A molecada corre de um lado para o outro para se distrair e driblar o friozinho da tarde de outono. O ruído e o clima dão ares de gincana aos intervalos de cada rodada. Os competidores e o público sentem-se num parque de diversões. Nem parecem estar num ambiente – um dos ginásios do complexo poliesportivo do Ibirapuera, em São Paulo – em que os protagonistas jogam emocionantes partidas de... xadrez. Trata-se da 6ª Copa Ayrton Senna de Xadrez Escolar, realizada sempre em junho pela Federação Paulista de Xadrez. Lucas Tavares Lira, de 8 anos, integrante de um grupo de 30 alunos de uma escola de Santos, considera o jogo “muito bom para a cabeça”. “Ele era muito inquieto, melhorou 100% depois que passou a jogar”, diz a mãe, Juliana Castro Tavares Lira, que sempre o acompanha nas competições.
- Horácio: incentivo
- Marcio: cada erro pode ser fatal
Nos últimos anos tem crescido o ensino de xadrez nas escolas públicas e privadas. Há projetos por todo o país, em iniciativas dos governos ou de clubes, entidades e federações. E há também o trabalho de formiguinha de voluntários e educadores dos mais variados campos do conhecimento (professores de educação física, ciências, matemática, história, português etc.), que perceberam como o xadrez pode ser uma poderosa ferramenta no processo de aprendizagem de um aluno.
“Batemos o recorde de inscritos”, disse Horácio Prol Medeiros, presidente da federação, sobre o evento de proporções gigantescas para os padrões do xadrez. Mais de 60 pessoas trabalharam na infraestrutura para acomodar 1.782 enxadristas de 210 cidades de todo o estado. “A ideia do xadrez escolar é exatamente incentivar aquelas crianças que ainda não participaram de competições oficiais”, explicou o dirigente.
Entre os alunos, ganhar era a última preocupação. “É divertido estar aqui”, disse Nathalia Soares Costa, de 8 anos, de uma escola particular paulistana, que venceu duas das quatro partidas que disputou. Ela garante que não fica chateada quando perde: “Quero continuar jogando e ganhar um troféu”.
Jogo e vida
Um dos motivos que levam professores a apostar no ensino do xadrez na escola é o fato de se poder traçar um paralelo entre o que ocorre no mágico tabuleiro quadricular de 64 casas e as situações do cotidiano. “Cada lance executado no tabuleiro corresponde a um efeito na partida, assim também são os próprios atos da vida”, destaca o Grande Mestre Internacional (GMI) Gilberto Milos Júnior, que chegou a ser número 34 no ranking mundial. O estudante Marcio Luiz da Costa Correia, de 13 anos, já compartilha esse pensamento. “É preciso pensar muito bem, um erro pode ser fatal”, diz o jovem aluno de uma escola de Santos.
Para Milos, atual número 4 do ranking brasileiro, o xadrez ajuda em primeiro lugar a organizar o raciocínio e administrar o tempo. Embora não tenham ido tão bem no torneio para iniciantes organizado pela FPX, os amigos Patrick Lanchotti e Renan Vianna Cardoso, ambos de 17 anos, estudantes da rede pública, procuram praticar esse pensamento. “O xadrez estimula o raciocínio lógico, a disciplina, a responsabilidade”, acredita Renan.
É senso comum entre os estudiosos e especialistas da arte da Caissa, a deusa mitológica dos tabuleiros, que a prática do jogo faz bem para o desenvolvimento de habilidades como atenção, concentração, raciocínio lógico, memória, organização de ideias, imaginação, antecipação, espírito de decisão, autocontrole, disciplina e perseverança. E até para a autoestima, a competição ética e o trabalho em equipe.
Livros - Xadrez Básico, de Orfeu D’Agostini
- Xadrez para Todos, de James Mann de Toledo e Juliana Kyoko Kamada
- Estratégia Moderna de Xadrez, de Ludek Pachman
Sites Jogos on-line- O ICC é o maior clube de xadrez virtual do mundo. Pode-se acessá-lo sem gastar nada ou se cadastrar e pagar uma pequena anuidade.
- Gratuito, o espanhol EducaRed também é muito bom.
Ouça - Brancas e Pretas, de Paulinho da Viola e Sérgio Natureza (Do álbum A Toda Hora Rola uma História, de 1982).
Para Antonio Villar Marques de Sá, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília, o xadrez, por ser um jogo complexo, é uma das melhores atividades para desenvolver a capacidade intelectual dos jovens. Villar aponta o xadrez como uma atividade socializadora, que pode ser trabalhada com pessoas de todas as classes sociais, de qualquer idade ou sexo, e também por pessoas com deficiências.
A tenacidade e a disciplina de Margareth Giorghe são bons exemplos para os mais jovens. Ela aprendeu a jogar com o pai, na Áustria, mas só passou a praticar efetivamente após os 30 anos, quando veio para o Brasil. E não parou mais.
Aos 90 anos, segue disputando competições em São Bernardo do Campo em ótimo nível. “É uma ginástica para a mente”, garante ela, que joga até consigo mesma, em casa. Margareth já disputou finais de Campeonato Brasileiro, além de ter conquistado títulos municipais, regionais e estaduais. “Eu não teria chegado a essa idade, com essa lucidez, sem a prática diária do xadrez.”
“Assim como os demais esportes, o xadrez também funciona como um fator de inclusão social”, aponta o Mestre Internacional (MI) James Mann de Toledo, que trabalha há 25 anos como professor de xadrez e já formou vários campeões brasileiros de categorias menores. “E tem uma grande vantagem em relação às demais modalidades: é mais barato e precisa de pouca gente para ser praticado.”
O educador Mário Cardozo ajudou a disseminar o jogo nas escolas públicas de Belém e em instituições que cuidam de menores infratores na capital paraense, com bons resultados de inclusão. No ano passado, levou a modalidade para a aldeia indígena dos Tembé, na pequena cidade de Capitão Poço, a mais de 300 quilômetros de Belém. Atualmente todos jogam o “jogo dos reis” na tribo, onde já é possível mensurar uma verdadeira revolução: a soma de todas as médias de 5ª a 8ª série do ensino fundamental passou de 5,9 para 7,2 de um ano para o outro.
Famosos
A história é repleta de pessoas famosas em outras áreas da humanidade que se aventuraram no tabuleiro. Napoleão Bonaparte, um dos maiores estrategistas militares da história, foi um grande entusiasta do xadrez. Na corte, seu adversário mais constante era o general Michel Ney, seu mais brilhante estrategista, que sempre levava a melhor contra o “terrível corso”.
Por uma questão cultural e climática, o xadrez está para a Rússia assim como o futebol para o Brasil. Para ter uma ideia dessa distância quilométrica, há 170 GMI russos no mundo, ante 17 argentinos e apenas 8 brasileiros. Lenin, um fascinado pelo jogo, chegou a dizer que teve de optar “entre o xadrez e a revolução”.
Che Guevara e Fidel Castro também praticavam o jogo, inclusive na Sierra Maestra, antes da tomada de Havana. Che era reconhecidamente um jogador mais forte, tendo inclusive empatado em 1962 com o GMI argentino Miguel Najdorf, numa partida na qual o grande mestre teria sido muito “camarada”.
Albert Einstein, um dos maiores gênios do século 20, não cansava de massacrar Julius Robert Oppenheimer, o cabeça do Projeto Manhattan, que resultou na fabricação da primeira bomba atômica. Einstein também era muito amigo do campeão mundial e matemático alemão Emmanuel Lasker, a quem sempre pedia para “deixar esse jogo das pedrinhas para enfrentar, com ele, alguns problemas de matemática e física”.
O compositor ucraniano Sergey Prokofiev, autor de Concerto para Piano nº 3 e do balé Romeu e Julieta, era um enxadrista da maior categoria e obteve até uma fantástica vitória, em 1914, sobre o cubano José Raúl Capablanca, que posteriormente viria a ser campeão mundial.
Índia ou China
Há várias lendas sobre a origem do xadrez. Uma das histórias mais conhecidas – e que encontra suporte em fontes arqueológicas – menciona o sábio Sissa. Ele era um brâmane que viveu no noroeste da Índia entre os anos 600 e 700 e foi incumbido pelo rajá Bahlait de inventar um jogo que embutisse valores éticos e morais, como a prudência, a determinação e a coragem. Sissa, então, criou o chaturanga, o “exército formado por quatro membros”, precursor do atual xadrez.
O rajá gostou e fez questão de presentear o sábio com qualquer coisa que ele solicitasse. Sissa pediu como recompensa um grão de trigo pela primeira casa do tabuleiro, dois pela segunda, quatro pela terceira, oito pela quarta e, assim, sucessiva e exponencialmente até a 64ª casa. Mal sabia Bahlait que nem mesmo uma camada de trigo de três metros de espessura que cobrisse todo o planeta seria capaz de pagar pelos serviços do sábio!
Da Índia, o chaturanga teria ido para a Pérsia (atual Irã) e se disseminado pelo mundo por meio da cultura árabe e da influência política e geográfica da nova força do Islã, a partir do século 7. A Europa sofreu grande influência, em particular com a invasão direta da Espanha pelos muçulmanos. Após a expulsão dos mouros, os europeus apropriaram-se da cultura árabe, alteraram as regras e criaram o xadrez moderno.
Estudos recentes, contudo, indicam que o xadrez poderia ser muito anterior ao chaturanga. Em 1985, o americano Sam Sloan escreveu um longo artigo intitulado “A origem do xadrez”, no qual cita fontes e documentos segundo os quais o jogo teria surgido na China, no século 3 a.C., e só posteriormente migrado para a Índia.
- Laurence Fishburne e Max Pomeranc em Lances Inocentes
O tabuleiro no cinema
No cinema, uma das partidas mais famosas foi disputada entre o astronauta Frank Poole e o computador Hal 9000 no filme
2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick (1968), durante uma viagem entre a Terra e Júpiter. Poole utilizou como jogada uma variante inferior da Abertura Ruy López e facilitou o trabalho do computador, que ainda não tinha a velocidade e o cálculo destrutivo dos microprocessadores de hoje. Mas o melhor filme sobre xadrez já realizado chama-se
Lances Inocentes – Procurando por Bobby Fischer (1993), de Steven Zaillian. Com estrelas como Ben Kingsley, Laurence Fishburne e Joe Mantegna no elenco, retrata bem o universo do jogo, do aprendizado ou da competição, e é uma ótima lição de vida para pais, professores e alunos.