quinta-feira, 21 de abril de 2011

A VERDADEIRA PÁSCOA

 
"Mesmo que o Cristianismo tenha sido o veículo através do qual o Judaísmo ficou conhecido no Ocidente, devido à união da mensagem das duas religiões em um só livro, a Bíblia, são religiões diferentes com objetivos diferentes e mensagens quase opostas. A religião judaica, de acordo com a lenda, foi criada pelo seu deus, Jeová ou Javé, para unir o povo judeu em torno do objetivo material de conquistar a Terra Prometida, que seria, hoje, a Palestina. Mesmo sofrendo todas as perseguições conhecidas através dos tempos, o judeus nunca se afastaram dessa linha religiosa e usaram-na para invadir a terra dos palestinos e confiná-los na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Com o apoio da ONU, que em 1948 criou o Estado de Israel em uma terra povoada por palestinos. Mas o Cristianismo, ao contrário, não é uma religião materialista. Jesus costumava dizer: "O meu reino não é deste mundo". E pregava aos seus seguidores a humildade, a paz, o amor e a busca da igualdade entre os povos."
 
A Páscoa cristã, este ano, quase coincidirá com a Páscoa judaica. A páscoa judaica é celebrada de 19 a 26 de abril e a páscoa cristã de 21 a 24 de abril, sendo que o dia exato é 24 de abril. Se houvesse a coincidência entre as duas páscoas, isso seria considerado quase como um sacrilégio pela Igreja Católica e demais igrejas cristãs.

Para que nunca houvesse essa coincidência, a Igreja Católica transformou a Páscoa numa festa móvel com o decreto do papa Gregório XIII (Ugo Boncampagni, 1502-1585), Inter Gravissimas em 24.02.1582, seguindo o primeiro concílio de Nicéia de 325 d.C., convocado pelo imperador romano Constantino. A data de Páscoa foi definida como o primeiro domingo após a primeira lua cheia da primavera (no hemisfério Norte). Esta data é muito próxima a 14º dia de Nisan. No caso de a data assim determinada coincidir ou se antecipar à celebração da Páscoa judaica (14 de Nisan), a Páscoa cristã deve ser adiada em uma semana para que seja conservada a analogia com a sucessão dos fatos históricos.

Mesmo havendo uma fórmula para determinar a Páscoa a cada ano, tornando-a distante ao menos uma semana da Páscoa dos judeus, o curioso e quase alarmante para os cristãos é que este ano quase coincidiu e a Igreja nada fez a respeito, ou seja, não adiou a Páscoa de uma semana, como seria o correto. Talvez essa inação por parte da Igreja seja consequência direta das tentativas de ecumenismo, o que pode parecer bom na aparência, mas poderá levar o Cristianismo novamente a diluir-se dentro do Judaísmo, perdendo a sua razão de ser.

  Novamente, porque nos primórdios do Cristianismo, quando da feitura da Bíblia - erradamente chamada de Bíblia cristã - juntou-se a ela, além dos 27 livros do Novo Testamento, incluindo, muito mais tarde, o Apocalipse, os 46 livros, atualmente considerados canônicos da religião judaica, chamados de Velho Testamento - que incluem o Torá ou Pentateuco , os Livros Históricos, os Livros Poéticos ou Sapienciais (Jó, Salmos, Provérbios, Eclesiastes e Cântico dos Cânticos - algumas outras igrejas cristãs adotando os livros Sabedoria e Eclesiástico) e os Livros dos Profetas. Além desses livros, considerados canônicos ou aceitos como verdadeiros pelas duas religiões, ficaram de fora 52 livros do Velho Testamento e 61 livros do Novo Testamento - todos considerados apócrifos.

Mas os livros que são a base da religião judaica, ou Velho Testamento, nada tem a ver com o Cristianismo. Foram adotados pelos cristãos, em momento de confusão quanto à verdadeira mensagem de Jesus, ou de tentativa de proselitismo entre os judeus. A própria religião judaica é completamente diferente da religião cristã. A única relação que existe com o Cristianismo é o fato de Jesus ter sido Judeu, porque a mensagem que ele passou é oposta à da religião dos judeus.

Ele disse que deixava aos seus seguidores apenas dois mandamentos: 1º Amar a Deus sobre todas as coisas; 2º Amar ao próximo como a si mesmo. Nada mais. E no momento em que ele falou isso, deixou claro que os dez mandamentos da religião judaica não tinham mais validade. Também colocou o amor no condicional: devemos amar ao próximo na mesma medida em que amarmos a nós mesmos. Se não gostarmos de nós, nunca poderemos amar, verdadeiramente, aos mais próximos. Ele era um judeu, submetido às leis do seu país, como todo judeu, mas trazia uma nova mensagem, que foi a mensagem do amor, da paz e da igualdade.

Nada tenho contra a religião dos judeus, que foi criada para unir um povo nômade e forjar uma raça. Mas o deus Judeu, Javé, era chamado de "Deus dos Exércitos", enquanto Jesus pregava a paz. Em nenhum momento do Novo Testamento é encontrada a palavra Javé, ou Jeová. Jesus, ao referir-se a Deus falou de um deus de bondade, a quem deu o nome de Pai e que está sempre pronto ao perdão. O deus Jeová dos judeus, de acordo com o Velho Testamento, mandava matar a todos os inimigos da nação hebraica e quando o primeiro rei judeu, Saul, desobedeceu essa ordem, depois de uma batalha, foi destituído da sua realeza.

No entanto, as igrejas cristãs pregam o Judaísmo junto com o Cristianismo, o que é um absurdo. Isto, graças ao fato de que o livro que deveria pregar unicamente a mensagem de Jesus - a Bíblia - foi unido ao chamado "Velho Testamento", que prega a mensagem do Judaísmo. E uma religião que estava confinada a uma raça, por vontade explícita dessa raça, e que somente era divulgada entre os membros dessa raça, em uma faixa estreita do Oriente Médio, graças ao Cristianismo é conhecida pelo mundo inteiro.

Porque o Cristianismo foi - e continua sendo - o principal veículo de divulgação do Judaísmo.

A Páscoa da religião judaica significa "passagem" ou "libertação", porque, segundo a fé dos judeus, o seu deus os teria tirado do Egito no dia 14 do mês de Nisan do ano 5771, de acordo com o calendário judaico. Naquele dia, depois de muito insistir com o Faraó para que o povo judeu pudesse sair do Egito, Jeová teria mandado o seu anjo para matar todos os primogênitos das famílias egípcias. Enquanto os egípcios choravam os seus filhos, os judeus foram embora, depois de um jantar que incluía um cordeiro assado e pão sem fermento.

Desde aquele dia, os judeus comemoram esse feito no dia 14 do mês de Nisan.

Os cristãos faziam o mesmo, nos primórdios do Cristianismo, porque os primeiros cristãos eram judeus. E provavelmente Jesus participou muitas vezes da celebração da páscoa judaica. A última vez foi chamada de Santa Ceia, ou Última Ceia, quando Jesus disse que ele era, doravante, o cordeiro de Deus, aquele que tirava os pecados do mundo. E disse que o pão que eles estavam comendo era o seu corpo, o corpo do cordeiro de Deus, e que o vinho que estavam bebendo era o seu sangue, o sangue do cordeiro de Deus. E pediu aos apóstolos que fizessem isso, seguidamente, para lembrá-lo. E foi naquela santa ceia que foi instituída a eucaristia.

O significado de eucaristia é "reconhecimento", "ação de graças". E uma celebração em memória da morte e ressurreição de Jesus Cristo. Também é denominada "comunhão", "ceia do Senhor", "primeira comunhão", "santa ceia", "refeição noturna do Senhor".

O evangelista Lucas registrou esse mandamento da seguinte forma: "E, tomando um pão, tendo dado graças, o partiu e lhes deu, dizendo: Isto é o meu corpo oferecido por vós; fazei isto em memória de mim. Semelhantemente, depois de cear, tomou o cálice, dizendo: Este é o cálice da Nova Aliança [ou Novo Pacto] no meu sangue derramado em favor de vós." (Lucas 22:19-20, e também Mateus 26;26-29, Marcos 14:22-25, I Coríntios 11:23-26).

Naquela noite ele foi preso, depois de ser entregue pelo traidor Judas Iscariotes ao Sinédrio, que era uma espécie de conselho maior da religião judaica. Os sacerdotes judeus o entregaram ao braço secular romano. Poncio Pilatos, que era o governador da Galiléia, entregou Jesus ao tetrarca da Galiléia, Herodes Antipas, alegando que Jesus era da jurisdição de Herodes, o qual, depois de humilhar Jesus de todas as maneiras, enviou-o de volta a Pilatos. Cabia a Pilatos a decisão. Jesus foi interrogado, açoitado e Pilatos não achou nele culpa alguma.

Naquele tempo havia o costume judeu de libertar um prisioneiro durante a Páscoa. Pilatos perguntou se queriam libertar Jesus ou Barrabás, que era um perigoso criminoso. Os judeus disseram que queriam que Pilatos crucificasse Jesus e que soltasse Barrabás. Pilatos lavou as mãos, simbolicamente, dizendo que estava isento daquele crime e que a culpa recairia sobre os judeus. Os judeus retrucaram dizendo que assumiam a culpa do crime.

Jesus foi crucificado na sexta-feira, véspera da Páscoa dos judeus, que era no sábado. Morreu e ressuscitou ao terceiro dia, no domingo, que passou a ser o dia sagrado dos cristãos, porque naquele dia Jesus venceu a morte.

Durante o I Concílio de Nicéia (325 d.C.), entre outras questões doutrinárias ficou estabelecido que a Páscoa cristã deveria ser celebrada separadamente da Páscoa judaica, porque os significados das duas Páscoas eram diferentes e também porque os judeus é que tinham mandado matar Jesus. Isso foi referendado pelo Concílio de Antioquia (341 d.C.) que proibiu os cristãos de comemorar a Páscoa junto com os judeus. Já o Concílio de Laodicéia (363 d.C.) proibiu os cristãos de observar o Shabbat e de receber prendas de judeus ou mesmo de comer pão ázimo nos festejos judaicos.

Assim, quando da instituição do Calendário Gregoriano, ficou fixado que a Páscoa aconteceria no primeiro domingo após a lua cheia que ocorre em ou logo após 21 de março. Sendo que 21 de março nem sempre é o dia do equinócio, mas para a Igreja era necessário encontrar um dia fixo, para basear a sua fórmula que estabelece a Páscoa a cada ano. Mas, principalmente, era importante que os dias da Páscoa cristã - a Semana Santa - jamais coincidissem com os dias da Páscoa judaica, porque o significado da Páscoa cristã difere completamente do significado da Páscoa judaica.

Mesmo que o Cristianismo tenha sido o veículo através do qual o Judaísmo ficou conhecido no Ocidente, devido à união da mensagem das duas religiões em um só livro, a Bíblia, são religiões diferentes com objetivos diferentes e mensagens quase opostas.

A religião judaica, de acordo com a lenda, foi criada pelo seu deus, Jeová ou Javé, para unir o povo judeu em torno do objetivo material de conquistar a Terra Prometida, que seria, hoje, a Palestina. Mesmo sofrendo todas as perseguições conhecidas através dos tempos, o judeus nunca se afastaram dessa linha religiosa e usaram-na para invadir a terra dos palestinos e confiná-los na Faixa de Gaza e na Cisjordânia. Com o apoio da ONU, que em 1948 criou o Estado de Israel em uma terra povoada por palestinos.

Mas o Cristianismo, ao contrário, não é uma religião materialista. Jesus costumava dizer: "O meu reino não é deste mundo". E pregava aos seus seguidores a humildade, a paz, o amor e a busca da igualdade entre os povos.

Mesmo com todas as contradições e erros da Igreja através dos tempos, essa mensagem de Jesus atravessou os séculos e perpetua-se como o esteio espiritual do Cristianismo. Além disso, persiste o erro histórico de se considerar o deus dos judeus o mesmo deus que Jesus chamava de Pai - e passará ainda um bom tempo antes que esse erro seja suprimido de vez.

Nesta Páscoa devemos lembrar que a ressurreição está presente em todos nós. Como seres materiais devemos, naturalmente, morrer, mas mesmo a morte é a contraparte da vida conhecida e devemos encará-la como mais uma etapa a ser percorrida sem o corpo material. Talvez uma etapa de preparação para uma vida superior e mais espiritualizada.

O ovo da Páscoa - apesar da sua utilização comercial pelo nosso atual mundo mercantilista - simboliza a ressurreição, porque tudo está em tudo e a vida é eterna, em suas diferentes formas ou aparências. Mas o principal símbolo, eternamente vivo, que devemos sempre lembrar, é o deixado por Jesus através do seu sacrifício, para nos lembrar que a vida é muito mais do que a matéria conhecida e que a busca da transcendência deve ser uma constante em todos nós.

Ele disse: "Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, mesmo que esteja morto, viverá."

Cinco mitos sobre a idade da informação



Por Robert Darnton no Observatorio da Imprensa
Reproduzido de The Chronicle of Higher Education,17/4/2011; este texto baseia-se numa palestra que o autor fez em março sobre o "Futuro das Humanidades", no Council of Independent Colleges Symposium, em Washington; tradução de Jô Amado
A confusão em torno da natureza da chamada idade da informação levou a uma situação de falsa consciência coletiva. Não é culpa de ninguém, e sim, um problema de todos porque ao tentarmos nos orientar no ciberespaço, frequentemente apreendemos coisas de forma errada e esses equívocos se disseminam tão rapidamente que são incorrigíveis. Considerados em seu conjunto, constituem a origem de uma proverbial não-sabedoria. Cinco deles se destacam:
1. "O livro morreu." Errado: são impressos a cada ano mais livros que no ano anterior. Até agora, foram publicados um milhão de novos títulos em 2011, no mundo inteiro. Na Grã-Bretanha, em um único dia – a "super quinta-feira", 1º de outubro de 2010 – foram publicadas 800 novas obras. Em relação aos Estados Unidos, os números mais recentes só cobrem 2009 e não fazem distinção entre livros novos e novas edições de livros antigos. Mas o número total – 288.355 – sugere um mercado saudável e o crescimento em 2010 e 2011 provavelmente será muito maior. Além disso, estes números, fornecidos por Bowker, não incluem a explosão na produção de livros "não-tradicionais" – mais 764.448 títulos produzidos por edições dos próprios autores ou editados, a pedido, por microempresas. E o negócio de livros também está crescendo em países emergentes, como a China e o Brasil. Qualquer que seja a forma de avaliar, a população de livros está crescendo, não decrescendo e, com certeza, não está morrendo.

Deterioração dos textos digitais

2. "Entramos na idade da informação." Este anúncio normalmente é entoado com solenidade, como se a informação não existisse em outras épocas. Mas toda era é uma era da informação, cada uma à sua maneira e de acordo com a mídia disponível nesse momento. Ninguém negaria que os modos de comunicação estão mudando rapidamente, talvez tão rapidamente quanto na época de Gutenberg, mas é um equívoco interpretar essa mudança como sem precedentes.
3. "Agora, toda a informação está disponível online." O absurdo dessa afirmação é óbvio para quem quer que já tenha feito pesquisa em arquivos. Somente uma mínima fração do material arquivado já foi lido alguma vez, muito menos foi digitalizado. A maioria das decisões judiciais, assim como a legislação – tanto estadual, quanto federal –, nunca apareceu na web. A imensa divulgação de regulações e relatórios por órgãos públicos permanece, em grande parte, inacessível aos cidadãos a quem diz respeito. O Google avalia que existem no mundo 129.864.880 livros e afirma ter digitalizado 15 milhões deles – ou cerca de 12%. Como conseguirá preencher a lacuna se a produção continuar a se expandir a uma média de um milhão de novas obras por ano? E como será divulgada maciçamente, e online, a informação em formatos não-impressos?
Metade dos filmes realizados antes de 1940 sumiu. Qual o percentual do atual material audiovisual que sobreviverá, ainda que numa aparição fugaz, na web? Apesar dos esforços para preservar os milhões de mensagens trocadas por meio de blogs, e-mails e instrumentos manuais, a maior parte do fluxo diário de informação desaparece. Os textos digitais deterioram-se muito mais facilmente que as palavras impressas em papel. Brewster Kahle, o criador do Internet Archive, avaliava, em 1997, que a média de vida de uma URL era de 44 dias. Não só a maioria das informações não aparece online, como a maioria das informações que alguma vez apareceu provavelmente se perdeu.

Transição para a ecologia digital

4. "As bibliotecas são obsoletas." Biblioteconomistas do país inteiro relatam que nunca tiveram tantos clientes. Em Harvard, nossas salas de leitura estão cheias. As 85 bibliotecas vinculadas ao sistema da Biblioteca Pública de Nova York estão abarrotadas de gente. As bibliotecas fornecem livros, vídeos e outro tipo de material, como sempre fizeram, mas também preenchem novas funções: acesso a informação para pequenas empresas, ajuda nos deveres de casa e atividades pós-escolares das crianças e informações sobre emprego para desempregados (o desaparecimento dos anúncios "precisa-se" nos jornais impressos tornou os serviços da biblioteca fundamentais para os desempregados).
Os biblioteconomistas atendem às necessidades de seus clientes de muitas maneiras novas, principalmente guiando-os através dos mistérios do ciberespaço para material digital relevante e confiável. As bibliotecas nunca foram armazéns de livros. Embora continuem a fornecer livros no futuro, também funcionarão como centros nervosos para a informação digitalizada – tanto em termos de vizinhança, quanto dos campi universitários.
5. "O futuro é digital." Relativamente verdadeiro, mas equivocado. Em 10, 20 ou 50 anos, o ambiente da informação será esmagadoramente digital, mas a predominância da comunicação eletrônica não significa que o material impresso deixe de ser importante. Pesquisa feita na História do Livro, disciplina relativamente recente, demonstrou que novos modos de comunicação não substituem os velhos – pelo menos no curto prazo. Na verdade, a publicação de manuscritos se expandiu após Gutenberg e continuou progredindo por três séculos. O rádio não destruiu o jornal, a televisão não matou o rádio e a internet não extinguiu a TV. Em cada caso, o ambiente de informação se tornou mais rico e mais complexo. É essa a experiência por que passamos nesta fase crucial de transição para uma ecologia predominantemente digital.

Leituras descontínuas

Menciono esses equívocos porque acho que eles atrapalham a compreensão das mudanças no ambiente da informação. Fazem com que as mudanças pareçam muito dramáticas. Apresentam as coisas fora de seu contexto histórico e em nítidos contrastes – antes e depois, e/ou, preto e branco. Uma visão mais sutil recusaria a noção comum de que livros velhos e e-books ocupam os extremos opostos e antagônicos num espectro tecnológico. Devia-se pensar em livros velhos e e-books como aliados, e não como inimigos. Para ilustrar esta afirmação, gostaria de fazer algumas breves observações sobre o mercado de livros – ler e escrever.
No ano passado, a venda de e-books (textos digitalizados criados para leitura manual) duplicou, respondendo por 10% das vendas no mercado de livros. Este ano, espera-se que atinjam 15%, ou mesmo 20%. Mas há indícios de que a venda de livros impressos também aumentou no mesmo período. O entusiasmo pelos e-books pode ter estimulado a leitura em geral e o mercado, como um todo, parece crescer. Novos leitores eletrônicos de livros, que operam como o ATM (protocolo de telecomunicações), reforçaram essa tendência. Um cliente entra numa livraria e solicita um texto digitalizado de um computador. O texto é baixado para o leitor eletrônico, impresso e entregue na forma de uma brochura em quatro minutos. Esta versão do serviço "impresso-por-pedido" mostra como o antiquado manuscrito pode ganhar vida nova com a adaptação à tecnologia eletrônica.
Muitos de nós nos preocupamos com a diminuição da leitura profunda, reflexiva, de ponta a ponta do livro. Deploramos a guinada para blogs, fragmentos de texto e tuítes. No caso da pesquisa, poderíamos reconhecer que os instrumentos de busca têm vantagens, mas nos recusamos a acreditar que eles possam conduzir ao tipo de compreensão que se adquire com o estudo contínuo de um livro.
Seria verdade, entretanto, que a leitura profunda diminuiu, ou mesmo que ela sempre tenha prevalecido? Estudos feitos por Kevin Sharpe, Lisa Jardine e Anthony Grafton provaram que os humanistas dos séculos 16 e 17 muitas vezes faziam leituras descontínuas, procurando passagens que poderiam ser usadas nas ácidas batalhas de retórica em juízo, ou pedaços de sabedoria que podiam ser copiados para livros banais e consultados fora de seu contexto.

Informação histórica

Em seus estudos sobre cultura entre pessoas comuns, Richard Hoggart e Michel de Certeau enfatizaram o aspecto positivo de uma leitura intermitente e em pequenas doses. Em sua opinião, cada leitor comum se apropria de livros (incluindo panfletos e romances de paixão) à sua maneira, induzindo-lhes o significado que faz sentido para sua compreensão. Longe de serem passivos, esses leitores, segundo Certeau, agem como "plagiadores", pescando um significado daquilo a que têm acesso.
A situação da escrita parece tão ruim quanto a da leitura para aqueles que só veem o declínio, com o advento da internet. Um deles lamenta-se: os livros costumavam ser escritos para o leitor comum; agora, eles são escritos pelo leitor comum. É evidente que a internet estimulou a autopublicação, mas o que há de errado nisso? Muitos escritores, com coisas importantes a dizer, nunca haviam conseguido uma editora para publicá-los – e quem achar seu trabalho de pouco valor, pode simplesmente ignorá-lo.
A versão online das publicações pagas pelo autor pode contribuir para sobrecarregar as informações, mas os editores profissionais se sentirão aliviados com esse problema e continuarão fazendo o que sempre fizeram – selecionado, editando, diagramando e negociando as melhores obras. Terão que adaptar seus talentos à internet – mas já o fazem – e podem tirar vantagem das novas possibilidades oferecidas pela nova tecnologia.
Para citar um exemplo de minha experiência, recentemente escrevi um livro impresso com um suplemento eletrônico, Poetry and the Police: Communication Networks in Eighteenth-Century Paris (Harvard University Press). Descreve como as canções de rua mobilizaram a opinião pública numa sociedade amplamente analfabeta. A cada dia, os parisienses improvisavam novas letras para antigas melodias e as canções fluíam com tamanha força que precipitaram uma crise política em 1749. Mas como é que as melodias alteravam seu significado? Depois de localizar as anotações musicais de uma dúzia de canções, pedi a uma artista de cabaré, Hélène Delavault, para gravá-las para o suplemento eletrônico do livro. Assim, o leitor pode estudar o texto das canções no livro ao mesmo tempo em que as escuta online. O ingrediente eletrônico de um antigo manuscrito torna possível explorar uma nova dimensão do passado, capturando seus sons.
Poderiam ser citados outros exemplos de como a nova tecnologia reforça velhos modos de comunicação, ao invés de miná-los. Não pretendo minimizar as dificuldades que enfrentam escritores, editores e leitores, mas acredito que uma reflexão com base na informação histórica poderia eliminar os equívocos que nos impedem de usufruir ao máximo da "idade da informação" – se assim a devemos chamar.

Volta às armas - Reaparelhamento das Forças Armadas

Do blog Aposentado Invocado

A indústria bélica está em polvorosa no Brasil. O governo vai investir mais de R$ 30 bilhões no reaparelhamento das Forças Armadas. Fusões e aquisições movimentam o mercado e atraem novas empresas, como a Embraer e a Odebrecht Por Guilherme Queiroz e Carlos Eduardo Valim
 
Para a indústria de defesa brasileira, o nome Osório carrega um fardo histórico. Projetado pela extinta Engesa, em meados da década de 1980, era tido, à época, como um tanque inovador, mais moderno e mais barato que os concorrentes. Mesmo com credenciais como essas, o Osório não conseguiu sair do estágio do protótipo da Engesa.
Numa concorrência aberta pelo governo da Arábia Saudita, foi derrotado por um similar dos Estados Unidos, o M1 Abrams. Reza a lenda que foi uma jogada diplomática não muito leal dos americanos, que acusaram o Brasil de estar alinhado à antiga União Soviética. A derrota ajudou a precipitar a falência da então maior fabricante de blindados da América Latina, que havia investido US$ 100 milhões no protótipo do Osório.
Com a morte do tanque brasileiro, boa parte da indústria local de armamentos perdeu o rumo por muito tempo. 
Agora, quase duas décadas depois, o fracasso do Osório começa a ser exorcizado com um novo ciclo de investimentos. Nos próximos 15 anos, mais de R$ 30 bilhões devem ser gastos para reaparelhar as Forças Armadas. A boa notícia é que, em vez de ser gasto na compra de equipamentos de segunda mão, descartados por outros países – prática recorrente até há pouco tempo –, esse dinheiro será aplicado na indústria nacional, chamada a desenvolver tecnologias para modernizar as obsoletas frotas do Exército, Marinha e Aeronáutica. “Saímos da vida vegetativa para o renascimento da indústria”, diz Carlos Pierantoni, presidente da Associação Brasileira das Indústrias de Materiais de Defesa (Abimde).

A justificativa para o novo ciclo de investimentos está no plano do governo de estruturar uma capacidade dissuasória contra ataques à América do Sul. “Temos recursos na região que serão objeto de disputa em 50 anos: água, solo, capacidade energética”, afirma o ministro da Defesa, Nelson Jobim. A nova Estratégia Nacional de Defesa (END) prevê duas frentes principais de investimentos: para o monitoramento das fronteiras e para a mobilidade de tropas.

A perspectiva de participar como fornecedor dos grandes projetos militares gera uma movimentação intensa no setor bélico brasileiro. Há duas semanas, o LAAD, maior evento de defesa da América Latina, realizado no Rio de Janeiro, reuniu 663 expositores de 40 países, o dobro de 2009.

Um dos “xodós” das Forças Armadas é o cargueiro KC 390, em desenvolvimento na Embraer, que deve consumir US$ 1,7 bilhão em investimento até o voo do primeiro protótipo, em 2014. Candidata a conquistar 30% do mercado mundial, a Embraer já soma 60 intenções de compra de oito países e dois parceiros internacionais na produção: a Argentina FAdeA, para construção de partes da asa, e a tcheca Aero Vodochody, que fornecerá aeroestruturas. A Embraer também já mapeou oportunidades para investir em sistemas de defesa antiaérea e radares e desenvolve um veículo aéreo não tripulado em parceria com a gaúcha AEL Sistemas S.A.
As perspectivas de negócios são tantas que a empresa, sediada em São José dos Campos, criou em março uma divisão específica para executar sua estratégia no setor de defesa. “Estima-mos participar de projetos com valor de até US$ 15 bilhões nos próximos 15 anos”, disse à DINHEIRO Luiz Carlos Aguiar, presidente da Embraer Defesa e Segurança.

A empresa não tem medido esforços para demarcar território no setor. Em março, adquiriu a Orbisat, fabricante paulista de radares, por R$ 28,5 milhões. Neste mês, anunciou a aquisição de 50% da Atech, responsável pelo projeto básico do Sistema Integrado de Monitoramento de Fronteiras (Sisfron), que vai consumir US$ 6 bilhões.

Com a aquisição, um negócio avaliado em R$ 36 milhões, a Embraer ganha espaço para ser a gestora das próximas etapas de instalação de radares e integração dos sistemas. “As Forças Armadas darão esse papel a uma companhia brasileira”, diz o general Antonino Guerra, comandante de comunicação e guerra eletrônica do Exército.
A Embraer não está sozinha nesse páreo.

Segundo o general Guerra, empresas de outros segmentos demonstraram interesse no projeto. O grupo Odebrecht, potência nas áreas petroquímica e de infraestrutura, aposta muitas fichas na área de defesa. Em 2008, o grupo já havia fechado contrato, no valor de R$ 20 bilhões, com a francesa DCNS para construir submarinos convencionais e de propulsão nuclear, além do estaleiro em que serão fabricados, no Porto de Sepetiba, no Rio de Janeiro.

No ano passado, a Odebrecht assumiu a Mectron, fabricante paulista de mísseis, e firmou uma joint venture com a francesa Cassidian, braço de defesa do grupo EADS. Esses movimentos foram consolidados há duas semanas com a criação de seu braço bélico, a Odebrecht Defesa e Tecnologia. “Acreditamos nesse mercado, mas é um projeto de longuíssimo prazo”, diz Roberto Simões, presidente da nova divisão. Outras aquisições este ano, porém, não estão descartadas.

Nesta nova etapa para o setor, um dos maiores incentivos para as empresas locais é a exigência das Forças Armadas de um percentual mínimo de componentes nacionais nos projetos em curso. A Iveco, de Minas Gerais, fábrica de caminhões da Fiat, estima em um total de 100 as empresas brasileiras que participarão da produção do blindado Guarani, que começa a ser fabricado em Sete Lagoas (MG), no fim de 2012. O contrato de R$ 6 bilhões, firmado com o Exército, prevê a entrega de 2.044 unidades com 60% de índice de nacionalização. “Todas as tecnologias, de mecânica e eletrônica à fabricação do motor, foram desenvolvidas no Brasil”, afirma Marco Mazzu, presidente da Iveco Latin America. Outra empresa instalada em Minas que vê benefícios no índice de nacionalização é a Helibrás, fabricante do helicóptero EC-725 Super Cougar. A empresa tem uma encomenda de 50 aeronaves, que serão produzidas em Itajubá (MG).
Parte das peças serão importadas da matriz – seu principal controlador é a Eurocopter, do grupo EADS – e 50% dos componentes serão nacionais. Alguns helicópteros, porém, não devem ser produzidos no Brasil. Eduardo Marson, presidente da Helibrás, não vê nisso um problema. “Nossos fornecedores locais serão integrados à enorme cadeia global da Eurocopter”, diz.

Tornar-se fornecedor em escala global é o sonho de produção de qualquer fabricante que se preze. Ainda mais num segmento que movimenta US$ 1,5 trilhão por ano no mundo. Mas o mercado interno também pode garantir pedidos da indústria para o setor civil. A paulistana Atmos, por exemplo, que desenvolve radares meteorológicos para uso militar, já pensa numa nova finalidade para seus sistemas. “A Copa do Mundo e as Olimpíadas de 2016 vão impulsionar nosso mercado”, diz Cláudio Carvas, presidente da Atmos.

Diversificar mercados é também uma chance de as empresas se tornarem menos suscetíveis às restrições no orçamento do Ministério da Defesa, uma das primeiras pastas a sofrer cortes quando o governo precisa apertar o cinto. Em 2011, a tesourada atingiu R$ 4,3 bilhões dos investimentos, forçando o Ministério da Defesa a malabarismos para manter programas como o do blindado Guarani.

Por outro lado, o setor tem se mostrado otimista com a elevação dos investimentos, que quadriplicaram nos últimos cinco anos, chegando a R$ 7,7 bilhões em 2010. Segundo o Instituto Internacional de Estudos da Paz de Estocolmo (Sipri), entidade que mede e analisa orçamentos de defesa em todo mundo, o Brasil foi o principal responsável pela alta de 5,8% dos gastos militares da América Latina. “O Brasil está buscando projetar seu poder e influência por meio da modernização militar’’, constatou a entidade.

Reforma na saúde coloca Reino Unido à beira de uma crise política

Alfonso Daniels no OperaMundi


Em meio a edifícios semidestruídos no humilde bairro de Tower Hamlets, no leste de Londres, e muito próximo da futura zona olímpica, ergue-se um dos muitos centros médicos públicos espalhados pela cidade. Diante do prédio, uma dona de casa bengalesa de 40 anos que se apresenta como Tara, uma das milhares de imigrantes que lá vivem, afirma indignada que tem de esperar mais de três meses para ser atendida por um médico especialista, embora o tempo máximo de espera seja, em teoria, de 21 dias.

"Um amigo que sentia dores no corpo levou semanas para conseguir consultar um médico de família, que lhe receitou alguns comprimidos", conta ela. "No começo, ele disse que era tuberculose. Depois, câncer. Meu amigo teve de esperar meses para consultar um especialista e acabou morrendo. Sofria de uma doença pulmonar. Neste país, se você é pobre e fica doente, está perdido".

Ao seu lado, Monique, uma jovem francesa que trabalha como assistente social e mora em Londres há oito anos, concorda acenando a cabeça: "Em meu país, você sempre pode visitar seu médico. Aqui, você é atendido por alguém diferente a cada vez, e o serviço é péssimo. Há muita burocracia, é um desastre".


Justamente para resolver esses problemas e economizar 33 bilhões de dólares em quatro anos, em meio a uma crise econômica e com um déficit público nas nuvens, o governo da coalizão conservadora e liberal-democrata britânica propôs no outono a maior reforma do Serviço Nacional de Saúde (NHS, na sigla em inglês) desde a criação da instituição, depois da Segunda Guerra Mundial. A proposta já percorreu metade do caminho para a aprovação parlamentar.

A ideia é conceder aos médicos de família o controle de 80% do orçamento de saúde, incluindo a distribuição de fundos e a compra de serviços para os pacientes, hoje a cargo de centros de gestão sanitária. A reforma também prevê a participação de empresas privadas e associações de caridade na oferta de serviços de saúde.

Alfonso Daniels

O Gill Street Health Care Center é um dos muitos centros hospitalares que apresentam problemas em Londres.

No entanto, o governo pouco esperava a tormenta política que provocaria, com fortes críticas dos sindicatos e associações médicas até a oposição trabalhista. O último a levantar a voz contra a reforma foi Norman Lamb, assessor político do vice-primeiro-ministro liberal, Nick Clegg, que neste fim de semana ameaçou renunciar se a proposta não for modificada.

Ele a qualificou de "arriscada", pois não fica claro o funcionamento da nova estrutura, embora ela deva entrar em vigor já em 2013. Outros afirmam que a entrada de empresas privadas poderia levar estas a escolher tratar os casos simples e deixar os mais complexos e custosos para os serviços públicos. E advertem para a falta de um sistema de controle sobre os novos administradores da saúde, as associações de médicos de família.

A crescente pressão obrigou na semana passada o primeiro-ministro David Cameron e seu ministro da Saúde, Andrew Lansley, a suspender temporariamente a reforma. Eles também anunciaram que, nas próximas semanas, participarão de diversos eventos para "escutar" a opinião dos cidadãos antes de reapresentar sua proposta – algo que, dizem muitos, deveria ter sido feito antes da apresentação ao Parlamento.


“É raríssimo um governo frear uma proposta nessa etapa da ratificação parlamentar. Isso reflete seu grau de preocupação”, afirmou ao Opera Mundi Chris Ham, diretor da fundação King's Fund e um dos mais destacados especialistas no tema. “O plano atual tem muitos problemas. No final, certamente haverá modificações substanciais, e não seria absurdo abrir um período de consultas”.
 
Ham observou que quase todos concordam com a necessidade de uma reforma. O fato é que, apesar de o sistema ter melhorado na última década graças a um maior investimento por parte de governos trabalhistas, a Inglaterra continua atrás da Europa, entre outros, no tratamento do câncer e nos cuidados ao idoso. Mas Ham advertiu: “A reforma, como está proposta agora, poderia piorar as coisas ainda mais. Se o governo não mudar seu curso, tentando evoluir, em vez de revolucionar o sistema, o desfecho poderá ser fatal. Logo veremos”.

Refazendo o mundo a golpes de bisturi.



O crescimento do setor de cirurgias plásticas – de 465% na última década – reflete uma tentativa de resolver a contradição entre os sonhos cada vez mais grandiosos alimentados pela mídia.

por Mona Cholllet no DiploBrasil

Na primavera de 2007, falando ao telefone com dois banqueiros, em seu escritório na Universidade de Middlebury, em Vermont, Laurie Essig anunciou que os Estados Unidos estavam na iminência de uma crise grave. Seu conhecimento de economia era parco, mas seu campo de pesquisa em sociologia, a cirurgia estética, a colocava num lugar privilegiado para assistir ao que ela chama de “a crise subprime do corpo1”.
Nos Estados Unidos, de fato, 85% dos procedimentos estéticos – não só cirurgia, mas também tratamentos a laser ou injeções – são pagos por empréstimos. Eles não requerem nenhuma contribuição mínima, como é o caso em todos os países, exceto México e Austrália. Essa situação se deve a duas medidas tomadas pelo presidente Ronald Reagan logo após sua ascensão à presidência em 1981: por um lado, a autorização da publicidade médica e, por outro, a desregulamentação do crédito. As empresas que se especializam no financiamento de procedimentos médicos, sendo a mais importante a CareCredit, uma subsidiária da General Electric, concedem empréstimos para todos, incluindo a população de baixa renda. As taxas podem chegar a 28% e dobram quando o devedor não efetua o pagamento mensal2.  Anteriormente reservada aos ricos, a cirurgia plástica se tornou um empreendimento maciço de “padronização do rostos e do corpo”. Ela visa atingir, disse um médico, “tanto as cabeleireiras como as executivas da rede WalMart”. A clientela é 90% feminina e 80% branca. Entre 2000 e 2010, os estadunidenses gastaram anualmente cerca de US$ 12,5 bilhões em procedimentos estéticos.
O crescimento do setor foi de 465% na última década e acompanhou o aumento da disparidade entre ricos e pobres. Isso reflete uma tentativa de resolver a contradição entre os sonhos cada vez mais grandiosos – alimentados pela exibição midiática do estilo de vida das classes privilegiadas – e os rendimentos cada vez menores. Mas a cirurgia estética corresponde também a uma visão liberal de um indivíduo infinitamente maleável, livre de qualquer pré-determinação e trabalhando continuamente para seu próprio aperfeiçoamento. Ela beneficia a crença de que todos os problemas e soluções, tanto o fracasso como o sucesso, são essencialmente individuais, não coletivos.
Essa lógica fechada explica por que essa indústria foi pouco afetada pela crise. Laurie Essig logo descobriu que seus conterrâneos estavam mais determinados que nunca em ir para o bisturi, mesmo que isso significasse assumir uma segunda hipotecaem sua casa. Eles percebem seu corpo como um capital a ser valorizado num mercado, seja o do amor ou o do trabalho, para ter uma chance de ver finalmente realizado o tal sonho  americano. Modificá-lo para torná-lo mais agradável parece ser o mais sábio investimento. “Achei que talvez se eu não parecesse tão velha, tão cansada, conseguiria mais clientes”, disse uma amiga de Essig que é profissional autônoma e, embora falida, gastou, apenas em injeções, US$ 800 para encher o sulco nasogeniano (entre o nariz e o canto dos lábios). Encontrou aí a única resposta que poderia conceber  uma insegurança de ordem estrutural.
Na França, a indústria cosmética não deixa de explorar essa insegurança, como fica evidente  no recente dossiê “Rejuvenescimento Especial”, da revista Elle. O caso de Chloe, 36 anos foi submetido, entre  outros, à opinião de dermatologistas: “No futuro, não é de ácido hialurônico que ela vai precisar nos sulcos leoninos da face, mas de toxina botulínica3. Quanto à sua forma oval, é necessário começar a mantê-la hoje. Aos 50, se ela  realmente perder a sua firmeza, só o facelift poderá consertá-la”4.
A ideologia liberal, lembra Laurie Essig, repousa na crença da “liberdade de escolha”. Mas o que impressiona é a  impotência que surge no discurso de seus entrevistados: “Gostemos ou não, somente a aparência conta em nossa sociedade”; “O fato é que o emprego sempre vai para aquele ou aquela que parece ser mais jovem etc.” O facelift ou botox parecem ser inevitáveis, “assim como os impostos e a morte”, observa ela. Dessa forma, eles mesmos criam a realidade à qual alegam estar submetidos como se o impacto de suas ações coletivas, de tanto ser negado, se voltasse contra eles. Como todos querem se destacar, vemos uma escalada absurda em que as frontes devem ser sempre mais suaves, as linhas cada vez mais congeladas e os seios maiores. A avalanche de imagens de corpos artificiais, lisos e brilhantes dos supermodelos e celebridades dá o tom, alimentando a ansiedade e o ódio ao corpo real.
Ironia suprema, a maioria dos médicos sonhava, inicialmente, com outra coisa, particularmente com a cirurgia reparadora ou reconstrutiva, mas eles se especializaram em implantes mamários e lipoaspirações a partir do momento em que tiveram seus próprios empréstimos para pagar.
Alguns até afirmam que seu trabalho é feminista porque ajuda as mulheres a “obter melhor opinião de si mesmas”. Isso é confundir a autoestima com o alívio que vem de “provar sua lealdade à ordem dominante”, nas palavras de Laurie Essig, em uma eficiente síntese da obra de Michel Foucault sobre o moderno exercício do poder pela disciplina dos corpos. Ela aponta que, desde sua origem, o projeto da cirurgia estética tem sido o de normalização, tanto racial como sexual, tentando apagar todos os marcadores que poderiam catalogar um sujeito como “não branco” e liberá-lo de seu corpo “degenerado”, mas também para acentuar a diferença entre os sexos, vista como sinal de superioridade racial. Os primeiros médicos praticantes queriam corrigir o “nariz de judeu ou irlandês”; hoje em dia, um cirurgião iraniano constata que “a Disney fez um dano considerável ao nariz  persa”. Quanto à paixão das mulheres brancas pelos ases do bisturi, cada vez mais dedicados a torná-las mais “femininas”, só tem feito crescer.
“Ser mais feminina e aumentar a confiança em si mesma” são os objetivos das “Jornadas de Ação Relooking”, organizadas na França pelo Polo de Emprego para mulheres desempregadas por longos períodos, em parceria com o Fundo Ereel. Quando a campanha foi lançada, com ampla cobertura da mídia, em janeiro5, a comediante Marie-Anne Chazel explicava sua  confiança nos “truques de mulher” para combater o desemprego em massa. Quem sabe logo teremos um crédito especial para os beneficiários de baixa renda?
Mona Cholllet é autora de Rêves de droite (Sonhos de direita), Paris, editora Zones, 2008.

1  Laurie Essig, American Plastic. Boob Jobs, Credit Cards, and Our Quest for Perfection, Beacon, Boston, 2010. O mesmo vale para as citações seguintes, salvo indicação em contrário.
2  Em agosto de 2010, o procurador-geral do Estado de Nova York lançou uma investigação sobre a CareCredit e outras agências de créditos médicos, acusadas de enganar seus clientes.
3  As injeções de toxina botulínica diminuem temporariamente as rugas por meio do congelamento dos músculos faciais.
4  “Spécial Rajeunir “, Elle, 4 de fevereiro de 2011.
5          “Opération relooking pour des chômeuses”,  www.nouvelobs.com, 11 de janeiro de 2011.

Ação na Aracruz representou um marco para o movimento ambientalista


Por Raquel Casiraghi
Da Página do MST



Mesmo com a abordagem bastante negativa feita pela mídia burguesa na época, a ocupação do horto florestal da Aracruz e a destruição das mudas, que completou cinco anos em 8 de março, conseguiram levar a discussão dos impactos da monocultura do pínus e do eucalipto para a população. Ambientalistas avaliam também que a ação das mulheres da Via Campesina, em 2006, foi um divisor de águas para o movimento ambientalista.

"Na hora, dentro das entidades, não conseguia se avaliar o que fazer. Me lembro que vinha, dos movimentos, solicitações de apoio formal. Nas organizações, se deu este debate de como iríamos apoiar, de como iríamos encarar esta situação porque, a partir dali, mudou tudo. Aquela ação foi um marco", diz
Clarissa Trois Abreu, da organização não-governamental Amigos da Terra Brasil.

"Esta ação representou um 'corte' entre quem apoiava a iniciativa da Via Campesina e quem se assustava com as questões de propriedade privada e de pesquisa da empresa. Possibilitou o debate interno das organizações e auxiliou muito para que se posicionassem de forma crítica em relação às empresas e ao capital, essa compreensão do que é o agronegócio, juntou tudo, se formou uma frente", avalia Fernando Campos Costa, também da Amigos da Terra Brasil,

Para Clarissa, a ação das mulheres também contribuiu para que os movimentos sociais e os ambientalistas se unissem em torno do debate e da luta contra a monocultura dos eucaliptos. "Antes da ação, o movimento em si ainda não tinha também entrado na luta. Com aquela ação, o movimento mostrou que entrou com tudo. E a partir daí, ou todos se unem, já que a causa é a mesma de todos, ou não. O que aconteceu foi que os movimentos ambientalistas e social se aproximaram", avalia.

Os ambientalistas acreditam que entrada da Via Campesina no tema contribuiu na luta já travada contra a monocultura de eucalipto. Clarissa afirma que a ocupação do horto pelas mulheres criou o fato que faltava para que a população conseguisse vislumbrar o debate que até então se fazia contra a monocultura e os seus prejuízos.

"Por mais que naqueles primeiros momentos a mídia convencional fez tudo para que o protesto  prejudicasse a luta, isso ao longo do tempo foi sendo limitado e agora, cinco anos depois, a gente tem a nítida noção de que aquele momento foi importante. Foi criado o fato, foi colocado o marco, a 'estaca' que não se tinha. E que provavelmente o movimento ambiental não iria ter esse poder, essa força popular. A entrada da Via colocou a estaca, marcou, e criou a polêmica, acho que esse era também o objetivo. Agora, tanto tempo depois, a avaliação é positiva. A ação na Aracruz e a entrada da Via foi um marco da luta contra a monocultura", analisa.

A ação das mulheres da Via Campesina, diz Clarissa, também fez com que as entidades ambientalistas se posicionassem sobre a problemática da monocultura de eucalipto. “Com a ação na Aracruz, as organizações tiveram que se mostrar, se definir, o que não era um processo fácil internamente, já que as organizações também têm seus debates internos e seus não-consensos. A ação das mulheres foi um divisor de águas também para o movimento”, afirmou Clarissa.

Depois disso, o movimento social e as organizações ambientais que se juntaram e compartilhavam das mesmas visões seguiram construindo a luta juntos.

Celulose, cinco anos depois

Entre a ação das mulheres da Via Campesina na Aracruz, em 2006, e o estopim da crise financeira mundial, em 2008, as empresas fizeram grandes investimentos no setor da celulose.
“Tentaram mostrar muito poder, até por causa da ação das mulheres, criminalizar e se promover. Mostrar um ‘outro lado’ do setor, para que a sociedade ignorasse a ação das mulheres e criminalizasse. Usaram o dinheiro para se colocar na mídia como um fator importante e que iria trazer o desenvolvimento, tanto econômico como social e ambiental“, analisa Clarissa.
“Tinham um repertório grande de publicidade em parques, nos jornais. Foi reflexo da ação das mulheres”, lembra Fernando.

Após a ação das mulheres, as três principais empresas do setor no Rio Grande do Sul – Aracruz, Votorantim e Stora Enso – expandiram seus negócios e seus plantios até 2008. Foi neste ano, com o estouro da crise financeira mundial, que as empresas, principalmente a Aracruz, que na época foi acusada até mesmo pelo governo brasileiro de fazer especulação financeira, paralisaram seus investimentos no estado.
Em 2009, o preço da celulose, taxado em dólar no mercado internacional, caiu, bem como o da lenha e o da madeira. Com isso, todos que tinham expectativa de fazer muito dinheiro também perderam.
“A falência da Aracruz só foi mais uma conseqüência da crise. Mas, por outro lado, também gerou uma oportunidade de negócio, já quem que com a quebra dela foi criada a Fibria [empresa resultante da fusão entre a Aracruz e a Votorantim], então não foi de todo prejudicial. Por mais que no mercado local as pessoas que apostaram nesse projeto foram prejudicadas, a empresa em si acabou criando uma ótima oportunidade de negócio para outras empresas que tinham condições de bancar. Assim, veio a Fibria, que ficou maior do que a própria Aracruz”.
No entanto, este negócio, que é positivo para as empresas, não refletiu na geração de emprego nem no desenvolvimento e no crescimento regional, dos municípios.
Atualmente, não há notícias de que as empresas estejam comprando grande quantia de terras no Rio Grande do Sul. A empresa chilena CMPC assumiu a fábrica da Aracruz na cidade de Guaíba, região metropolitana, e as demais estruturas da empresa. Ainda há a Stora Enso, que desistiu – pelo menos momentaneamente - de implementar uma fábrica de celulose no estado, ficando somente com as terras que tinha comprado, migrando para o Uruguai e para o projeto da Veracel na Bahia.
“Muito por conta da antipatia que eles tiveram, junto à opinião pública, de ser uma empresa estrangeira e ter comprado terras na faixa de fronteira. Ainda teve a ação das mulheres da Via Campesina em 2008 na área da empresa em Rosário do Sul, em que dezenas ficaram feridas após uma ação violenta da Brigada Militar. Isso, para a imagem da empresa, foi complicadíssimo”, opina Clarissa.

Monocultura contra Reforma Agrária

Para Clarissa Trois Abreu, da ONG Amigos da Terra, o primeiro impacto da expansão das monoculturas do Rio Grande do Sul pôde ser verificado na disputa das empresas por terras que seriam destinadas à reforma agrária.
“A partir de 2004, com a compra de terras pelas empresas, o que mais se sentiu de imediato foi bater de frente com a questão da Reforma Agrária, pois disputaram os mesmos territórios. Até podemos lembrar aquela situação da Fazenda Southall [São Gabriel, Fronteira Oeste do RS], em que o proprietário, na época, oferecia a área tanto para o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) quanto para a Aracruz”.
Antes do impacto ambiental, ficou mais clara a disputa por território, pois as empresas pretendiam comprar áreas na metade Sul gaúcho e ali já tinha todo o processo de democratização da terra, que já vinha muito antes. “O preço da terra subiu bastante, paralisando a Reforma Agrária”, avalia a ambientalista.
Em relação ao meio ambiente, Clarissa lembra que os órgãos ambientais dos governos não estavam preparados para licenciar milhares de hectares de terra das empresas em tão pouco tempo, o que provocou com que o setor da celulose dissesse que estavam emperrando o processo.
Ela também relembra toda a mobilização de organizações ambientais, movimentos populares e cientistas para que fosse feito o zoneamento ambiental da silvicultura no estado, a fim de proteger os biomas naturais da monocultura, e a pressão dos setores do agronegócio, da celulose e do próprio governo Yeda Crusius para facilitar os plantios.
“Resultou no zoneamento que a gente tem hoje, que não conseguiu restringir o plantio exatamente nas áreas naturais mais frágeis, muitas por problema de solo e de deficiência hídrica, que é o caso da Metade Sul do estado, a mesma região que atualmente sofre muito com a estiagem. Não é a toa que o zoneamento diz que é uma região frágil e que teria que ter limitação”, diz a ambientalista.

Os sacerdotes da privataria e seus braços ideológicos

É de um cinismo e desfaçatez vergonhosa a caricatura que Gustavo Ioschpe, articulista da revista Veja, faz da luta docente por condições de trabalho e salário dignos. Caberia perguntar se o douto senhor estaria tranquilo com um salário base de R$ 1.487,97, por quarenta horas semanais, para lecionar em até 10 turmas de cinquenta jovens. O desafio é: em vez de “peitar os sindicatos”, convide a sua turma para trabalhar 40 horas e acumular essa “fortuna” de salário básico. Ou, se preferir fazer um pouco mais, trabalhar em três turnos e em escolas diferentes. O artigo é de Gaudêncio Frigotto, Zacarias Gama, Eveline Algebaile, Vânia Cardoso da Mota e Hélder Molina.


Vários meios de comunicação utilizam-se de seu poder unilateral para realizar ataques truculentos a quem ousa contrariar seus interesses. O artigo de Gustavo Ioschpe, da edição de 12 de abril de 2011 da revista Veja (a campeã disparada do pensamento ultra-conservador no Brasil), não apenas confirma a opção deliberada da revista em atuar como agência de desinformação – trafegando interesses privados mal disfarçados de interesse de todos –, como mostra o exercício dessa opção pela sua mais degradada face, cujo nível, deploravelmente baixo, começa pelo título – “hora de peitar os sindicatos”. Com a arrogância que o caracteriza como aprendiz de escriba, desde o início de seu texto, o autor considera patrulha ideológica qualquer discordância das suas parvoíces.

Na década de 1960, Pier Paolo Pasolini escrevia que o fascismo arranhou a Itália, mas o monopólio da mídia a arruinou. Cinquenta anos depois, a história lhe deu inteira razão. O mesmo poderia ser dito a respeito das ditaduras e reiterados golpes que violentaram vidas, saquearam o Brasil, enquanto o monopólio privado da mídia o arruinava e o arruínam. Com efeito, os barões da mídia, ao mesmo tempo em que esbravejam pela liberdade de imprensa, usam todo o seu poder para impedir qualquer medida de regulação que contrarie seus interesses, como no caso exemplar da sua oposição à regulamentação da profissão de jornalista. Os áulicos e acólitos desta corte fazem-lhe coro.

O que trafega nessa grande mídia, no mais das vezes, são artigos de prepostos da privataria, cheios de clichês adornados de cientificismo para desqualificar, criminalizar e jogar a sociedade contra os movimentos sociais que lutam pelos direitos que lhes são usurpados, especialmente contra os sindicatos que, num contexto de relações de super- exploração e intensificação do trabalho, lutam para resguardar minimamente os interesses dos trabalhadores.

Os artigos do senhor Gustavo Ioschpe são um exemplo constrangedor dessa “vocação”. Os argumentos que utiliza no artigo recentemente publicado impressionam, seja pela tamanha tacanhez e analfabetismo cívico e social, seja pelo descomunal cinismo diante de uma categoria com os maiores índices de doenças provenientes da super-intensificação das condições precárias de trabalho.

Um dos argumentos fundamentais de Ioschpe é explicitado na seguinte afirmação:

"Cada vez mais a pesquisa demonstra que aquilo que é bom para o aluno na verdade faz com que o professor tenha que trabalhar mais, passar mais dever de casa, mais testes, ocupar de forma mais criativa o tempo de sala de aula, aprofundar-se no assunto que leciona. E aquilo que é bom para o professor – aulas mais curtas, maior salário, mais férias, maior estabilidade no emprego para montar seu plano de aula e faltar ao trabalho quando for necessário - é irrelevante ou até maléfico aos alunos".

A partir deste raciocínio de lógica formal, feito às canhas, tira duas conclusões bizarras. A primeira é relativa à atribuição do poder dos sindicatos ao seu suposto conflito de interesses com “a sociedade representada por seus filhos/alunos”: “É por haver esse potencial conflito de interesses entre a sociedade representada por seus filhos/alunos e os professores e funcionários da educação que o papel do sindicato vem ganhando importância e que os sindicatos são tão ativos (...)”.

A segunda, linearmente vinculada à anterior, tenta afirmar a existência de uma nefasta influência dos sindicatos sobre o desempenho dos alunos. Neste caso, apóia-se em pesquisa do alemão Ludger Wossmann, cujas conclusões o permitiriam afirmar que “naquelas escolas em que os sindicatos têm forte impacto na determinação do currículo os alunos têm desempenho significativamente pior”.

Os signatários deste breve texto analisam, há mais de dois anos, a agenda de trabalho de quarenta e duas entidades sindicais afiladas à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE) e acompanham ou atuam como afiliados nas ações do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior - ANDES-SN. O que extraímos destas agendas de ação dos sindicatos é, em tudo, contrário às delirantes e deletérias conclusões do articulista.

Em vez de citar pesquisas de segunda mão, para mostrar erudição e cientificidade em seu argumento, deveria apreender o que demanda uma análise efetivamente científica da realidade. Isto implicaria que de fato pesquisasse sobre a ação sindical docente e sobre os processos econômico-sociais e as políticas públicas com as quais se confrontam e dialogam e a partir das quais se constituem. Não imaginamos que um filho de banqueiros ignore que os bancos, os industriais, os latifundiários, a grande mídia têm suas federações ou organizações que fazem lobbies para ter as benesses do fundo público.

Um efetivo envolvimento com as pesquisas e com os processos sociais permitiria ao autor perceber onde se situam os verdadeiros antagonismos e “descobrir” que os sindicatos não se criaram puxando-se de um atoleiro pelos cabelos – à moda do Barão de Münchhausen –, auto inventando-se, muito menos se confrontando com os alunos e pais de alunos.

As análises que não levam isto em conta, que se inventam puxando-se pelos cabelos a partir dos atoleiros dos próprios interesses, não conseguem apreender minimamente os sentidos dessa realidade e resultam na sequência constrangedora de banalidades e de afirmações levianas como as de Ioschpe.

Uma das mais gritantes é relativa ao entendimento do autor sobre quem representa a sociedade no processo educativo. É forçoso lembrar ao douto analista que os professores, a direção da escola e os sindicatos também pertencem à sociedade e não são filhos de banqueiros nem se locupletam com vantagens provenientes dos donos do poder.

Ademais, valeria ao articulista inscrever-se num curso de história social, política e econômica para aprender uma elementar lição: o sindicato faz parte do que define a legalidade formal de uma sociedade capitalista, mas o ultra conservadorismo da revista na qual escreve e com a qual se identifica já não o reconhece em tempos de vingança do capital contra os trabalhadores.

Cabe ressaltar que todos os trocadilhos e as afirmações enfáticas não conseguem encobrir os interesses privados que defende e que afetam destrutivamente o sentido e o direito de educação básica pública, universal, gratuita, laica e unitária.

Ao contrário do que afirma a respeito da influência dos sindicatos nos currículos, o que está mediocrizando a educação básica pública é a ingerência de institutos privados, bancos e financistas do agronegócio, que infestam os conteúdos escolares com cartilhas que empobrecem o processo de formação humana com o discurso único do mercado – educação de empreendedores. E que, muitas vezes com a anuência de grande parte das administrações públicas, retiram do professor a autoridade e autonomia sobre o que ensinar e como ensinar dentro do projeto pedagógico que, por direito, eles constroem coletivamente e a partir de sua realidade.

O que o sr. Ioschpe não mostra, descaradamente, é que esses institutos privados não buscam a educação pública de qualidade e nem atender o interesse dos pais e alunos, mas lucrar com a venda de pacotes de ensino, de metodologias pasteurizadas e de assessorias.

Por fim, é de um cinismo e desfaçatez vergonhosa a caricatura que o articulista faz da luta docente por condições de trabalho e salário dignos. Caberia perguntar se o douto senhor estaria tranquilo com um salário base de R$ 1.487,97, por quarenta horas semanais, para lecionar em até 10 turmas de cinquenta jovens. O desafio é: em vez de “peitar os sindicatos”, convide a sua turma para trabalhar 40 horas e acumular essa “fortuna” de salário básico. Ou, se preferir fazer um pouco mais, trabalhar em três turnos e em escolas diferentes. Provavelmente, este piso para os docentes tem um valor bem menor que o que recebe o articulista para desqualificar e criminalizar, irresponsavelmente, uma instituição social que representa a maior parcela de trabalhadores no mundo.

Mas a preocupação do articulista e da revista que o acolhe pode ir aumentando, porque quando o cinismo e a desfaçatez vão além da conta, ajudam a entender que aqueles que ainda não estão sindicalizados devem fazê-lo o mais rápido possível.

Gaudêncio Frigotto, Zacarias Gama, Eveline Algebaile são professores do
Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFH/UERJ).

Vânia Cardoso da Mota é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e colaboradora do PPFH/UERJ.

Hélder Molina é educador, assessor sindical e doutorando do PPFH/UERJ.

Complexidade em educação


JUREMIR MACHADO DA SILVA*
 
Ontem, falei aqui das dificuldades de ser complexo. É muito complicado. Daí a preferência de alguns pelos simplismo. Em educação, complexos e simplistas travam batalhas e mais batalhas. O nostálgico pedagógico adora dizer que no seu tempo era melhor. Antigamente é que era bom. De que tempo se fala? Do século XX da Primeira ou da Segunda Guerra Mundial? Do nazismo ou do comunismo? Das ditaduras sul-americanas ou da Guerra Fria? Antigamente é que era bom: o professor ensinava e o aluno aprendia. A maioria esmagadora da população era de analfabetos. Eta, tempo bom! Conheço um sujeito, latinista deslumbrado, cujos raciocínios confusos me impressionam, que vive dizendo: "Quem estuda latim pensa com mais clareza".

Os nostálgicos desse passado mítico defendem a volta do "ensino tradicional", algo como disciplina férrea, tabuada na ponta da língua, ditado todo dia, os afluentes do Amazonas na memória, alunos levantando quando o professor entra e, se duvidar, aula de moral e cívica. Estou, claro, simplificando. Sonham com um tempo em que memorizar era decisivo, pois não havia memória artificial. Querem voltar à era pré-Google. Já os novos pedagogos apostam no lúdico, na liberdade e na construção do conhecimento pelo principal interessado, o aluno. Costumam detonar as chamadas aulas expositivas, aquelas em que o professor fala e o aluno escuta. Ou finge. Exageram um pouco. As aulas podem e devem ser lúdicas. Mas sempre haverá a exigência de uma pontinha de sacrifício. Também se aprende ouvindo. Ou ninguém pagaria R$ 200 mil por uma palestra do Lula. Nem haveria público para o Fronteiras do Pensamento. Ou é puro espetáculo?

É mais difícil ser professor hoje: precisa convencer, encantar, mobilizar e liderar. Não funciona na palmatória, no grão de milho, no castigo ou no discurso de autoridade. É mais fácil ser professor hoje: há mais informação disponível e mais meios tecnológicos de acesso a essas informações. Quem busca soluções simplistas para problemas complexos, pensa assim: precisamos reprovar mais. É a "doma" tradicional. Na paulada. Sempre me revoltou uma coisa na administração do ensino: o aluno cursava, sei lá, seis matérias num determinado ano da escola. Rodava numa. Era obrigado a repetir todas. Por quê? Porque a escola não sabia se organizar de outra maneira para oferecer-lhe a repetição da disciplina em que fora reprovado permitindo que avançasse nas outras. Para ficar nessa linguagem crua, a punição era desproporcional ao erro. A questão maior era de custos.

Obrigava-se o aluno a repetir tudo por uma questão de economia. Era mais fácil e mais barato inseri-lo totalmente na turma seguinte. Ainda é? Sou professor universitário. O nível dos alunos que nos chega a cada semestre é muito bom. Não fica atrás, por exemplo, do nível da minha turma, que entrou na universidade em 1980. Em alguns aspectos, os alunos de hoje são superiores. Por exemplo, em domínio de língua estrangeira. Chega de nostalgia. Cada época produz o seu imaginário pedagógico.

*JUREMIR MACHADO DA SILVA é escritor, jornalista e professor

** Artigo publicado no jornal Correio do Povo, edição de 19 de abril de 2011

O diário do Araguaia


Em entrevista, o jornalista Lucas Figueiredo fala dos manuscritos de Maurício Grabois, líder da guerrilha, revelados na próxima edição de CartaCapital e que foram mantidos sob sigilo pelo Exército por 38 anos. Leia também a íntegra do documento histórico
Durante 605 dias, o Velho Mário, nome verdadeiro Maurício Grabois, dirigente histórico do PCdoB e líder da Guerrilha do Araguaia, registrou em diário a saga dos 68 combatentes que se isolaram na Amazônia com o propósito de tomar o poder dos militares. Entre registros factuais e impressões pessoais, o comandante escreveu mais de 86 mil palavras até ser executado pelos militares em 25 de dezembro de 1973. O diário foi recolhido pelos seus algozes e, posteriormente, copiado em forma de documento digitado e guardado na grande gaveta de papéis secretos do Exército.
O mistério acabou. CartaCapital obteve uma cópia integral do diário. Trata-se de uma visão particular de Grabois, quase sempre sozinho a anotar os momentos de angústia e tensão na mata. Em entrevista, o jornalista Lucas Figueiredo, autor da reportagem de capa da edição que chega às bancas a partir desta quinta-feira 21, fala sobre o diário, cuja íntegra original pode ser lida aqui e uma versão explicativa, aqui.

 CartaCapital: O que mais chamou a sua atenção no diário de Grabois?

Lucas Figueiredo: Esse diário é o registro histórico mais aprofundado da Guerrilha do Araguaia. O documento possui mais de 86 mil palavras. Para se ter uma ideia, o texto digitalizado completou 150 páginas de tamanho A4, que cobrem 605 dias de conflito. Além de lançar luzes sobre esse episódio nebuloso da ditadura, o documento é uma peça valiosa por incluir o relato pessoal de Grabois. Toda a sua dor, angústia, solidão, saudades da família estão contempladas no texto, que revela o lado humano do guerrilheiro.

CC: O que esse material acrescenta para a compreensão da guerrilha?

LF: Pela primeira vez temos acesso a um relato mais profundo por parte dos guerrilheiros do período mais sangrento da Guerrilha do Araguaia. Grabois foi executado em 25 de dezembro de 1973. Foi um dos últimos insurgentes a morrer. Na prática, houve três grandes campanhas dos militares contra a guerrilha. Na última, não houve preocupação de efetuar prisões, e sim de eliminar os combatentes. Como o diário vai de abril de 1972 a dezembro de 1973, temos mais informações sobre essa fase final. Os poucos sobreviventes, não mais do que meia dúzia, não deixaram relatos consistentes. Um deles, Ângelo Arroyo, morreria em 1976 na chacina da Lapa, no Rio de Janeiro. Os demais eram desertores, não quiseram falar muito sobre o que aconteceu. Esse diário está nos arquivos sigilosos das Forças Armadas desde então. Só foi revelado agora por CartaCapital.

CC: Como você definiria a liderança exercida por Grabois?

LF: Ele era muito mais rígido com os outros do que com ele mesmo ou com o seu partido, o PCdoB. Grabois tinha sob o seu comando 68 combatentes, em sua maioria jovens na faixa dos 25 anos, estudantes universitários ou profissionais liberais. Gente que nunca pegou em armas antes, que nunca teve treinamento militar. Ele esperava que esses 68 neófitos, como costumava dizer, fossem capazes de enfrentar soldados profissionais das três Forças Armadas, agentes da Polícia Federal e policiais de três estados diferentes. Exigia rigor absoluto, erro zero. Como se esse pequeno grupo pudesse atuar como rambos no Araguaia. Além disso, Grabois teve graves erros de avaliação. Imaginava que, com o tempo, as massas iriam aderir à guerrilha. Mas a população local oferecia apenas apoio pontual, doava comida e oferecia abrigo para os combatentes pernoitarem em algumas ocasiões. Jamais os campesinos se dispuseram a engrossar as fileiras da insurgência. Grabois também costuma ouvir muito a Rádio Tirana, da Albânia, que pregava propaganda comunista e alardeava um grande movimento insurrecional no Araguaia. Ele passou a acreditar no que escutava. A rádio passava propaganda e ele tomava como verdade. Trata-se de um erro de avaliação indesculpável para um líder revolucionário.
A reportagem completa sobre o diário de Grabois está na edição impressa de CartaCapital que chega às bancas em São Paulo na quinta-feira 21 e no resto do País na sexta-feira 22.

A bolha restaurada (ou a turbulência em céu azul)


O duplo choque ao qual estão sujeitos os países periféricos, após o desdobramento da crise de 2008, traz novos constrangimentos e não pode ser gerido tão somente com instrumentos macroeconômicos convencionais, sob pena de produzir graves crises nesses países. Por exemplo, a tentativa de reduzir o choque inflacionário decorrente do aumento de preços das commodities, por meio da política monetária, além de relativamente inócuo, exacerba a atração de novos capitais. Deixar a moeda nacional apreciar como resposta, compromete de modo significativo a competitividade das exportações de manufaturados. O artigo é de Ricardo Carneiro.


A economia brasileira, da América Latina, e por que não dizer, do conjunto dos países periféricos, vive hoje uma conjuntura peculiar marcada por um duplo choque: o dos elevados e crescentes fluxos de capitais para eles direcionados, e o dos altos e voláteis preços das commodities. Aquilo que poderia ser uma benesse termina por se constituir numa perturbação, internalizando desde fora desequilíbrios com quais a política econômica tem que lidar, obrigando-a a abandonar prioridades domésticas em benefício da gestão desses choques externos.

O momento atual ressalta como patéticas as intepretações das agências multilaterais – FMI e Banco Mundial – e segmentos dos mercados financeiros internacionais, que desde alguns anos vêm insistindo no decoupling das economias emergentes, entendida como a capacidade dessas últimas em manter elevados ritmos de crescimento, de forma independente da trajetória das economias desenvolvidas. Esta tese esteve ancorada em observações empíricas - como o ritmo mais rápido de crescimento dos emergentes – desconsiderando os mecanismos de geração e transmissão desse crescimento e, mais recentemente, enfatizou a capacidade de preservação desse último, sem novamente atentar para as implicações da forma pela qual a crise foi equacionada nos países centrais.

O que parecia ser uma trajetória benigna e independente, tem se transformado numa crescente perturbação, com apreciações cambiais indesejadas, pressões inflacionárias e desaceleração do crescimento doméstico nos países periféricos. Para lidar com essas consequências do duplo choque, a política macroeconômica convencional tem sido impotente exigindo a crescente utilização de instrumentos não convencionais, como as políticas macro-prudenciais e de regulação, sob pena de agravar ainda mais os desequilíbrios iniciais e lançar essas economias numa trajetória de baixo crescimento ou recrudescimento da inflação. As tarefas que se exige da política econômica no plano nacional são, portanto, ingentes e tão mais complexas quanto menores forem as mudanças a serem implementadas no plano internacional.

1. Os choques internacionais
Em trabalho recente, Ilmar Akyuz, o economista chefe do South Center, discute os determinantes dos fluxos de capitais para os países periféricos nos vários ciclos, desde o pós-guerra. Com a correta perspectiva de que esses fluxos tem seu determinante principal, nas variações da preferencia pela liquidez/aversão ao risco nas economias centrais, o autor chega aos determinantes do ciclo recente associando-os à política monetária americana, de criação de liquidez por meio do quantitative easing, uma forma de injeção de moeda na economia, em alta escala, por meio de compra de títulos públicos de maturidade variada e, portanto, de manutenção de baixas taxas de juros em vários prazos. O autor ressalta o baixíssimo patamar de taxa de juros de curto prazo, próxima da fronteira zero, com fator crucial na originação de fluxos de capitais especulativos em direção aos países periféricos, cujo sentido maior é a busca de retorno mais altos proporcionados por diferencial por taxas de juros ou, simplesmente por rendimentos mais altos nos vários mercados de ativos. Como tem sido observado historicamente, esses fluxos de capitais geram bolhas expressivas nos mercados cambiais, de ativos e de crédito, além de deprimirem a competitividade das exportações de manufaturas.

A particularidade do auge do ciclo recente, após 2003, é que nele se observa também um substancial aumento e volatilidade nos preços das commodities. Com o mesmo padrão dos fluxos de capitais, esses preços sobem continuadamente desde essa data, sofrendo uma brusca queda em 2009, mas já ultrapassando o pico anterior após o primeiro trimestre de 2011. O essencial a destacar é que a simultaneidade entre os dois movimentos cria uma situação peculiar, de duplo choque, com determinantes semelhantes, exacerbando as suas implicações e as dificuldades em lidar com seus movimentos.

Atribuir ao ciclo de preços de commodities, as mesmas causas dos fluxos de capitais parece, à primeira vista, uma impropriedade. Isto porque a elevação desses preços está bastante associada ao ciclo forte e continuado de crescimento dos países asiáticos, em particular da China e da Índia, e às características da produção desses bens. Todavia, o argumento não desconhece esses importantes impulsos para o aumento dos preços, mas ressalta o caráter especulativo implícito tanto na magnitude da sua variação como também na sua volatilidade.

Diversos trabalhos da UNCTAD têm procurado caracterizar a relevância dos processos especulativos na formação dos preços das commodities. O aspecto mais saliente é a crescente dominância dos mercados de derivativos – futuros e opções - e dos investidores financeiros, na determinação dos preços nesses mercados que se transmitem por arbitragem para os mercados à vista. A presença maciça desses especuladores, para os quais as commodities passam a constituir parte relevante de seus portfólios, termina por conectar os mercados desses bens ao comportamento de variáveis-chave com a taxa de juros de curto prazo, conformando uma operação de carry trade. O baixo patamar da taxa de juros e as expectativas de sua preservação, decorrentes da política monetária americana, têm estimulado as operações de especulação, o overshooting, e a volatilidade dos preços das commodities.

O mesmo tipo de argumentação pode ser utilizado para explicar o aumento desmesurado dos fluxos de capitais. De um lado, não se pode negar que há fatores de atração relevantes, pois a melhora do comércio exterior desses países, decorrentes do crescimento global e, para vários latino-americanos, da melhoria dos preços de intercâmbio, permitiu aprimorar consideravelmente os fundamentos, por meio da acumulação de reservas internacionais e redução do endividamento público líquido, externo e interno. Mas, o overshooting só se explica pelo diferencial de rentabilidade que foi significativamente ampliado com a redução da taxa de juros americana e das demais economias desenvolvidas.

Em defesa da política econômica vigente, argumentam as autoridades monetárias norte-americanas que esta é a única forma de manter o estímulo ao crescimento, em uma economia debilitada pela crise financeira. Dado que o socorro inicial, por parte do setor público, implicou numa absorção de dívida do setor privado e num aumento substancial do déficit, o que contribuiu ainda mais para ampliar a dívida pública, a política fiscal viu-se crescentemente manietada. De novo, embora não falte significância ao argumento, ele não explica porque se despreza os efeitos que esse perfil de política tem no restante do mundo, ainda mais porque se trata de ações de política em torno de uma moeda reserva.

O fato apontado acima põe em relevo a contradição clássica, da moeda reserva internacional ser uma moeda nacional, no caso, o dólar. Sendo assim, a política deveria prever salvaguardas para os demais países contra os seus efeitos colaterais. Se estas salvaguardas existissem, na forma, por exemplo, de limitação da mobilidade de capitais, elas certamente não inviabilizariam a implementação e a efetividade das políticas monetárias.

Todavia, implicariam em reduzir o papel do dólar como moeda reserva. Essa é a razão essencial que explica a sua não disseminação, ou seja, o interesse norte-americano em preservar o papel do dólar e sua seignioriage.

2. Os contornos da política econômica
Num importante documento lançado após a crise de 2008, o FMI examina criticamente a política econômica posta em prática nos países desenvolvidos, concluindo que a ênfase exclusiva na estabilidade de preços e, a despreocupação com as dimensões regulatórias do sistema financeiro, terminaram por engendrar a crise. Dentre as suas propostas de revisão do arcabouço da política econômica nos países centrais, destaca-se claramente uma revisão do papel e ênfase acentuada na política regulatória. A combinação desta última com políticas macroeconômicas adequadas – sem precedências ou hierarquias – criaria o clima de estabilidade para a operação da economia, sem os riscos de eventuais desequilíbrios financeiros como os observados na crise recente.

Não deixa de ser curioso que ao tratar da mesma questão com foco nos países emergentes, o FMI mude as suas ênfases. Assim, por exemplo, ao discutir as relações entre as políticas macroeconômicas e a política regulatória – no caso a política de controle dos fluxos de capitais – estabelece uma hierarquia entre elas propugnando que as últimas só devam ser utilizadas como instrumento de última instância. Partem do princípio de que as políticas de regulação dos fluxos de capitais seriam utilizadas para reparar o mau funcionamento das políticas macroeconômicas, ou seja, o caráter disciplinador da abertura financeira sobre o perfil da política macroeconômica seria impedido de funcionar, num contexto de restrição da mobilidade de capitais.

O argumento, além de incoerente; talvez porque questiona a mobilidade de capitais, e fira os interesses do maior sócio do FMI; deixa de considerar importantes implicações dos fluxos de capitais para os países periféricos: a desregulação desses fluxos tem os mesmos efeitos para esses países, do que a desregulação financeira para os países centrais. Ou seja, por meio da valorização/desvalorização das moedas locais, o movimento de capitais tem sido um dos principais determinantes das bolhas de preços de ativos e/ou de crédito, do seu inflar quando da fase de absorção e, do estouro, durante a saída. De forma diferente do que diz o FMI, em muitas ocasiões, um perfil saudável e adequado de políticas e situações macroeconômicas se viu deteriorado pelo excessivo afluxo de capitais.

O duplo choque ao qual estão sujeitos os países periféricos, após o desdobramento da crise de 2008, pela sua intensidade, traz novos constrangimentos e não pode ser gerido tão somente com os instrumentos macroeconômicos convencionais, sob pena de produzir graves crises nesses países. Por exemplo, a tentativa de reduzir o choque inflacionário decorrente do aumento de preços das commodities, por meio da política monetária, além de relativamente inócuo, exacerba a atração de novos capitais. Deixar a moeda nacional apreciar como resposta, compromete de modo significativo a competitividade das exportações de manufaturados. A utilização da política fiscal via saldo primário, para anular o choque, tem os mesmos inconvenientes no que tange à trajetória inflacionária. Pode ser mais eficaz, no que se refere à esterilização do saldo de divisas, mas a magnitude do choque pode torná-la insuficiente, além de inviabilizar políticas redistributivas e de estímulo ao crescimento em curso nesses países.

De tudo isso, se conclui que a política econômica dos países periféricos terá que mudar necessariamente seu perfil encaminhando-se para práticas não canônicas, sem esperar mudanças significativas no arcabouço da regulação global. O seu sentido geral, será o de combinar a política regulatória com as políticas macroeconômicas convencionais, sem estabelecimento de hierarquias ou prioridades. O objetivo maior, pelo menos na atual conjuntura, será o de insular as economias do duplo choque em andamento. Para tanto, terá que aperfeiçoar os instrumentos de controle dos fluxos de capitais com a preocupação de estendê-los aos mercados de derivativos. Por outro lado, precisará criar ou aperfeiçoar políticas capazes de dirimir os choques de preços das commodities. Nessa direção, uma medida importante seria o estabelecimento ou ampliação dos fundos de estabilização com recursos oriundos da tributação extraordinária das exportações de commodities.

(*) Professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP