Homens
inteligentes que não cometam erros não há nem pode haver. Inteligente é
quem comete erros, mas sabe corrigi-los bem e depressa.
Lenine
Desde o 22 de Janeiro deste ano se colocou em cima da mesa da
discussão política a construção do socialismo no nosso país. Os dois
mais altos dirigentes do governo e do processo, Evo Morales Ayma e
Álvaro García Linera, expuseram de forma cristalina essa perspectiva
histórica. Além de ratificarem a linha anticapitalista e
anti-imperialista, definiram a superação do capitalismo construindo o
socialismo que muitas vezes se fez acompanhar do adjectivo comunitário.
Álvaro Garcia encarregou-se de fundamentar teoricamente essa
possibilidade, retomando posições marxistas.
Não obstante, para começar a caminhada nessa perspectiva histórica,
há que ter em conta muitas premissas tanto de carácter objectivo, como
subjectivo. Ao socialismo não se chega unicamente por um acto de
vontade. Ao mesmo tempo que é certo que esta vontade, que é uma vontade
específica – a vontade das massas trabalhadoras, sobretudo – tem de ser
uma vontade adequada às condições objectivas.
O desenvolvimento dos processos sociais, económicos e políticos na
Bolívia chegou a um ponto crucial. Esse ponto determina-se como o ponto
de inflexão a partir do qual se abrem dois caminhos completamente
distintos no seu significado e destino histórico. Um é o caminho da
reforma social e o outro da revolução social. A via das reformas, sem
dúvida pode melhorar a vida na sociedade, quando se destina a reparar a
vida da gente que mais necessita. Mas as reformas não tocam nas bases do
sistema social que está na origem das desigualdades sociais e na
pauperização da maioria das pessoas, sobretudo dos pobres e explorados. A
revolução, por outro lado, destrói as bases do regime antigo criando
novas relações sociais de produção e liquidando a propriedade privada
dos meios de produção. A revolução social não é senão um modo de
transição de uma formação socioeconómica caduca para outra superior.
Todavia a revolução, contrariamente a uma visão simplista e apressada,
não se constrói da noite para o dia.
Até chegar às metas do que poderíamos denominar uma sociedade
basicamente socialista, há um processo relativamente comprido,
denominado de transição, que vai da velha sociedade caduca e injusta até
à nova mais justa, equitativa e livre. A essência do período de
transição é a execução das tarefas no campo da economia, fortalecendo as
formas sociais de propriedade dos meios de produção e a adequação de
essa economia a um novo regime político-jurídico. É um processo
contínuo, de mudanças democráticas e revolucionárias que corresponde ao
que os clássicos formularam no conceito de revolução permanente ou
ininterrupta.
A revolução permanente, como a conceberam Marx e Engels e não em
interpretações distorcidas, radica, em suas próprias palavras, é aquela
em que: “… os nossos interesses e a nossa tarefa consiste em fazer a
revolução ininterruptamente até que as classes – mais ou menos –
dominantes sejam afastadas do poder; até que o proletariado conquiste o
poder estatal.” Esta formulação atesta o dito: não é um processo rápido e
a sua duração é difícil de prever. O que fica claro, aqui, é que se
necessitará de um longo processo de educação das massas para manter o
seu espírito revolucionário e o fortalecimento e alargamento do sector
da propriedade social dos meios de produção. Em suma, manter o vigor da
disposição de construir a nova ordem, vencendo o capitalismo na produção
dos bens materiais e na forja de uma mente que supere os desequilíbrios
do individualismo capitalista.
A primeira ruptura na etapa de transição do poder político do
Estado, das mãos opressoras de antes, para as mãos emancipadoras do
presente. Esta é a fase política da revolução. A fase social
propriamente dita, consiste na mudança do sistema de propriedade dos
meios de produção e, sobre esta base, o estabelecimento de novas
relações de produção. Dito em outros termos, significa suprimir as
causas da exploração do homem pelo homem.
A causa principal da exploração do homem é que os meios de produção
(terra, instrumentos, máquinas, instalações, etc.) estão nas mãos dos
outros homens. Enquanto uns os possuem outros não têm senão a sua força
de trabalho (manual ou intelectual). Não é pura retórica o dito no
Manifesto Comunista: os expropriados, os trabalhadores, não têm outra
coisa a perder que não as suas correntes.
O poder económico gera poder político e é a propriedade dos meios de
produção que outorga esse poder que, em princípio, pressupõe o poder de
explorar o trabalho alheio. Implica também muitos outros efeitos; sobre
esse poder económico surge toda uma estrutura que, passando pelo poder
político, a formação jurídica, a textura moral social e individual,
chega ao ideológico, ao psicológico, à esfera total da consciência
social.
Em resumo, pode dizer-se que a relação de propriedade com os meios
de produção imprime o seu selo até naquele espaço tão sublimado como o
dos sentimentos e afectos e naquele que se conhece como a simbólica
social; engendra toda uma afectividade de proprietário ou
proprietarista. Na sociedade humana e sobretudo na dividida em classes,
este afecto engendra a paixão que explica desde a ambição pela pequena
posse de alguma propriedade até à busca de uma grande fortuna.
Atribui-se ao sacerdote guerrilheiro colombiano Camilo Torres uma
afirmação que explica a força deste afecto: “o rico, entre perder a vida
ou a carteira, prefere perder a vida”.
Em redor do assunto da propriedade está o cerne das discussões e da
confrontação na sociedade boliviana nestes dias. As classes e diversos
sectores sociais e as nacionalidades e etnias, com uma ou outra
simbologia, movem-se em torno da propriedade em geral, mas em particular
em torno da propriedade dos meios de produção. Na sociedade
capitalista, inclusive em âmbitos em que se pode imaginar que não há
preconceitos ou temores sobre o seu destino, não deixam de se manifestar
receios e dúvidas. Vivem dependentes de que não os despojem. É que até
nos espaços de menor preconceito se desconhece que, no mais radical dos
processos revolucionários, houve (e há) uma diferença entre a
propriedade pessoal – ferramentas de trabalho pessoais; a casa e o carro
(se o têm) e até a terra familiar ou particular – e a propriedade dos
meios de produção, no sentido estritamente capitalista do termo.
Os receios dos menos preconceituosos, nos pouco informados
politicamente, convertem-se em atormentadas predisposições e certezas de
ameaças. Os meios de comunicação se encarregam de agigantá-los e gerar
ondas de rumores que acabam por criar, pelo menos, uma oposição passiva
contra o governo.
Não vamos examinar em detalhe os elementos que manobra e com os
quais agita, a oposição das direitas, em “defesa da propriedade”. Só
referimos alguns dos seus slogans: “Vão tirar as casas!”, “Vai tudo
passar para o Estado!”, “Não haverá mais empresas privadas”, “Não haverá
mais escolas nem universidades privadas!”, ”Vão encerrar os
consultórios privados!”… “e as farmácias” … “o Estado é um mau
administrador”, “a burocracia engole tudo”, “cresce a corrupção”, e
assim até ao infinito.
Com formas completamente distintas, a extrema-esquerda radical tem
os seus próprios slogans que, no fundo, levam a água ao mesmo moinho
desestabilizador e reforçam os temores dos incautos que acreditam que de
facto esses slogans podem concretizar-se. Os incautos, muitos e
variados, não diferenciam o carácter deste governo e a realidade da
extrema-esquerda. Esta lança apreciações e consignas da seguinte
natureza: “este é um governo neoliberal”, “a nacionalização realizada é
uma farsa”, “deve confiscar-se todos os bens aos ricos”, e assim por
diante.
As disputas com as direitas e com as facções esquerdistas e a
infinita batalha com os meios dominados pelo conservadorismo e as
transnacionais da comunicação, se bem que têm importância, não são tão
relevantes como as diferenças no seio do próprio governo e nos sectores
sociais que se reclamam partidários da mudança. Há uma compreensão muito
diversa sobre o assunto da essência e do alcance do tema da propriedade
privada, sobretudo da dos meios de produção. Óbvio que esta falta de
clareza cria confusão e impede uma concretização fluida das acções
governamentais.
No governo, e isto estende-se ao partido governante, existem três
correntes bastante distintas entre si; alguns analistas contabilizam até
sete. Não entraremos em detalhe acerca da corrente que consideramos
revolucionária e de opção nitidamente socialista. Esta corrente,
geralmente, de inspiração marxista e marxista-leninista não é homogénea e
não é a mais numerosa.
Outra corrente é a que podemos associar a uma concepção
social-democrata e que manobra, precisamente, várias alavancas da
economia e das finanças do país. Os seus partidários são muito
cautelosos no que respeita às transformações verdadeiramente importantes
na base económica. Tem-se a impressão que alguns deles prefeririam que
as coisas, nesta matéria tão espinhosa, ficassem como estão. Têm um
pânico em transtornar a economia ao tentar transformações estruturais.
Sua acção económica baseia-se na protecção das suas reservas
internacionais, nas exportações, antes de mais de matérias-primas; na
poupança de despesa na administração estatal. Os preços altos das
matérias-primas e a cotação estável da moeda norte-americana,
serviu-lhes de confirmação do acerto da sua gestão económica. Igualmente
podem gabar-se do notável aumento das reservas internacionais, de um
crescimento positivo do PIB (com uma média de 5% durante os últimos 5
anos), do aumento da riqueza nacional, a diminuição dos índices de
pobreza, particularmente rural; da estabilidade relativa dos preços ao
consumidor.
A corrente mais caudalosa – que pode ser identificada e englobada,
na generalidade, no indigenismo, sendo mais extensa e variada que a
anterior – defende a expansão da propriedade, de toda a propriedade,
incluindo a dos meios de produção, sempre e quando levem um selo
indígena. Em alguns casos, este propósito manifestou-se na reivindicação
imperativa de determinadas áreas de trabalho e de onde se cruzou com a
presença de trabalhadores de outro sector social. Concretamente, algumas
comunidades camponesas tentaram deslocar trabalhadores mineiros, em
particular cooperativistas, de algumas minas. Fazem-no sobre o princípio
de “terra-território” ou propriedade ancestral que compreende não só a
superfície mas sim toda a riqueza que se pode encontrar no subsolo.
Apoiam-se também numa interpretação ampla da nova Constituição Política
do Estado. Esta estabelece a obrigatoriedade da consulta para a
exploração de recursos que se encontrem em áreas que pertencem a povos
originários (art. 316 inc. 1). Porém, neste caso, os trabalhos
realizavam-se em conformidade com as antigas concessões entregues,
habitualmente, a mineiros originários, com base nas disposições actuais.
Por último, não têm faltado, nos sectores do indigenismo radical que,
felizmente, estão fora do governo, posturas mais intransigentes como o
direito, por exemplo, a negociar directamente a exploração de recursos
naturais com empresas estrangeiras.
Esta política indigenista vem envolta com um conjunto de conceitos
que, no melhor dos casos, não estão contra a perspectiva de um
desenvolvimento em transição para um sistema socialista, mas é evidente
também que não o tomam em conta como uma possibilidade certa. Mais
exacto seria dizer: iludem-no. Substituem-no por uma visão idílica do
trabalho, por agora impraticável. Transformam o desejável em utopia.
A concepção indigenista tem alguns pilares sobre os quais assenta e,
em geral, estão divididos por todos os grupos que se reclamam
originários puros. Não é objectivo desta apresentação analisar algo que é
difícil resumir neste espaço. Haverá tempo para cerrar o dente neste
problemático assunto. Mais assinalamos o que mais se adormece e é
precisamente o mais necessário: a convergência e a unidade de todas as
forças populares e de trabalhadores, na tarefa de afiançar e avançar o
processo de mudança. A pedra angular das suas posições é de negação de
todo o teórico ou instrumental-orgânico que, de alguma forma, provenha
da Europa ou, de forma mais lata, do “ocidente”. Subtilmente
assentaram-se ideias que não nasceram da criação teórica própria. Na
realidade são ideias importadas ou introduzidas sobretudo por ONG’s.
Entre elas estão, por exemplo, o apartidarismo que se converteu em
antipartidarismo generalizado e sem o menor objectivo de distinguir
entre si quaisquer partidos políticos. A palavra de ordem nunca foi
sempre lutar contra a “partidocracia”, colocando no mesmo saco todos os
partidos. Desde essa posição não só negam a necessidade de partidos,
sejam de esquerda, mas até dos sindicatos. Estes últimos, até contra a
tradição de mais de meio século de organizações de trabalhadores
agrícolas em sindicatos agrícolas, filiados na Central Obrera Boliviana.
Alegam que tanto os partidos como os sindicatos são de “origem
europeia”. É a primeira evidência do esquecimento ou da recusa do
enfoque classista, pois, os partidos políticos representam, quase
invariavelmente, os interesses das classes sociais e os sindicatos
igualmente, mas de maneira mais específica, promovem os interesses
concretos dos assalariados.
Começou a exaltar-se, em substituição dos partidos e dos sindicatos,
as organizações sociais, categoria, obviamente, muito ampla. Nunca se
negou a necessidade de trabalhar com elas. Assim se convergem na luta,
mas é necessário dotá-las de uma organicidade mínima e sobretudo manter a
tensão sobre a base de um programa com maior alcance histórico. Estamos
de acordo com a necessidade de levar a fundo a origem destas correntes:
“Com o falso pressuposto e o argumento enganoso de que os relatos
pós-modernos e as metafísicas académicas pós-estruturalistas nascem… do
solo indígena (?) e brotam… das culturas originárias (?) uma vez mais,
como já ocorrera (antes) (…) se terminava adoptando como próprio um
discurso teórico forjado exclusivamente a partir de uma experiência
política distante, alheia: a de aquela geração europeia derrotada em
1968, desiludida durante toda a década de 70 e finalmente incorporada no
sistema durante os anos 80”.
Vale a pena recordar algumas categorias na sua escala de
prioridades. Para o indigenismo fortemente caracterizado como tal, a
natureza e sobretudo a pachamama (mãe-terra) é mais importante que o
homem. Este, ao fim e ao cabo, é um filho, mais um produto da terra.
Concepção distinta aquela que defendemos: é a evolução social, a vida em
sociedade, o trabalho, o que cria o homem social. Isto é o que o
diferencia dos animais, inclusive daqueles que se encontrem no mais
elevado nível da escala zoológica, a que pertencemos.
Num importante encontro (Cimeira sobre a Mudança Climática em
Cochabamba, em Maio passado) – que teve muitos aspectos positivos e
mobilizadores em defesa do meio ambiente e na condenação do capitalismo e
a sua responsabilidade na mudança climática – o representante boliviano
chegou a defender que os originários “vão mais além do capitalismo e do
socialismo, já que estes eram igualmente predadores”. Não demonstrou um
só dado que avalize esta comparação do socialismo ao capitalismo, mas a
frase foi lançada e ali ficou como expoente de uma posição com
pretensões de colocar-se acima do socialismo, particularmente do
socialismo marxista.
É difícil sintetizar o conjunto de conceitos que desferem os
teóricos da indigenidade que sem dizê-lo directamente, pretendem que a
sua concepção de vida, do mundo e do homem, supera o que define o
socialismo e muito particularmente o socialismo científico. Elegemos a
apresentação aqui de um livro que refere a concepção de suma qamaña,
como um resumo que nos dá uma ideia do emaranhado discursivo da
“cosmovisão andina”: “A República da Bolívia não conseguiu constituir-se
em Estado-nação no espaço-tempo da modernidade. E eis que a modernidade
cessou e com ela a forma Estado-nação, o modo industrial de produzir, a
visão mecanicista, atomista e redutora de interagir com a realidade. O
próprio conceito de realidade se relativizou e tornou-se probabilístico e
quântico. Portanto os mitos de Desenvolvimento e do Progresso também
chegaram ao seu fim. Nesta transição de época, não obstante, coexistem
revoltas, as inércias fantasmagóricas do passado e as virtudes, não
reconhecidas como tais, do mundo que amanhece” E conclui: “É de vida ou
morte que os bolivianos, na Assembleia Constituinte deram um passo
adiante como vanguarda política da humanidade, dando-nos uma
constituição que seja capaz de traduzir politicamente o novo paradigma
científico técnico e a cosmovisão das Nações indígenas e originárias”.
Um dos traços centrais desta concepção é opor-se aos conceitos,
definidos como exclusivamente ocidentais, de desenvolvimento e
industrialização. Em algum outro momento Medina define que o modelo
bíblico do Éden e da visão aristotélica da “Boa vida na cidade” separam,
ambos, o homem e a natureza e conclui quase de modo polpotiano: “Não é a
Cidade, mas a Chacra; não é a separação mas a simbiose com a natureza, o
espaço-tempo da qualidade de vida”.
Como um resultado directo desta concepção, que pretende negar a
ciência – e no fundo não está ganha para as perspectivas revolucionárias
do processo de mudança – observa-se, na actual conjuntura, um risco de
paralisação da actividade revolucionária das organizações sociais, de
regresso às posições dos objectivos concretos, limitados, sectoriais, e
do abandono de algo que caracterizou a resistência ao neoliberalismo: a
defesa comprometida e prioritária dos interesses à escala nacional. É
sem dúvida um processo de fetichização (ainda não insuperável), por trás
do simbolismo andino, de linguagem, de ritos. A situação revolucionária
que se concretizou em Outubro de 2003 é impensável sem a participação
das organizações sociais. É necessário, pois, voltar a activar a
efervescência revolucionária de tempos não muito distantes.
Não é a intenção polemizar agora nem com a social-democracia nem com
o indigenismo, mas sublinhar como estas correntes podem desviar a
atenção dos temas vitais, dos objectivos centrais do processo para este
materialize as transformações que permitirão desabrochar o caminho até
uma sociedade superior.
É imprescindível determinar, além do ponto de inflexão, em que nível
de avanço do processo de transformação nos encontramos. Aprovou-se uma
nova Constituição Política do Estado Plurinacional; conquistou-se uma
sólida maioria parlamentar pela transformação; conquistou-se 6 em 9
governações; de ter uma presença maioritária na maioria das assembleias
departamentais; de dominar mais de 220 das 312 autarquias que existem no
País; de encaminhar-se uma renovação ambiciosa do órgão judicial e, o
mais significativo, de ter derrotado politica e operativamente os
intentos desestabilizadores e separatistas.
Este nível e simultaneamente ponto de inflexão, desde a nossa visão,
assinala que praticamente se completou com êxito a fase política da
revolução. O sintoma principal de essa mudança é que as velhas classes
dominantes e exploradoras foram retiradas das principais estruturas de
dominação política. Mas esta afirmação tem de ser relativizada. Não é o
mesmo ocupar alguns centros altos da estrutura política e depurá-la de
toda a herança da hermenêutica funcionária, dos hábitos e costumes da
burocracia sobre tudo, e até da sua composição de pessoal. O velho
persiste muito tempo na sociedade e o processo de decantação dura muito
tempo e requer um trabalho como o de um mecanismo de relojoaria. Muita
de esta gente é necessária para o processo de construção da nova ordem e
a partir de certa ética e de certa disposição meramente patriótica
convertem-se em necessários, ainda que nunca em imprescindíveis.
Tampouco entraremos na análise de outros aspectos do funcionamento
da sociedade no processo de mudança. Em particular daqueles que se
referem ao elemento humano, a sua psicologia e orientação ideológica,
aos seus hábitos, à sua conduta quotidiana. Nem ao papel nefasto que
joga o elemento adicionado à última hora e este processo de mudança;
aqueles que saltaram cinicamente para o carro da vitória eleitoral. Nem
tão-pouco à ampla capa não só de oportunistas políticos, de aqueles, até
piores, em só pensam no seu benefício pessoal, não só ilícito como
muitas vezes atinge proporções escandalosas. Quando se pensa neste
conjunto de detalhes vemos quão distantes estamos do aparecimento do
homem novo, não só individual, mas como sujeito colectivo.
Miguel Urbano abordou este tema do homem construtor do socialismo
levantando profundas interrogações. Inferimos do seu trabalho que o que
primeiro há a despejar são as ideias românticas e apressadas acerca do
homem novo. Sua formação, como tal, exige muito tempo e sobretudo
implica aquele ideal das sociedades socialistas avançadas: o paulatino
desaparecimento das diferenças de classe. Chegar ao sonho da igualdade –
uma das aspirações socialistas que se menciona pouco – se a intui como
alta e difícil de alcançar, a partir do estado da pessoa actual e a
partir sobretudo da sua consciência.
A observação, de Urbano, acerca de que passada a época gloriosa e
romântica dos momentos estelares de uma revolução, as gerações que a
conhecem pela história e às vezes a conhecem mal, não actuam como o
prescreveria a sua pertença a uma sociedade em que vai desaparecendo a
exploração do homem pelo homem e, objectivamente, se vive melhor que na
sociedade capitalista, é difícil de responder. Atrevemo-nos a pensar que
uma das alavancas para a alcançar é uma crescente democracia e a
crescente participação pessoal no trabalho e nas decisões colectivas.
Isso levará à forja quotidiana do homem novo, fenómeno que não se dá da
noite para o dia e que tem de entender, por sua vez, que no próprio
desenvolvimento vivencial, cultural, etário e biológico da personalidade
em permanente dinâmica e mudança.
Para finalizar o caso boliviano, um aspecto que merece uma análise
detalhada é a correlação e o estado das forças políticas. Na direita
clássica e na neo-direita, sucedânea da neo-esquerda dos anos 70, houve
grandes remodelações. Provocaram o virtual desaparecimento dos partidos,
terríveis cisões e em geral o derrube do conjunto das suas ideias
neo-liberais. Sobre isto, repetimos o que disse em seu tempo Almaraz:
possuem “ideias (tão escassas) que cabiam numa casca de noz”. Porém o
importante é examinar cuidadosamente os seus reagrupamentos e sobretudo
as suas novas poses. Uma dirigente camponesa caricaturava a situação
desta maneira: “a direita agora veste-se de ponchos e [ojotas]”.
Trespassando as trincheiras da direita é óbvio que não passamos por
alto o que não é uma simples trincheira, mas sim uma fortaleza: a
bateria dos meios de comunicação ao seu serviço e que trabalham a toda a
força distorcendo a informação, desinformando, semeando estereótipos
negativos, avivando preconceitos e incitando a manifestações e acções
que deteriorem ou prejudiquem o processo. Infelizmente a resposta do
governo e da esquerda é insuficiente e muitas vezes inadequada. Estas
duas trincheiras citadas, há que o sublinhar, estão grandemente
suportadas por ajudas estrangeiras milionárias. Como nunca se
evidenciaram os movimentos de entidades como a USAID que opera através
de milhares de tentáculos como as Organizações Não Governamentais.
Completa, na generalidade, a tarefa política chega a parte
correspondente à mudança da própria estrutura da sociedade, da sua base.
Sem a transformação necessária de esta estrutura, toda a mudança
política pode dar em nada. Ainda mais, pode ser sucedida por um processo
contra-revolucionário. A experiência internacional nesta matéria é
muito amarga para os trabalhadores, para os povos que a sofreram. É
sobre esta questão da proposta económica que deve haver a maior clareza,
mais exactamente a maior lucidez de consciência política.
Nesta matéria não cabem as ambiguidades nem a substituição dos
objectivos nem a mudança de uma planificação científica por ideias
utópicas. O desenvolvimento nacional soberano, integrado na ALBA e em
benefício dos trabalhadores e do povo boliviano é a meta inequívoca, o
objectivo invariável do processo de mudança, se queremos converter este
numa revolução verdadeira e não numa mera reforma progressista. Efectuar
realmente o que chamamos o Resgate da Pátria, rumo ao Socialismo.
Obviamente o processo de mudança não nos levará às metas fixadas num
período curto. Há que despojar-se de todo o tempo de ilusões, de falsas
ideias acerca da construção de uma nova sociedade. Ao socialismo
chegaremos, só atravessando – com sabedoria, com flexibilidade, sem
dogmatismos nem desvios, contemplando a própria realidade – é difícil,
às vezes caminho tortuoso, da transição do capitalismo ao socialismo.
Mas antes de mais necessitamos de unidade popular e organização.
* Marcos Domich, Professor da Universidade de La Paz, é amigo e colaborador de odiario.info.