A desordem financeira mundial não cederá tão
cedo, nem tão facilmente. A consciência dessa travessia histórica é um
dado fundamental para a ação política em nosso tempo.
O movimento
estrutural de expansão do capital financeiro, cuja supremacia determina
a dinâmica da economia e impõe dramáticos constrangimentos à soberania
democrática da sociedade antecede e realimenta o colapso mundial
iniciado em 2007/2008. (Leia mais sobre esse tema nos
capítulos inéditos do novo livro de Luiz Gonzaga Belluzzo publicados por Carta Maior.)
Não
há economicismo nessa constatação. A política contribuiu de maneira
inestimável para o modo como essa lógica se impôs, a velocidade com que
ela se consolidou, a virulência de sua hegemonia e a brutal agonia da
decadência atual.
A espoleta da maior crise do capitalismo desde
1929 foi o recuo desastroso do controle da Democracia sobre o poder do
Dinheiro. Seu vetor, o desmonte das travas regulatórias do sistema
bancário consolidado no pós-guerra, não foi obra do acaso.
Recuos
e derrotas acumulados pela esquerda mundial desde os anos 70, sobretudo
a colonização de seu arcabouço programático pelos valores e interditos
neoliberais, alargaram os vertedouros para o espraiamento de uma
dominância financeira , cuja presença tornou-se ubíqua em todas as
esferas da vida humana.
A queda do Muro de Berlim em novembro de
1989 sancionou no imaginário social a supremacia de uma ordem
regressiva que agora vive a sua fase crepuscular.
Recolher esse caudal selvagem aos diques preexistentes do século 20 é tão plausível quanto devolver a pasta de dente ao tubo.
A
sociedade que cedeu a soberania ao suposto poder autorregulador dos
mercados perdeu a capacidade institucional de gerar antídotos às
degenerações intrínsecas a essa renúncia.
A democracia terá que reinventar-se para que tal possibilidade se recoloque no horizonte da ação política.
Massas
‘indignadas’ reunidas nas ruas e praças da periferia européia, hoje o
vulcão mais ativo da crise mundial, sinalizam um deslocamento de forças
rumo a esse ponto de mutação.
No Brasil, a greve simbólica de
algumas horas decretada pelos operários metalúrgicos do ABC paulista, na
sexta-feira, dia 08-07, sugere uma condensação de consciência política
na mesma direção.
Operários liderados pelo sindicalismo mais
forte do país, um dos mais organizados do mundo, que gerou o PT e três
presidências da República com a energia liberada pelos levantes
grevistas dos anos 70/80, lutam agora contra a desindustrialização.
Que
o noticiário econômico e político tenha dispensado pouca ou nenhuma
atenção à singularidade desse evento apenas confirma a inapetência desse
jornalismo para enxergar além da lógica mercadista.
A nova
agenda do ABC marca um salto na compreensão das interações perversas que
subordinam o emprego, o salário e a própria sobrevivência operária à
corrosão industrial e ao seu algoz: as taxas de juros praticadas no
país.
No Brasil, a política monetária --esfera do Estado sob a
prerrogativa absoluta dos mercados financeiros-- oferece aos capitais
especulativos 6% de valorização real ao ano. A média mundial essa taxa
oscila entre zero e negativa.
No pós-crise, a confluência desse
lubrificante com a robustez do mercado nacional, mais a liberdade
cambial, transformou-se em armadilha cambial. Contra a produção e o
emprego local. A valorização da moeda desloca demanda e vagas para o
exterior via importações.
Na última sexta-feira, o presidente do
sindicato dos metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, liderou uma passeata de
milhares de operários que desligaram as máquinas para protestar contra a
desindustrialização embutida nessa engrenagem.
Nobre fez uma rápida conta para ilustrar o estrago em curso no país.
Um milhão de automóveis importados ingressarão no mercado brasileiro este ano, segundo o dirigente do ABC.
É
mais do que 1/3 das 2, 8 milhões de unidades fabricadas no país em
2010, que empregaram 138 mil operários nas linhas de montagem.
A
importação prevista em 2011, portanto, corresponde a uma perda
potencial de oportunidades de trabalho equivalente a 40 mil empregos. A
Fiat, a maior fábrica do país hoje tem 38 mil funcionários.
Outras
correlações entre a política monetária e as condições da vida social
poderão assumir um teor igualmente explosivo, caso as lideranças
sindicais resolvam incorporá-las à agenda das mobilizações operárias.
Os
juros da dívida interna custaram ao país R$ 213 bi nos últimos 12
meses (uma parte paga, uma parte agregada ao saldo devedor).
O orçamento reservado à educação pública brasileira em 2011 é inferior a 1/3 disso, R$ 65 bi.
O financiamento de 2 milhões de residências do Minha Casa, Minha Vida vai custar R$ 125 bi aos fundos públicos em quatro anos.
Significa
que um ano de juro da dívida daria quase para dobrar a oferta de
habitações populares. Ou zerar o déficit de sete milhões de unidades em
pouco mais de três anos.
Os investimentos totais do PAC em
infraestrutura em estradas saneamento, energia elétrica etc este ano vão
atingir R$ 32 bi em 2011. O juro da dívida custa seis vezes mais.
Um
ano de juro da dívida equivale a 71 anos de merenda escolar diária
para 47 milhões de crianças e adolescentes da rede pública brasileira.
O
Bolsa Família poderia elevar o benefício médio do programa para R$
1.400,00 mensais, contra média atual de R$ 155,0, se fosse possível
inverter os fluxos: os rentistas ficariam com os R$ 17 bi do programa e
as 12,3 milhões de famílias mais pobres do país teriam os bilhões
devorados por eles.
O tema que os operários do ABC acabam de incorporar a sua agenda
é a síntese maléfica dessa dinâmica.
Dois
pilares da hegemonia neoliberal condensam-se para desencadear o
processo de desindustrialização: a livre mobilidade dos capitais e a
captura dos fundos públicos pelo capital financeiro, através do
pagamento de juros aos títulos da dívida interna.
Há duas formas de se quebrar essa simbiose que sequestra a democracia no cativeiro de interdições financeiras.
Uma derrubada fulminante dos juros aboliria o incentivo do
carry-trade.
A expressão refere-se ao ganho diferencial obtido entre a tomada
especulativa de recursos a juro zero nos EUA, por exemplo, e sua
aplicação aqui a 6% reais ao ano, fora o plus da desvalorização cambial
no período
O inconveniente de uma queda abrupta dos juros é o seu
potencial inflacionário. O menor afluxo de capitais daí decorrente
encareceria as importações e sancionaria reajustes internos de preços.
Uma alternativa seria centralizar o câmbio no Banco Central.
O
Estado teria o monopólio sobre a entradas e a saída de moeda forte.
Capitais especulativos seriam barrados em quarentena. A indigestão
cambial que hoje valoriza a moeda brasileira e promove a importação
desenfreada de manufaturas seria revertida.
Embora considere essa
hipótese de difícil implementação, por conta das resistências
políticas, a economista Daniela Prates, da Unicamp, lembra que o
governo dispõe de instrumento legal para fazê-lo.
“Toda a
liberação de capital no país foi autorizada através de medida provisória
do Banco Central, sem passar pelo Congresso. Não é lei. A lei
verdadeira que trata da matéria, a 4131 continua em vigor”, explica.
Instituída
em 1962, a Lei 4131 sobreviveu à ditadura militar protegida pelo verniz
nacionalista de alguns segmentos do Exército.
No ciclo de
desregulação ortodoxa, o tucanato preferiu enfraquece-la –o que ocorreu
também no primeiro mandato de Lula, quando Antonio Palocci era ministro
da fazenda - a correr o risco de um desgastante empenho pela sua
revogação no Congresso.
Basicamente, a 4131 dá ao Estado
brasileiro poderes cambiais equivalentes aos exercidos hoje pelo governo
chinês, e que explicam uma parte do êxito exportador da nova fábrica
manufatureira do mundo.
Em vez da livre mobilidade de capitais
–que tucanos como Pérsio Arida querem transformar em livre
conversibilidade, o que implica renunciar à moeda própria - a 4131 prevê
o monopólio cambial do Estado brasileiro.
Se quiser o governo
tem amparo legal para controlar o ingresso de capitais de risco, a
inversão inicial ou reinvestimento, bem como empréstimos e
financiamentos, ademais das remessas na forma de licenças de patentes e
marcas, contratos de assistência técnica, outros serviços e
transferências de patrimônio etc.
Desprovida das forças políticas
que lhe deram sustentação e pertinência no passado, a 4131 soa hoje
como um anacronismo, quase um zumbi-jurídico no baile neoliberal.
A crise que liberou novos atores e novas agendas sugere, porém, que esse vazio de conteúdo histórico pode mudar.
Se
o FMI já admite o recurso ao controle de capitais – hipótese keynesiana
prevista no seu estatuto que também resistiu ao vale tudo das últimas
décadas — e os metalúrgicos do ABC decidiram marchar contra a
industrialização, a 4131 pode, em tese, ganhar um aggiornamento. E
assumir nova pertinência na agenda do desenvolvimento pós-crise.
O governo por enquanto tem preferido agir de forma gradualista contra o tsunami especulativo de dólares.
“Mas
o gradualismo não está dando resultado”, contrapõe a economista Daniela
Prates, professora da Unicamp. Embora as autoridades brasileiras tenham
tomado uma série de medidas para conter o ingresso de capitais
especulativos –aumento do IOF de 6% sobre captações de empresas no
exterior; aumento do compulsório bancário para captações externas com
prazo inferior a dois anos etc— o preço da moeda norte-americana, de
fato, continua a deslizar em relação ao real.
Embora o ingresso de divisas tenha caído fortemente no último trimestre.
no
início de julho, o dólar atingiu o valor mais baixo desde 1999. Diante
do revés, o governo resolveu agir sobre um flanco que maximiza as
distorções cambiais: o mercado futuro . Uma espécie de guichê de aposta
especulativa sobre a evolução do câmbio, essa roleta gira atualmente
US$ 23 bilhões, volume bem superior ao movimento físico diário de moeda
estrangeira no país.
Em tese, o mercado futuro deveria proteger
exportadores e importadores que fecham a sua taxa cambial previamente,
precavendo-se contra surpresas na hora de efetivar compras ou vendas.
A
exemplo dos fundos hedge, porém, e das bolsas de commodities, o que
deveria ser um fator de estabilidade foi capturado pelo dinheiro
especulativo. No caso brasileiro, isso se traduz em apostas crescentes
na desvalorização do dólar com lucros extras nas operações de
carry-trade (além do juro, ganha-se mais dólares na reconversão cambial na hora da remessa).
A
queda de 3% no valor do dólar na segunda quinzena de junho, por
exemplo, deu a esses apostadores ‘vendidos’ na moeda norte-americana um
ganho equivalente a 24 meses de carregamento de títulos do Tesouro
norte-americano. Repetindo, em 15 dias a rentabilidade de 24 meses...
Para
reduzir esse atrativo descomunal, o governo subiu um novo degrau no
gradualismo na sexta-feira (08-07), obrigando os bancos a recolher no
BC o equivalente a 60% do valor das suas posições ‘vendidos’ no
mercado futuro.
A economista Daniela Prates acredita que a
‘paulada’ deveria ser mais direcionada ao capital estrangeiro que vem
engordar no jogo cambial.
“Seria preciso”, explica, “exigir que
as apostas no câmbio futuro tivessem um maior comprometimento em moeda
física. O depósito exigido atualmente é de apenas 8% do valor do
contrato”.
Tal alavancagem é absurda para as condições de um
país espremido pelo desequilíbrio cambial: com US$ 8 milhões de depósito
efetivo, por exemplo, o especulador movimenta contratos no valor de
US$ 100 milhões e exerce uma influencia desproporcional sobre a taxa de
câmbio do país.
Daniela Prates entende que a fase da mitigação esgotou seus instrumentos e o governo precisa agir com maior contundência.
Ela
recomenda também uma ‘paulada’ no IOF sobre apostas cambiais no
mercado futuro .E sugere: “A cobrança deveria recair sobre o valor total
dos contratos e não apenas sobre o depósito de garantia, como acontece
atualmente”.
Medidas incrementais mais duras que o mercado tem
sucessivamente contornado, ou o resgate do controle de capitais
permitido pela lei 4131? A decisão na verdade não depende apenas de
escolhas teóricas. “Estamos diante de um fator político, assim como a
explicação para a taxa de juros vigente no país extrapola razões de
natureza meramente econômica”, resume a economista da Unicamp.
Nos
anos 70, quando a disposição dos sindicatos do ABC de derrubar o
arrocho salarial coincidiu com a saturação política e social de amplas
camadas da sociedade brasileira em relação à ditadura, os metalúrgicos
souberam ir além dos limites corporativos para liderar uma nova agenda
histórica.
Ainda é cedo para saber se eles podem repetir a façanha agora.
Os desafios e a relação de forças são distintos. Em alguns aspectos até mais favoráveis.
Existe
maior organização e capilaridade das forças de esquerda no país; há
liberdade de expressão e o governo tem recorte progressista.
Raras
vezes, exceto em breves momentos da disputa eleitoral dos últimos anos
essa paleta de forças se mobilizou de forma coordenada e contundente. Em
certa medida, é desconhecida a extensão de seu poder.
Incerto
também é o comportamento político da massa de 50 milhões de brasileiros
que ascenderam socialmente através das políticas públicas implantadas
desde 2003.
Uma certeza, porém, emerge das tensões e
esgotamentos refletidos nos indicadores econômicos do pós-crise mundial:
o tempo do fatalismo econômico parece ter chegado ao fim. A política
está de volta às ruas. E o futuro pede para ser reinventado.