos uma revista de bairro e comunitária em
PDF, com o objetivo de que seja distribuída em comunidades que não têm
acesso à internet. Essa singela revista pode ser distribuída como
“folhas soltas” ou pregada em algum muro como jornal-mural.
Com
a dificuldade de transmitir mensagens ao grande público, como os
movimentos sociais são mostrados hoje nos grandes meios de comunicação
mexicanos?
Os movimentos sociais não aparecem nos
grandes meios de comunicação do México e, quando aparecem, são
satanizados e desprestigiados. Poderia dizer que apenas o jornal La
Jornada (considerando os meios de comunicação massiva, não os marginais
nem alternativos) dá espaço para as lutas sociais do país. É por isso
que, cada vez mais, os movimentos vêm criando seus próprios meios, para
que sua palavra seja conhecida. Ao mesmo tempo, crescem os meios
alternativos, livres e independentes, ainda que com muitas limitações.
Nas
revoltas de Oaxaca, a tomada das rádios foi a primeira ação dos
movimentos mobilizados. O que isso pode significar?
A
Assembleia Popular dos Povos de Oaxaca (APPO) não apenas tomou as rádios
e até mesmo a televisão comercial; ela criou uma rede de meios de
comunicação. Essa rede serviu não só para difundir suas causas, mas para
convocar, organizar as barricadas e as marchas e, sobretudo, a defesa
da ocupação que mantiveram no centro da cidade. Tomar as rádios e a
televisão foi muito significativo para mostrar a força popular do
movimento, mas foi ainda mais relevante a forma como conseguiram
conduzir a relação com as rádios alternativas, principalmente com a
Radio Plantón, que é hoje um exemplo do grande poder que um meio dessa
natureza pode significar, de “abajo y a la izquierda”, de dentro do
próprio movimento.
Você acredita
que os movimentos de esquerda conhecem a importância da comunicação em
um processo de mudança?
Acredito que os movimentos de
esquerda estão cada vez mais conscientes da importância de uma
comunicação do e para o movimento. Entretanto, acredito que enfrentamos
grandes desafios, pois muitas vezes não comunicamos entre nós mesmos o
que está acontecendo, não fazemos grande esforço para ultrapassar as
barreiras impostas e fazer com que nossa palavra chegue “a outros como
nós”. Na minha opinião, esse é um grande desafio, e devemos nos
preocupar em não estar à margem, mas em atingir cada vez mais gente, sem
preconceitos nem esteriotipização. Nunca sabemos onde ou quando haverá
ressonância, temos que procurar por isso permanentemente. Ao mesmo
tempo, acredito que outro desafio é a manipulação da linguagem feita
pelos movimentos sociais de esquerda. Acho que devemos nos arriscar
mais, jogar com as palavras e com as imagens, não ser tão sérios, mas
ter a capacidade de rirmos, de sermos irônicos, de dar espaço ao jogo e à
palavra lúdica. Esse, finalmente, foi outro dos ensinamentos dos
zapatistas que, desde o princípio, comunicam-se com uma linguagem
diferente, que incluem desde um conto, até uma piada ou uma canção.