Estreou na última quarta-feira, o Programa Manos e Minas na TV Cultura. Transmitido às 19h30, e com duração de uma hora, surge como um dos principais resultados da reformulação geral do canal, após um ano da gestão liderada Paulo Markun, presidente da Fundação Padre Anchieta. Além do Manos e Minas, outras novidades surgirão nos próximos meses, numa estratégia de retomar o público jovem, segundo declarou Markun à imprensa.
Tendo como slogan “TV que faz bem”, a Cultura começou certeira sua nova fase. Apresentado pelo rapper Rappin Hood, que já ancorava o quadro Mano a Mano, no Metrópolis, o Manos e Minas é um gol de placa. Logo em sua primeira edição, o programa mostrou para que veio. Jorge Aragão foi a atração de palco e mandou bem, escolhendo de seu repertório canções que tinham muito a dizer ao público presente ali e no sofá - como o samba Mutirão de Amor. Rappin Hood comandou a cena com uma excepcional desenvoltura e a ginga e simpatia de sempre. No palco, duas crews de dançarinas, uma de manos e outra de minas. Lá no fundo, o veterano Binho, mandava um grafite ao vivo. A animada platéia era composta, na sua maioria, por adolescentes e jovens ligadas a ONGs como a Casa do Zezinho, da Zona Sul, e a movimentos culturais como o Elo da Corrente, de Pirituba.
O programa é dividido em quatro blocos, cada um com uma entrada externa — todas muito interessantes. A primeira foi uma reportagem sobre o rango comercializado na porta de estádio de futebol. Com o microfone na mão e muito dinamismo, a DJ Juju Dendem percorreu várias barracas instaladas nas imediações do estádio do Morumbi, experimentando a culinária que alivia a fome dos torcedores. Na mesma linha futebolística, o próprio Rappin Hood, corintiano assumido, entrevistou Dentinho, atacante do Timão em pleno Parque São Jorge. O jovem craque falou de sua origem humilde na periferia da Zona Oeste e revelou uma curiosidade. Ele tem o nome dos pais tatuado em cada um dos braços, razão pela qual beija-os na comemoração dos gols. “Família é tudo”, arrematou sabiamente Rappin Hood.
Uma esteticista conta como montou, em seu salão, uma biblioteca. Jorge Aragão comenta o que mudou na circulação dos produtos culturais. São cenas de Manos e Minas
No segundo bloco, entra um quadro permanente chamado Busão Circular Periférico — um dos pontos altos do programa. O escritor e agitador cultural Alessandro Buzo percorre uma quebrada acompanhado de uma liderança local que desvenda a cena cultural existente ali. Gostei da pauta dessa primeira inserção. O programa poderia ter começado com o Samba da Vela ou o Sarau da Cooperifa, movimentos já consagrados. Mas Buzo e a DGT Filmes, produtora responsável pelo quadro, fugiram do óbvio. Numa viagem ciceroneada por Michel Ciriaco, as câmeras percorreram os arrabaldes de Pirituba. Buzo conversou com os rappers do grupo RZO e depois visitou um salão de cabelereiro que tem uma biblioteca comunitária, ao invés de das típicas revistas encontradas nesses estabelecimentos. Soninha, dona do salão, conta que a motivação em montar o acervo veio de sua participação no Sarau Elo da Corrente, que rola todas as quintas à noite no Bar do Santista. Buzo foi lá conferir. Bacana. O quadro mostrou a diversidade e a força do sentido de pertencimento do povo periférico. Foi bola num canto e goleiro no outro.
Na volta ao auditório, mais um samba de responsa. O Jorge Aragão é um tipo carismático de fala mansa. Conta que vendeu mais de 3 milhões de CDs como se fosse algo natural. Poderia ser arrogante, presunçoso. Que nada, o sambista, quando é bamba de verdade, não bota salto alto. E o cara é consciente em relação ao que se passa na indústria fonográfica. “Hoje não se vende mais disco; hoje se negocia música”, esclareceu, atento aos novos tempos. Na sua enxuta e afinada banda, destaque para uma mulher muito bamba que toca diversos instrumentos de percussão, entre eles a cuíca, pouco usual entre as minas.
Mais uma intervenção externa. Com um sugestivo nome de Interferência, entra em cena o quadro do escritor Ferréz. O autor de Manual Prático do Ódio, recebeu um convidado para uma entrevista tipo “papo cabeça”, na tradicional Barraca do Saldanha, no Capão Redondo. Surpreendeu-me o entrevistado: Chico César. E a escolha foi ótima. Chico anda sumido das paradas de sucesso e essa questão dominou o agradável bate papo. “Seu afastamento da mídia se dá em função de suas posições políticas?”, perguntou Ferréz. O cantor paraibano aproveitou a deixa para falar de seu engajamento político, que vem desde os tempos de faculdade, em João Pessoa. Lembrou que o GeGê, seu irmão, é um importante líder do movimento por moradia no Brasil e criticou a elite paulistana com muita propriedade, sem perder a serenidade. Ferréz se saiu bem como entrevistador. Ele faz a linha do Abujanra, apresentador do programa Provocações, também na Cultura. Assim como o Buzo, lhe falta um pouco mais de familiaridade com as câmeras, algo que os dois rapidamente desenvolverão tão bem quanto a habilidade que têm na escrita. Pena que o Interferência será apenas quinzenal.
No retorno ao palco, Rappin Hood demonstra todo o seu carisma e habilidade na relação com o público. Anuncia as caravanas, agita a platéia. Bota os B Boys e B Girls para dançarem. Ao anunciar a próxima reportagem, feita pela própria equipe do programa, faz uma enquete entre os presentes: “Quem aqui está desempregado?”, pergunta. Um monte de braços se levanta como se fosse uma ola. O apresentador acaba dando o microfone para um dos poucos adultos ali sentados. Combinado ou não, o depoimento do cara foi crucial. Não anotei o nome, mas o entrevistado, pessoa já por volta de seus 50 anos, relatou seu drama. Ex-presidiário, ativista da Pastoral Carcerária, morador da Cidade Tiradentes, sofre enorme preconceito quando procura emprego, em virtude de sua passagem pela cadeia. Roda o VT e aparece o Fubá, apelido do MC Roberto, jovem da periferia da Zona Sul que fala de seu corre para descolar um trampo.
Assistia às gravações do Fábrica do Som. Vi surgirem bandas como Ultraje a Rigor, Ira! e Paralamas. Mas tirando o Clemente, cantor dos Inocentes, não me lembro de ver negro, no palco, ou na platéia
As câmeras voltam-se novamente para o palco no Teatro Franco Zampari, onde a socióloga Carla Corrochano, da ONG Ação Educativa, analisa o desemprego entre os jovens e acentua que a pobreza e a questão racial aprofundam ainda mais as dificuldades na busca do primeiro emprego. Conclui: “O jovem pobre da periferia não tem que se sentir culpado e baixar a cabeça”. Fechando a discussão, Rappin Hood volta-se para o Jorge Aragão a fim de retomar a música. Aí veio uma surpresa. O sambista ao invés de responder a pergunta feita pelo apresentador, mudou de assunto. Voltou à questão do desemprego juvenil entre os mais pobres. No ato, ele propôs uma parceria com o Manos e Minas. Vai abrir vagas temporárias na sua produção para acolher jovens indicados pelo programa. Olha que louco. Os garotos e garotas vão trampar por dois ou três meses, aprenderão um ofício e terão um pouco da tão exigida experiência. Grande Jorge Aragão! O cara mostrou porque foi a atração de palco do primeiro programa. A periferia é isso. Um ajudando o outro, fortalecendo a comunidade. Chega na quebrada no sábado à tarde pra você ver. Tem sempre um mutirão para encher laje. Concluído o trampo, a galera toma uma birita e a feijoada é servida aos valentes ao som de um bom samba do Aragão e de outros bambas.
Antes de anunciar o encerramento, Rappin Hood chama para conversar o grafiteiro Binho, que durante a gravação pintou um painel. Perguntado se é possível viver de grafite, ele tangenciou, respondendo que é possível viver de arte. Grafite seria outra coisa. Não entendi. Complementavam o cenário do palco alguns trabalhos da dupla de grafiteiros Osgêmeos. Os irmãos Otávio e Gustavo Pandolfo são a prova mais eloqüente de que é possível não só ganhar dinheiro com grafite mas também posicionar essa linguagem como arte, inclusive nas badaladas galerias. Mas é bom ter um pouco de polêmica. Jorge Aragão retoma o microfone e Rappin Hood participa da última música, introduzindo um rap com direito a improvisos de saudação ao grande sambista.
Creio que estamos diante de um marco histórico para a TV brasileira. Manos e Minas, aborda a cena cultural da periferia sem espetacularização, além de colocar os próprios artistas do subúrbio em cena. Buzo, Ferréz, Juju Denden, o próprio Rappin Hood: é tudo gente da quebrada. Isso dá uma autenticidade ao programa que o distingue de outras iniciativas, como o Central da Periferia, da TV Globo, apresentado pela atriz Regina Casé. Este programa, hoje esporádico e inserido como quadro do Fantástico, tem sua importância e várias virtudes, mas não tem o olhar de quem está na periferia. Fica muitas vezes um tanto postiço. Manos e Minas é diferente. É autêntico porque fala a língua dos jovens da periferia, além de ser regular e numa TV pública.
A TV Cultura acertou. Paulo Markun disse, em entrevista ao Estadão, que a estratégia para recuperar o público jovem é oferecer-lhe a faixa nobre da grade. Ele também anda saudoso do programa Fábrica do Som, atração da emissora no início dos anos 80. Quer retomar a atmosfera aguerrida e criativa daqueles tempos. É uma boa referência, o Fábrica. Eu era assíduo telespectador daquele programa, que passava aos sábados à noite. Várias vezes fui ao Sesc Pompéia assistir às gravações nas noites de terça-feira. Vi surgirem ali bandas como Ultraje a Rigor, Ira! e Paralamas do Sucesso. Naquela época não tinha hip hop e nem se falava em periferia com o sentido que temos hoje. Era também um agito de jovens universitários de classe média, quase todos brancos. Tirando o Clemente, cantor da banda punk Inocentes, não me lembro de ver negro, nem no palco, nem na platéia do Fábrica do Som. Agora estamos assistindo à conquista de espaço de uma outra galera que, tributária da geração dos 80, acrescenta um sentido de classe, território e cor à cena cultural urbana. E a TV Cultura está aí, cumprindo novamente sua missão, sacando a dinâmica da juventude e sabendo valorizar o fazer artístico do povo da periferia. Longa vida ao Manos e Minas.