Cultura: Berlim em frenesi
O 58° Festival de Cinema é um espelho fiel de Berlim hoje, atraindo milhares de fãs e cinéfilos da Europa e do mundo inteiros, uma prova da vitalidade dos processos culturais dessa cidade que, enfim, sobreviveu a tantas guerras e autoritarismos que a devastaram durante tanto tempo.
Flávio Aguiar - agencia carta maior
Há um frenesi nas ruas e em muitos cinemas de Berlim. As pessoas estão nervosas, alteradas, ainda que tudo aconteça com uma certa discrição, como é de costume nesta cidade por onde nos últimos 200 anos de algum modo passaram quase todas as revoluções e guerras da Europa, inclusive a Guerra Fria.
De 7 a 17 deste mês de Fevereiro acontece a 58ª edição da Berlinale, o Festival de Cinema de Berlim, um dos mais importantes da Europa e do mundo, que acorda o Urso de Ouro como prêmio máximo, já vencido pelo brasileiro "Central do Brasil". O Urso é o símbolo de Berlim, e está na bandeira da cidade.
O centro nervoso do Festival fica na hoje algo feérica Potsdammer Platz, símbolo da reunificação da cidade e da Alemanha depois de 1989, quando caiu o muro que a dividia em Ocidente e Oriente, capitalismo e comunismo. Nas imediações se concentram os artistas, cineastas e músicos esperados. Por ali, no saguão de entrada de um enorme e moderníssimo centro comercial, se compram as entradas para os filmes. Isso pode significar até duas horas ou mais numa fila, e várias vezes, pois as entradas são postas à venda apenas três dias antes dos filmes passarem. Freqüentemente a espera termina em frustração, pois há filmes disputadíssimos, com as entradas se esgotando rapidamente. E vende-se apenas o máximo de dois ingressos por pessoa para cada espetáculo.
Tal interesse tem raízes históricas compreensíveis, além do enorme interesse que o cinema gera nesta cidade, que está longe da situação de outras em que os cinemas (como em muitas cidades brasileiras, por exemplo) foram fechando nas últimas décadas, dando lugar a igrejas e bingos. Este é um fenômeno berlinense a ser estudado.
Desde que renasceu literalmente dos escombros da Segunda Guerra, Berlim passou 44 anos de sua vida ocupada pelos vencedores e dividida entre as potências que emergiram ou sobraram naquele conflito. A partir de 1961 a construção do Muro selou a divisão da cidade, e deu a Berlim Ocidental uma condição que em algum lugar Ignácio de Loyola Brandão chamou de “vida numa ilha”, ou algo assim. Era verdade. Berlim Ocidental estava encravada no meio da Alemanha Oriental. Era mais simples o cidadão ir para o aeroporto e de lá para Paris ou o Brasil, do que passar de um lado para o outro do Muro, e voltar.
Quer dizer: a Berlinale era um dos momentos em que o mundo vinha até Berlim. Colocada no meio das duas Europas, Berlim atraía cinemas e cineastas do mundo inteiro, o que se reflete inclusive em alguns aspectos desta 58a. edição, de que falarei mais adiante.
São cerca de 200 filmes exibidos em onze dias, dez, na verdade, descontando-se o da abertura, em que foi exibido com grande sucesso o documentário de Martin Scorsese sobre os Rolling Stones, “Shine a Light”, a partir de uma apresentação da banda de sexagenários em Nova Iorque, em 2006.
O festival é muito complexo. Além da competição oficial, onde concorrem 26 filmes, inclusive o controvertido brasileiro “Tropa de Elite”, de José Padilha, há “seções”, como “Panorama”, cujo nome revela sua natureza de recolha do cinema mundial, “”Fórum”, aberto ao cinema mais inovador e também experimental, seções destinadas às crianças e adolescentes, aos jovens talentos, além de uma retrospectiva de Luis Buñuel e uma homenagem a Francesco Rosi.
Uma das atividades mais importantes da Berlinale é a das oficinas, em que diretores e artistas de cinema, roteiristas, críticos e técnicos se encontram com jovens cineastas para troca de experiências. Nesta edição há profissionais como Mike Leigh, Stephen Daldry e o legendário Andrzej Wajda, de clássicos como “Cinzas e diamantes” e “O homem de mármore”, do cinema polonês.
Nas retrospectivas há uma mostra de filmes norte-americanos sobre a guerra do Vietnã, tema mais que oportuno neste momento de novas guerras a fundo perdido, como a do Iraque e a do Afeganistão, em que tropas da OTAN e aliados se atolam cada vez mais, como naquela do passado aconteceu com os EUA. Essa mostra faz uma retrospectiva colateral do Congresso sobre o Vietnã, realizado pelo movimento estudantil de Berlim em fevereiro de 1968, acontecimento que deflagrou a série de confrontos e desafios da juventude na Alemanha, na Europa e no mundo inteiro, que fizeram daquele ano um dos anos legendários da história do século XX: quem viveu, e se venceu ou perdeu, até que não importa: viu e participou.
Não me arriscarei a fazer previsões sobre favoritos para o Urso de Ouro. O júri, formado na maioria por cineastas e artistas europeus, é liderado por Costa-Gravas, e tem 26 filmes de peso pela frente, entre eles o já citado “Tropa de Elite”, que chega precedido pelo impacto das polêmicas que despertou no Brasil. Disso e dos outros filmes brasileiros, trataremos mais adiante: na semana que vem há uma coletiva com diretores e cineastas brasileiros na Embaixada do Brasil, na quarta-feira, às cinco da tarde.
Muitas estrelas são esperadas em Berlim: Julia Roberts, Madonna... Mas dando prova de sua abertura mundial, as estrelas que têm maior expectativa nessa 58ª edição não vêm de Hollywood, sequer da Europa: são Shah Rukh Khan, ator de Bollywood, na Índia, centro cinematográfico que produz 700 filmes por ano, e a nigeriana Kate Henshaw-Nutall, de Nollywood, da Nigéria, que, como sua congênere indiana, emerge como uma nova potência cinematográfica.
O Brasil está presente com oito filmes, além do já citado: “Mutum”, de Sandra Kogut, “Cidade dos homens”, de Paulo Morelli, “Maré, nossa história de amor”, de Lúcia Murat, e os curtas “Café com leite”, de Daniel Ribeiro, “Ta”, de Felipe Sholl, “Dreznica”, de Anna Azevedo, e dois filmes que serão exibidos na curiosa mostra “Cinema culinário”: “Mr. Bené góes to Italy”, de Manuel Lampreia, e “Estômago”, de Marcos Jorge. Nesta seção, além da exibição dos filmes, entre eles “O discreto charme da burguesia”, de Buñuel, haverá comentários de cozinheiros ;profissionais e degustação de pratos inspirados pelos filmes.
Cosmopolita e variegada, a Berlinale é um espelho fiel da Berlim de hoje, atraindo milhares de fãs e cinéfilos da Europa e do mundo inteiros, uma prova da vitalidade dos processos culturais dessa cidade que, enfim, sobreviveu a tantas guerras e autoritarismos que a devastaram durante tanto tempo. Uma homenagem aos poderes criativos e solidários da humanidade, que, ainda que precários, é o que temos de melhor para combater os destrutivos e devastadores.