A resposta óbvia é sim, ela existe, mas é preciso qualificá-la: ao contrário do que diz o senso comum, a Al-Qaeda não é uma organização, mas uma rede de grupos locais fragilmente unidos, e Osama Bin Laden não tinha tanto poder como os EUA e ele próprio queriam fazer o mundo crer. Sem essa compreensão, a natureza do ativismo islâmico, inclusive de sua vertente radical, não pode ser devidamente esclarecida.
Marcel Gomes no CARTA MAIOR
Há um senso comum sobre o que é a Al-Qaeda. Pergunte a alguém ao seu lado. A maioria provavelmente responderá que se trata de uma organização terrorista fundada décadas atrás por um fanático religioso saudita e bastante rico, que, enquanto viveu, recrutou e treinou homens para criar células de ataque em vários países, inclusive no Ocidente, a fim de atingir cinematograficamente alvos escolhidos por ele próprio.
É com uma provocação desse tipo que Jason Burke, correspondente dos jornais Observer e The Guardian no sul da Ásia, inicia um dos capítulos de seu livro “Al-Qaeda - a verdadeira história do Islã radical” (Editora I. B. Tauris, 2003, 357 páginas) – uma referência para os que querem explorar as entranhas do grupo ligado ao terrorista Osama Bin Laden. Repórter de campo com experiência em frentes de batalha e amplos contatos com militantes mulçumanos, Burke desmonta aquela visão simplificada compartilhada por muitos de nós, mas ainda amplamente legitimada nos meios de comunicação.
Para o jornalista, o que chamamos de Al-Qaeda trata-se na verdade de uma rede global pouco conectada de grupos terroristas com histórias e objetivos distintos entre si, muitas vezes mais interessados nas disputas por projetos nacionais do que por metas determinadas por uma ideologia islâmica global. Nessa rede, Bin Laden e seus aliados mais próximos tiveram um poder frágil, regularmente contestado pelos grupos e lideranças nacionais.
Burke relata diversas histórias para provar que a decisão de tratar Bin Laden como o inimigo público número um do planeta não encontra muitas justificativas na realidade. Uma delas diz respeito aos chamados “campos da Al-Qaeda” para treinar militantes no Afeganistão e no Paquistão, entre 1990 e 1996. Bin Laden tem sido até hoje insistentemente considerado o coordenador desses centros de treinamento. No entanto, segundo o jornalista, não há qualquer evidência de que o saudita tivera controle sobre os campos.
Ele menciona dois documentos do Departamento de Estado dos EUA para comprovar sua tese. O primeiro, de 1995, seis anos antes dos ataques de 11 de setembro, faz um relato oficial sobre os centros de treinamento afegãos, revela que militantes de várias nacionalidades estavam sendo habilitados para executar atos terroristas e aponta como chefe do esquema, além de setores do próprio governo do Afeganistão, um personagem chamado Abd al-Rab al-Rasul Sayyaf, com diversas conexões com a elite saudita. Mas alguém já ouviu falar em Sayyaf, que mais tarde foi eleito para o parlamento afegão?
O outro documento citado pro Burke, um memorando interno do mesmo Departamento de Estado, de 1996, quando o Afeganistão já estava sob pleno domínio do Taleban, afirma que vários grupos árabes dividiam o controle dos campos. “A verdade é que Bin Laden era uma figura marginal naquela época. Homens como Sayyaf, um dos mais importantes líderes político e religioso do Afeganistão naquele contexto, com excelentes contatos com ricos e devotados sauditas que contribuíam com seu projeto, tinham muito mais importância”, escreveu o jornalista.
Em 2001, após os ataques ao World Trade Center, a tevê norte-americana ABC entrevistou um militante árabe que havia treinado durante oito meses dos campos afegãos. Ele disse que jamais ouvira alguém chamar seu grupo de Al-Qaeda. “Isso revela como os investigadores norte-americanos forçaram a barra para encontrar um grupo, liderado por um personagem identificável, e que tivesse um nome”, aponta Burke.
O próprio correspondente destaca, porém, que não se trata de menosprezar o papel de Bin Laden no terrorismo global e nem mesmo de negar a existência da Al-Qaeda – tese defendida por alguns especialistas em Islã. Para ele, a Al-Qaeda existe, sim, e poderia ser didaticamente descrita como composta por três elementos: um núcleo duro, uma rede de grupos locais e uma ideologia comum. Além do governo norte-americano, no plano do discurso, o próprio Bin Laden se esforçou, entre 1996 e 2001, para fortalecer a unidade da rede e seu próprio poder sobre ela.
Com recursos financeiros nas mãos, o terrorista atraiu para sua órbita proeminentes militantes islâmicos que já estavam ativos ao redor do globo. Isso não significa, porém, que eles operariam sob as ordens de Bin Laden. “Taxar esses grupos locais como Al-Qaeda simplesmente encobre os fatores específicos que fizeram esses grupos surgir”, diz Burke. Segundo ele, Bin Laden passou a usar táticas empregadas por EUA e URSS durante a Guerra Fria – entre elas, fazer acordos de curto prazo com grupos locais, ainda que as diferenças entre eles fossem grandes, e financiá-los, com vistas a um objetivo comum.
A verdade é que a visão de uma Al-Qaeda institucionalizada tem bagunçado as peças de análises sobre a militância islâmica no mundo. Perdem-se as peculiaridades locais dos grupos e todos acabam se surpreendendo, ao menos no Ocidente, quando esses militantes se envolvem em atividades contra governos não-democráticos e corruptos, como foi o caso da atuação da Irmandade Mulçumana na derrubada do governo de Hosni Mubarak, no Egito.
Radicalismo, religião e pobreza
É com uma provocação desse tipo que Jason Burke, correspondente dos jornais Observer e The Guardian no sul da Ásia, inicia um dos capítulos de seu livro “Al-Qaeda - a verdadeira história do Islã radical” (Editora I. B. Tauris, 2003, 357 páginas) – uma referência para os que querem explorar as entranhas do grupo ligado ao terrorista Osama Bin Laden. Repórter de campo com experiência em frentes de batalha e amplos contatos com militantes mulçumanos, Burke desmonta aquela visão simplificada compartilhada por muitos de nós, mas ainda amplamente legitimada nos meios de comunicação.
Para o jornalista, o que chamamos de Al-Qaeda trata-se na verdade de uma rede global pouco conectada de grupos terroristas com histórias e objetivos distintos entre si, muitas vezes mais interessados nas disputas por projetos nacionais do que por metas determinadas por uma ideologia islâmica global. Nessa rede, Bin Laden e seus aliados mais próximos tiveram um poder frágil, regularmente contestado pelos grupos e lideranças nacionais.
Burke relata diversas histórias para provar que a decisão de tratar Bin Laden como o inimigo público número um do planeta não encontra muitas justificativas na realidade. Uma delas diz respeito aos chamados “campos da Al-Qaeda” para treinar militantes no Afeganistão e no Paquistão, entre 1990 e 1996. Bin Laden tem sido até hoje insistentemente considerado o coordenador desses centros de treinamento. No entanto, segundo o jornalista, não há qualquer evidência de que o saudita tivera controle sobre os campos.
Ele menciona dois documentos do Departamento de Estado dos EUA para comprovar sua tese. O primeiro, de 1995, seis anos antes dos ataques de 11 de setembro, faz um relato oficial sobre os centros de treinamento afegãos, revela que militantes de várias nacionalidades estavam sendo habilitados para executar atos terroristas e aponta como chefe do esquema, além de setores do próprio governo do Afeganistão, um personagem chamado Abd al-Rab al-Rasul Sayyaf, com diversas conexões com a elite saudita. Mas alguém já ouviu falar em Sayyaf, que mais tarde foi eleito para o parlamento afegão?
O outro documento citado pro Burke, um memorando interno do mesmo Departamento de Estado, de 1996, quando o Afeganistão já estava sob pleno domínio do Taleban, afirma que vários grupos árabes dividiam o controle dos campos. “A verdade é que Bin Laden era uma figura marginal naquela época. Homens como Sayyaf, um dos mais importantes líderes político e religioso do Afeganistão naquele contexto, com excelentes contatos com ricos e devotados sauditas que contribuíam com seu projeto, tinham muito mais importância”, escreveu o jornalista.
Em 2001, após os ataques ao World Trade Center, a tevê norte-americana ABC entrevistou um militante árabe que havia treinado durante oito meses dos campos afegãos. Ele disse que jamais ouvira alguém chamar seu grupo de Al-Qaeda. “Isso revela como os investigadores norte-americanos forçaram a barra para encontrar um grupo, liderado por um personagem identificável, e que tivesse um nome”, aponta Burke.
O próprio correspondente destaca, porém, que não se trata de menosprezar o papel de Bin Laden no terrorismo global e nem mesmo de negar a existência da Al-Qaeda – tese defendida por alguns especialistas em Islã. Para ele, a Al-Qaeda existe, sim, e poderia ser didaticamente descrita como composta por três elementos: um núcleo duro, uma rede de grupos locais e uma ideologia comum. Além do governo norte-americano, no plano do discurso, o próprio Bin Laden se esforçou, entre 1996 e 2001, para fortalecer a unidade da rede e seu próprio poder sobre ela.
Com recursos financeiros nas mãos, o terrorista atraiu para sua órbita proeminentes militantes islâmicos que já estavam ativos ao redor do globo. Isso não significa, porém, que eles operariam sob as ordens de Bin Laden. “Taxar esses grupos locais como Al-Qaeda simplesmente encobre os fatores específicos que fizeram esses grupos surgir”, diz Burke. Segundo ele, Bin Laden passou a usar táticas empregadas por EUA e URSS durante a Guerra Fria – entre elas, fazer acordos de curto prazo com grupos locais, ainda que as diferenças entre eles fossem grandes, e financiá-los, com vistas a um objetivo comum.
A verdade é que a visão de uma Al-Qaeda institucionalizada tem bagunçado as peças de análises sobre a militância islâmica no mundo. Perdem-se as peculiaridades locais dos grupos e todos acabam se surpreendendo, ao menos no Ocidente, quando esses militantes se envolvem em atividades contra governos não-democráticos e corruptos, como foi o caso da atuação da Irmandade Mulçumana na derrubada do governo de Hosni Mubarak, no Egito.
Radicalismo, religião e pobreza
A idéia de uma organização composta por fanáticos mulçumanos prontos para se explodirem também é desmontada não apenas por Burke, mas por outro pesquisador da cultura islâmica, o francês Gilles Kepel, em seu livro “Jihad – a trilha do Islã político” (Belknap Press, 2002, 464 páginas).
Segundo Kepel, a violência traduzida pelo terrorismo tem sido causada por uma falha do ativismo político islâmico, incapaz de oferecer uma alternativa viável às populações islâmicas mais empobrecidas na Ásia e da África. Os movimentos anticolonialistas da primeira metade do século 20, os projetos socialistas e nacionalistas que se seguiram, assim como o desenvolvimento do projeto político islâmico, a partir da década de 80, não conseguiram responder aos anseios daquelas populações.
Segundo o pesquisador francês, os ativistas islâmicos radicais são em sua maioria recrutados entre famílias pobres ou da baixa classe média trabalhadora. Muitos constituem a primeira geração de suas famílias a obterem educação formal e viverem em cidades. Kepel identifica neles uma série de aspirações econômicas, traduzidas na idéia de que é justo "melhorar de vida" e lutar por isso. São pessoas que em outros países são naturalmente captadas para o ativismo social, em ONGs, ou político, nos partidos. Entretanto, a fragilidade dessas instituições na sociedade civil de muitas nações islâmicas torna fácil o recrutamento pelos flancos terroristas.
Isso não seria possível, claro, sem uma leitura do Islã que não só permita, mas incentive as atividades violentas. Essa referência tem origem na idéia de missão islâmica, chamada de da'wa, a qual glorifica a Jihad e o martírio como caminhos para a transformação mundana e a redenção divina. Um dos berços das práticas e valores islâmicos mais conservadores é a Arábia Saudita, terra natal de Osama Bin Laden. Hoje, porém, essa vertente da religião já se espalhou pela Ásia e África e não é à toa que entre os principais líderes identificados como da Al-Qaeda estão egípcios e líbios.
Votando a Jason Burke, os anos mais intensos do terrorismo islâmico – e das "Guerras do 11 de Setembro", como ele denomina esse período – ocorreram em 2005 e 2006, ano do ataque ao metrô de Londres. O jornalista lembra que nessa fase a estratégia da Al-Qaeda de confronto com o Ocidente parecia funcionar, tamanho o grau de mobilização que exigiu dos governos europeus e norte-americano. Mas, desde então, a capacidade de mobilização da entidade arrefeceu. A morte de Osama Bin Laden acentuou o fenômeno.
Um outro fator que enfraquece as conexões da Al Qaeda, diz Burke, tem relação com a própria maneira de os mulçumanos enxergarem a organização. Segundo o jornalista, quando a Al-Qaeda foi criada, uma de suas mais explícitas estratégias era executar grandes atentados terroristas com o objetivo de demonstrar às populações islâmicas no mundo que derrubar governos patrocinados pelo Ocidente era possível.
A idéia funcionou bem quando ocorreu em lugares distantes, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no meio do mar. Quando, porém, a maioria dos atentados passou a ocorrer em ruas movimentadas de cidades como Bagdá, a população passou a ver com mais restrições os grupos terroristas.
O que concluir de tudo isso? A fase pós-Bin Laden da militância islâmica no mundo exige dos observadores um olhar para a realidade e para além dos discursos dos governos e das próprias redes terroristas. Histórias nacionais e objetivos específicos explicam muito mais sobre a existência desses grupos, seu modo de atuação e mesmo suas ações mais violentas do que uma análise homogênea e global do Islamismo radical. Kabul e Bagdá estão muito mais distantes do que o mapa da Ásia pode revelar.
Segundo Kepel, a violência traduzida pelo terrorismo tem sido causada por uma falha do ativismo político islâmico, incapaz de oferecer uma alternativa viável às populações islâmicas mais empobrecidas na Ásia e da África. Os movimentos anticolonialistas da primeira metade do século 20, os projetos socialistas e nacionalistas que se seguiram, assim como o desenvolvimento do projeto político islâmico, a partir da década de 80, não conseguiram responder aos anseios daquelas populações.
Segundo o pesquisador francês, os ativistas islâmicos radicais são em sua maioria recrutados entre famílias pobres ou da baixa classe média trabalhadora. Muitos constituem a primeira geração de suas famílias a obterem educação formal e viverem em cidades. Kepel identifica neles uma série de aspirações econômicas, traduzidas na idéia de que é justo "melhorar de vida" e lutar por isso. São pessoas que em outros países são naturalmente captadas para o ativismo social, em ONGs, ou político, nos partidos. Entretanto, a fragilidade dessas instituições na sociedade civil de muitas nações islâmicas torna fácil o recrutamento pelos flancos terroristas.
Isso não seria possível, claro, sem uma leitura do Islã que não só permita, mas incentive as atividades violentas. Essa referência tem origem na idéia de missão islâmica, chamada de da'wa, a qual glorifica a Jihad e o martírio como caminhos para a transformação mundana e a redenção divina. Um dos berços das práticas e valores islâmicos mais conservadores é a Arábia Saudita, terra natal de Osama Bin Laden. Hoje, porém, essa vertente da religião já se espalhou pela Ásia e África e não é à toa que entre os principais líderes identificados como da Al-Qaeda estão egípcios e líbios.
Votando a Jason Burke, os anos mais intensos do terrorismo islâmico – e das "Guerras do 11 de Setembro", como ele denomina esse período – ocorreram em 2005 e 2006, ano do ataque ao metrô de Londres. O jornalista lembra que nessa fase a estratégia da Al-Qaeda de confronto com o Ocidente parecia funcionar, tamanho o grau de mobilização que exigiu dos governos europeus e norte-americano. Mas, desde então, a capacidade de mobilização da entidade arrefeceu. A morte de Osama Bin Laden acentuou o fenômeno.
Um outro fator que enfraquece as conexões da Al Qaeda, diz Burke, tem relação com a própria maneira de os mulçumanos enxergarem a organização. Segundo o jornalista, quando a Al-Qaeda foi criada, uma de suas mais explícitas estratégias era executar grandes atentados terroristas com o objetivo de demonstrar às populações islâmicas no mundo que derrubar governos patrocinados pelo Ocidente era possível.
A idéia funcionou bem quando ocorreu em lugares distantes, seja nos Estados Unidos, na Europa ou no meio do mar. Quando, porém, a maioria dos atentados passou a ocorrer em ruas movimentadas de cidades como Bagdá, a população passou a ver com mais restrições os grupos terroristas.
O que concluir de tudo isso? A fase pós-Bin Laden da militância islâmica no mundo exige dos observadores um olhar para a realidade e para além dos discursos dos governos e das próprias redes terroristas. Histórias nacionais e objetivos específicos explicam muito mais sobre a existência desses grupos, seu modo de atuação e mesmo suas ações mais violentas do que uma análise homogênea e global do Islamismo radical. Kabul e Bagdá estão muito mais distantes do que o mapa da Ásia pode revelar.