Luiz Eça - Correio da Cidadania
As visitas de Shimon Peres e Mahmoud Abbas ao Brasil não mereceram
reparos nem da grande imprensa, nem dos intelectuais que passaram pelas
mesas redondas e noticiários da TV. Mesmo os políticos de esquerda que
vimos na emissora de TV do Senado trataram-nos com todo respeito.
Já com Ahmadinejad as coisas foram diferentes. Os meios de comunicação
emitiram reprimendas ao governo por recebê-lo, além de veicularem
acusações pesadas ao Irã da fina flor do conservadorismo americano e
seus clones brasileiros.
Alguns comentaristas e políticos, no máximo, admitiram que a relação
com o Irã pode trazer vantagens econômicas ao Brasil. Mas sempre
insistindo na necessidade do governo Lula deixar bem clara sua oposição
aos "graves desvios" iranianos, especialmente para manter-se fiel à
amizade e aos princípios do nosso grande vizinho do norte.
O interessante, porém, é que uma breve análise mostra que os EUA
praticam o mesmo tipo de ações que no Irã rotulam como demoníacas e
ameaçadoras da paz mundial. A diferença é que, quando são de autoria
americana, o Ocidente as vê com benevolência, sem nada de criticável.
Leia e tire suas conclusões
Torturas - Parece inegável que a polícia iraniana torturou
participantes dos protestos contra as eleições. Só que nesse quesito os
americanos ganham de dez a zero. Em Guantánamo, relatórios de ONGs e
até do FBI provaram torturas aos detentos. Em Abu Ghraib, as
brutalidades cometidas por soldados americanos chocaram o mundo. E os
raptos de suspeitos no estrangeiro pela CIA para serem levados a países
onde se tortura livremente foram flagrados em diversas ocasiões.
Recentemente, um tribunal italiano condenou a penas de prisão agentes
italianos e americanos que seqüestraram suspeito islamita e o levaram
ao Egito onde foi devidamente torturado.
Eleições desonestas - No Irã continuam merecendo a indignação
mundial. Mas não se deve esquecer que a primeira eleição de George Bush
foi ganha no tapetão – não nas urnas.
Armas nucleares – Segundo El Baradei, chefe dos inspetores da
ONU e Prêmio Nobel da Paz, não há sequer indícios de que o programa
nuclear iraniano tenha objetivos militares.
Por outro lado, é de pleno conhecimento que Israel está muito avançado
nesse setor, já dispondo de 150 a 200 artefatos nucleares, com
capacidade de produzir 20 por ano, na base secreta de Dimona. Os EUA
têm negado esse fato devido à emenda Symington, que proíbe ajuda
americana a países que desenvolvam programas de enriquecimento nuclear
fora do controle internacional. Por esta emenda, Obama teria de acabar
com o envio anual de 2,5 bilhões de dólares a Israel.
Direitos Humanos - É fato que foram desrespeitados pelo exército
e as milícias iranianas na repressão aos protestos contra as eleições
presidenciais. Nesse assunto, de Direitos Humanos, as violações em Gaza
foram muito mais graves: 1.500 árabes mortos, a maioria civis,
inclusive centenas de crianças.
Investigando o que aconteceu no ataque, a comissão da ONU, presidida
pelo juiz judeu Goldstone, respeitado internacionalmente, concluiu que
o exército israelense cometeu crimes de guerra e contra a humanidade.
Novamente os EUA defenderam o governo de Telaviv.
Contestaram o relatório final, sem fornecer um único argumento, e agora
impedem que ele seja discutido no Conselho de Segurança da ONU. Apóiam
o governo israelense que se nega a atender ao apelo, inclusive da
França e da Inglaterra, para fazer uma investigação isenta sobre as
acusações, identificando os culpados.
Outro desrespeito aos Direitos Humanos pelo governo dos EUA foi
revelado na apresentação dos motivos para não fecharem Guantánamo no
prazo dado por Obama: a necessidade de manter presos, sem julgamento,
indivíduos considerados perigosos, pois não há provas capazes de
condená-los.
Apoio ao terrorismo – Os EUA acusam o Irã de apoiar o Hizbollah
e o Hamas, que consideram movimentos terroristas. Na verdade, ambos
abandonaram o terrorismo há muitos anos. São hoje partidos políticos
legais.
O Hizbollah defendeu o Líbano durante a última invasão israelense que
causou a morte de 1.500 libaneses e destruiu parte da infra-estrutura
do país. Recentemente, recebeu do governo libanês (apoiado pelo
Ocidente) o direito de manter armas para proteger o país.
O Hamas governa Gaza e só começou a lançar foguetes sobre território
israelense depois que o Telaviv fechou as fronteiras, causando uma
verdadeira crise humanitária na região, que ficou privada de alimentos,
medicamentos e materiais essenciais à sua economia.
Na verdade, quem ajudou terroristas foram os EUA. O governo George Bush
supriu com recursos financeiros o movimento Jundalá, integrante da
lista de terroristas dos próprios americanos e que atua na fronteira
iraniana praticando atentados contra soldados, funcionários públicos e
camponeses. Seu líder, Abdel Malik Regi, é
assim descrito por Aléxis Debat, expert em contra terrorismo do Nixon
Center: "Ele é parte traficante, parte talibã e parte ativista sunita".
Julgamentos de oposicionistas – Os acusados de liderar os
protestos contra as eleições iranianas estão, de fato, sendo alvo de
processos sumários com penas pesadas (cinco foram condenados à morte) e
injustas.
Israel faz algo semelhante com acusados de ações terroristas. Muitos
deles foram julgados secretamente (sem direito a advogados, portanto),
não por tribunais, mas pelo Mossad. Tendo havido a aprovação do
primeiro-ministro, seguiram-se as execuções dos presumíveis culpados,
em casa ou na rua, através de mísseis disparados por aviões ou por
raids de forças especiais, muitas vezes com a morte de pessoas que
tiveram o azar de estar próximas. Trata-se, sem dúvida, de um rito
processual mais próprio de Gengis Khan do que de um país civilizado. E
que tem sido defendido pelos EUA como "direito de defesa" de Israel.
Além desses tipos de transgressões, compartilhados por Irã, EUA e
Israel, algumas acusações, pautadas pela Casa Branca, foram repetidas à
saciedade pelos seus seguidores no Brasil.
Assim, a negação do Holocausto é mostrada como algo criminoso. Eu diria
que é absurda, que não faz honra à inteligência de Ahmadinejad. É mais
uma afirmação demagógica, para agradar ao público islâmico de setores
iletrados, indignado com o que os judeus fazem aos árabes na Palestina.
Como foi também a frase, "Israel deve ser varrido do mapa", a qual,
porém, Ahmadinejad esclareceu. Disse que não pretende jogar os
israelenses no mar... É, sim, contra o caráter racista do país,
expresso, aliás, no início da sua Constituição: "Israel é um Estado
democrático e judaico". Atacar o país seria uma loucura. Que chances
teria contra as 200 bombas nucleares de Israel, sem falar do
avassalador apoio militar americano? O que Ahmadinejad quis dizer é que
a História tornará inviável o regime sionista e a Palestina (Israel +
Cisjordânia) acabará se tornando um Estado de todos: judeus, islamitas
e cristãos.
Acho que Israel não vai mudar. É um país que já existe há 41 anos como
"lar nacional judaico", suas instituições estão plenamente
consolidadas. Mas, defender a tese da injustiça e do fim inevitável de
um Estado sionista e sua substituição por um país leigo e sem caráter
racial é um direito, não um crime.
A criminalização do homossexualismo e a restrição aos direitos
femininos no Irã são tristes realidades que vêm sendo paulatinamente
ofuscadas pelo progresso da sociedade iraniana. São cada vez mais raros
os casos de punições por questões de sexo, enquanto que as mulheres
ganham cada vez mais espaços. Por exemplo: hoje existem mais
universitárias do que universitários no Irã.
Não devemos esquecer que até os anos 70 havia até leis racistas nos
Estados Unidos. Mesmo depois, o racismo sobreviveu, custando a
desaparecer da sociedade americana, ainda que não completamente.
Não é preciso gastar muitas páginas para demonstrar que tudo que se
critica no Irã é ou foi praticado pelos EUA, até mesmo com maior
intensidade. No entanto, é tal o poder da hegemonia ianque que a
maioria dos nossos jornais, intelectuais e políticos fazem vistas
grossas a esta realidade. E competem entre si para imitar os grupos
mais reacionários da terra do Tio Sam através da repetição das teses
que interessam ao país do Norte, ainda que sejam contrárias a nós.
No caso da disputa com o Irã, a hipocrisia americana manifesta-se de
uma maneira muito clara. E continua imperturbável, pois raros são
aqueles detentores de poder no mundo que ousam denunciá-la.
Luiz Eça é jornalista.