segunda-feira, 28 de maio de 2012

Um ideal neoliberal: o “Homo Economicus”


Vaz de Carvalho

 
Os filósofos representaram como um Ideal - o “Homem” – indivíduos que não se veem subordinados à divisão do trabalho (…) Deste modo se concebe este processo como um processo de alienação do “Homem” (Marx – A Ideologia Alemã). (1)

1 – Sem consciência do bem e do mal
 

O mundo perfeito do neoliberalismo – a que a social-democracia se submete, para além da retórica de ocasião - é formado por indivíduos perfeitamente livres, perfeitamente racionais, orientados pelas suas escolhas económicas. Trata-se do designado “homo economicus”. Que visão do mundo é que nos propõem? Seres humanos que se guiam e são guiados apenas por considerações económicas. Neste sistema, o lucro capitalista-financeiro sobrepõe-se a quaisquer outras considerações, os sacrifícios das pessoas não são tidos em conta, o desemprego, não é um acidente: é uma forma de gestão. (2) As “reformas estruturais” – eufemismo para iludir os incautos – postas em prática pelo governo e reclamadas pela “troika” – e apoiantes - são bem a confirmação do que dizemos.
“O direito ao trabalho e a proteção do ambiente tornaram-se excessivos na maior parte dos países desenvolvidos. O comércio livre vai reprimir alguns destes excessos, obrigando cada um a tornar-se competitivo” declara o Prémio Nobel, Gary Becker, pai de uma “economia generalizada”, segundo a qual toda alógica social é redutível a uma pura racionalidade económica” (2) Este “puro” faria sorrir não fosse a tragédia dos que sofrem as dramáticas consequências desta “racionalidade”, que se traduz em desemprego, pobreza e fome que alastram pelos países onde é aplicada.
Mas acerca da concorrência vale a pena recordar Marx e Engels: “A concorrência isola os indivíduos, não apenas os burgueses mas mais ainda os proletários enfrentando-se uns aos outros, apesar do que os une.” (3), O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência (4)
Bem se pode dizer que o “homo economicus” é o grau zero do pensamento, um “Homem” imaginado sem História, sem sociologia, sem psicologia que não a das escolhas do mercado, sem ideias nem ideologia, passivamente explorado pela oligarquia triunfante eis, pois, o ideal “democrático” do neoliberalismo. Não admira que nos governos, tecnocratas adeptos destes preconceitos ocupem ministérios fundamentais. Neste sentido a sua mais brilhante argumentação – não parece disporem de mais – é classificarem de “ideologia” as críticas mais pertinentes. No fascismo era-se perseguido por ter ou fazer “política”, no neoliberalismo é-se marginalizado por ter “ideologia”.
Quando não há princípios tudo se pode equivaler, sendo que o equivalente universal é o dinheiro. O “homo economicus” a que querem reduzir a humanidade, parece-se com o protagonista de “O Estrangeiro” de Albert Camus, sem consciência do bem e do mal. Uma humanidade seguindo raciocínios que se traduzem em fórmulas matemáticas, que ora nos dizem ser simples e evidentes, ora nos apresentam inextrincavelmente complexas. Um mundo em que a irresponsabilidade moral dos indivíduos e da sociedade está coberta pela acção do mercado. Mas será só isto a vida? Não haverá nada para além deste modelo artificial com o qual querem construir uma hipotética realidade que seria perfeita quando abandonássemos toda a dimensão do humanismo?
Claro que não são negados valores, pelo contrário, são proclamados e lamenta-se a sua falta. Porém, não vão além de piedosos votos religiosos, de superstições diversas, de ilusória boa consciência dos voluntariados, de caridade, que serve para mascarar as crescentes injustiças e a desagregação social.
Na realidade, independentemente de toda a retórica “personalista” o “homo economicus” é forçosamente conformista. O objetivo do neoliberalismo é produzir seres humanos à medida de interesses assumidamente privados das transnacionais e da finança especuladora, para daí deduzir e aplicar os seus dogmas.

2 – A corrupção moral
 
A racionalidade neoliberal é evidente na corrupção moral da oligarquia. Gary Smith, um ex-executivo da Goldman Sachs expressa-o claramente: “o objetivo dos banqueiros de todo o mundo é maximizar o seu ganho independentemente das consequências para os outros (5)
Os paraísos fiscais são a expressão funcional desta corrupção. Enquanto os povos são sujeitos a sacrifícios apenas comparáveis aos tempos de guerra e de ditadura, o grande capital circula em livre simbiose com a fraude e o dinheiro sujo repleto de horrores das “máfias”. É hoje praticamente impossível distingui-los.
Nesta UE a racionalidade competitiva tem sentidos opostos conforme o poder de mercado de cada um. O povo trabalhador é sujeito a mais impostos e à perda de direitos laborais e sociais: são os “ajustamentos estruturais” e a austeridade; para os oligarcas da banca e mono ou oligopólios são oferecidos resgates financeiros (os “bailouts”) e paraísos fiscais onde praticamente sem impostos colocam “livremente” o resultado das fraudes e da exploração acrescida a que as camadas trabalhadoras estão sujeitas. As deslocalizações de empresas e ativos financeiros são um exemplo da corrupção de moral social de que o grande capital está possuído. A simples exigência de contribuírem com mais algumas migalhas de impostos em países sufocados por iníquas austeridades torna “os mercados traumatizados”, na expressão de um dos seus epígonos, perante o ar reverente do sr. entrevistador.
Na base de tudo isto estão três dogmas, afinal, atratores do capitalismo (6)
“- A obrigação moral de cada indivíduo para com a sociedade é alcançada maximizando o ganho pessoal
- Dinheiro é riqueza e ganhar dinheiro aumenta a riqueza da sociedade
- Ganhar dinheiro é o objetivo da iniciativa individual e a medida adequada da prosperidade e desempenho económico.” (5)
Como é que chegamos aqui? Negando que existam classes, camadas sociais, originadas pelas contradições não resolvidas, antagónicas, do capitalismo. Na prática, impõe-se um modelo no qual só há indivíduos isolados, separados uns dos outros, cuja ligação é estabelecida pelas leis do mercado. Ou seja, cada indivíduo guia-se pelo seu máximo interesse, isto é, pelo seu egoísmo. Porém, as escolhas da sociedade não podem guiar-se apenas pelos interesses individuais, ou seja, pelo seu egoísmo, numa sociedade que justamente o amplia, justificando assim uma hipotética eficiência na utilização dos recursos existentes, porém apenas no interesse da minoria dominante. A depredação dos recursos naturais e do ambiente representa a mais completa negação desta pseudo eficiência, na realidade corrupção moral.
Foi aqui que chegamos por se sobrepor o egoísmo individual às necessidades colectivas, com justificações apoiadas em abstracções matemáticas. A questão verdadeiramente importante não consiste em saber se as descrições causais podem ser expressas numa fórmula matemática precisa, mas em saber se a fonte do nosso conhecimento são as leis objetivas da Natureza ou proposições da nossa mente. (7)
A questão que se pode colocar é: como é que teses tão absurdas, frouxas sob qualquer perspectiva teórica, que os factos negam de forma evidente, fez escola, governa e submete os povos, com o apoio explícito da social-democracia.
Porém, por incrível, o absurdo faz por vezes história na História. No século XVII, o bispo Bossuet construiu uma tese demonstrando o direito divino dos reis. Era o que o absolutismo monárquico e em primeiro lugar Luis XIV desejava ouvir, a quem a obra foi dedicada. Quando, depois de Erasmo, os mais eminentes pensadores, como Espinosa, Hobbes, e outros - desfaziam os preconceitos e as superstições de um passado obscurantista e feudal, Bossuet, reformulava dogmas medievais. O direito divino dos reis, então outorgado pelo Papa, passava a ser recebido directamente de Deus, para governar os povos. Onde está direito divino leia-se hoje “os mercados”. Em ambos os casos, na prática, foi uma forma de aprofundar a arbitrariedade dos poderosos.

3 – O egoísmo como lei fundamental.
 
A economia neoliberal trouxe de volta o egoísmo individual e o mercado “livre” como lei fundamental das sociedades e princípio do máximo benefício para todos. O capital querendo libertar-se de todas as determinações que não favoreçam a maximização do lucro inventou um “homo economicus”.
A promoção do egoísmo é feita ao pretender reduzir a sociedade a uma soma de indivíduos, é como se a sociologia fosse uma simples aritmética. O curioso é que se vende este cúmulo de egoísmos, esta irracionalidade, como a suprema racionalidade.
Em cada passo deste contexto concepções voluntaristas substituem a análise dialéctica. Em termos sociológicos procura-se transformar as pessoas de cidadãos em – apenas - consumidores, autómatos programáveis de acordo com a maior vantagem para os mono e oligopólios. Tudo entrou no campo da mercadoria, assim a generalidade das pessoas para serem consumidoras são em primeiro lugar mercadorias como trabalhadores. A liberdade que se promove é, pois, a de consumir – se puder.
Os que detêm maior poder de mercado determinam as escolhas, ou pelo menos os seus contextos. São eles os donos do casino em que se tornou a economia, os outros jogam com as suas fichas e eles ganham sempre. Na realidade, a escolha de base já está feita: o máximo lucro do grande capital acima de tudo.
O livre arbítrio morreu há muito, mas é ressuscitado nos padrões do “homo economicus” para camuflar a alienação e a manipulação. As tese liberais de que cada indivíduo conhece melhor o que lhe convém faz por ignorar quais os critérios e contextos em que esse conhecimento se aplica. As pessoas agem no seu círculo de circunstâncias com graus de liberdade muito diferentes conforme a situação económica e, claro, também psicológica. Que espécie de liberdade existe, isto é, capacidade de autodeterminação, numa sociedade cujo funcionamento repousa em padrões de desemprego, precariedade e dita “flexibilidade” laboral? Note-se que os seus mentores consideram um desemprego de 3 ou 4%, “anormalmente baixo”…O desemprego nesta ideologia, para além das ditas “preocupações” de governantes que fazem tudo o que podem para o facilitar, não é um acidente, é como dissemos: uma forma de gestão.
Com o sofisma do “homo economicus” procura-se destruir as defesas sociais dos indivíduos criando-lhes novas necessidades: necessidades não satisfeitas, a todos os níveis. Desperta-se, em particular nos jovens, a exaltação de desejos, compulsões de origem psicológica desenvolvendo automatismos de procura de autosatisfação. Procura-se cristalizar na sua imaginação que tudo o que lhes é proposto apareça como belo e excitante. Quanto mais deprimido estiver, e a vida real gera a depressão pela insegurança fruto da amoralidade economicista, mais facilmente a pessoa assume essas acções de alienação. E aqui reside a libertação que o sistema lhe proporciona, não mais, e que vale apenas o dinheiro de que dispuser.

4 – Que racionalidade?
 
O axioma da racionalidade liberal foi definido por Marx quando expôs o que representava para a burguesia o consumidor racional: “Abaixamento do salário e longas horas de trabalho – é este o núcleo do comportamento racional e saudável do operário” (8)
Para suportar as suas teses o neoliberalismo inventa o tal “homo economicus, considerando que todas as motivações são conscientes e racionais. Faz por ignorar que a tomada de consciência é apenas a fase última do processo psíquico, condicionado por estímulos exteriores, que em muitos casos levam os indivíduos menos preparados ao consumo de objectos inúteis e de substâncias prejudiciais à saúde física ou mental e daí à frustração, aos comportamentos irracionais, ao desespero, à insanidade, à dependência e inclusive à marginalidade.
Para as escolhas, serem racionais e eficientes, deveria haver uma lista exaustiva dos estados futuros a que poderia conduzir cada uma das suas escolhas. Só que nesta economia não há futuro, é uma teoria sem tempo, ou melhor, cujo horizonte de tempo é uma derivada do presente, isto é, uma variação infinitesimal do presente numa função supostamente continua. Uma teoria que já mostrou não saber lidar com uma variável fundamental: a incerteza do futuro. Daqui que estes especialistas mostrem a sua competência quando tentam explicar por que erraram nas suas previsões ou se confessem “surpreendidos” com as nefastas consequências das suas políticas.
A racionalidade e a eficiência das escolhas têm sido experimentalmente postas em causa quando intervém a avaliação de probabilidades, em situações incerteza e de ambiguidade. Na economia, a complexidade das variáveis e sua evolução no tempo mostram que escolhas puramente racionais não podem ser tomadas individualmente. Estas escolhas estão desde logo condicionadas pelos interesses que dominam o ambiente social, sejam “os mercados”, seja a condução política. A racionalidade individual perde-se se aqueles interesses agirem em sentido contrário ao social, isto é, ao de cada vez maiores camadas da população.
A ilusão do “homo economicus”, vendida ao público como princípio de equidade moral e eficiência económica, serve apenas de álibi para a fraude, a corrupção e a especulação que lhe está associada. Trata-se da falácia da “Nova Economia”, que não passa da economia do desemprego e do empobrecimento das camadas trabalhadoras. As teses associadas ao “homo economicus” fazem parte do mecanismo de alienação necessário ao totalitarismo neoliberal.
A democracia só pode ser efectiva se consagrada por homens e mulheres livres, entenda-se com direitos sociais garantidos, sem existências precárias e não vivendo ao nível de uma incerta subsistência.
Perante o “homo economicus” amoral e unidimensional do neoliberalismo é necessário afirmar com Bento Jesus Caraça “a cultura integral do indivíduo” libertadora e revolucionária, pois, como afirma: “No seio das sociedades humanas manifestam-se dois princípios contrários, o individual e o colectivo, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades em que o primeiro princípio – o individual – chegado a um elevado grau de desenvolvimento se absorverá no segundo.”
E estas palavras que podem até parecer estranhas à luz da dominante atual, exprimem afinal o conteúdo dos mais elevados momentos da Humanidade.

1 - Carl Marx – A Ideologia Alemã – Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.76 – Ed. Progresso Moscovo - 1972
2 - A Ilusão Neoliberal – René Passet – Ed. Terramar – 2002 - p.109
3 - Carl Marx – A Ideologia Alemã – Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.62– Ed. Progresso Moscovo - 1972
4 – F. Engels - Princípios do Comunismo - Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.85 – Ed. Progresso Moscovo – 1972
5 - When Bankers Rule the World - By David Korten – www.informationclearinghouse - April 03, 2012
6- Um “atractor” pode ser definido como o conjunto de comportamentos característicos para o qual evoluiu um sistema dinâmico independentemente do ponto de partida.
7 – “A questão verdadeiramente importante da não consiste em saber qual o grau de precisão que alcançaram as nossas descrições das conexões causais e em saber se estas podem ser expressas numa fórmula matemática precisa - mas em saber se a fonte do nosso conhecimento dessas conexões são as leis objetivas da Natureza ou as propriedades da nossa mente, a faculdade que lhe é inerente de conhecer determinadas verdades apriorísticas, etc.” - V. I. Lenine – Materialismo e Empiriocriticismo – citado em “Sobre Lenine e a Filosofia” - J. Barata Moura – Ed. Avante 2010 – p.139.
8 - O Capital - Livro Segundo - Tomo V – Ed. Avante - p.550.
Dado que algumas pessoas ficam muito confusas ou perturbadas com o termo burguesia, esclareça-se que Marx e Engels distinguiram desde logo entre a burguesia e o pequeno empresariado. Os primeiros constituindo a “classe dos capitalistas modernos”, isto é “a indústria moderna que transformou a pequena oficina do mestre na grande fábrica do capitalista industrial” (Manifesto).

“A Veja deve explicações ao país”, diz presidente da Fenaj


"A Veja acaba de nos produzir um dos piores momentos do jornalismo" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

A CPI realizada pelo Congresso Nacional que tenta investigar a influência do bicheiro Carlinhos Cachoeira sobre o poder público acabou suscitando um debate tão inesperado quanto necessário no país: a relação da mídia com as esferas de poder, sejam elas políticas ou econômicas.
A Polícia Federal identificou cerca de 200 conversas telefônicas entre o diretor da sucursal da revista Veja em Brasília, Policarpo Júnior, e o contraventor. A divulgação dessas escutas mostra que Cachoeira pautava a publicação da editora Abril, que se deixava levar pelos interesses políticos de um empresário fortemente ligado ao senador Demóstenes Torres (ex-DEM).
Diante desse cenário, alguns parlamentares têm defendido a convocação de Policarpo para depor na CPI, mesmo que o relator Odair Cunha (PT-MG) já tenha rejeitado pedido de informações a respeito. Para o presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Schröder, a revista precisa explicar o que guiou sua prática jornalística nesse episódio. “A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar como ela exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com descompromisso e irresponsabilidade em relação a princípios éticos e técnicos consagrados pelo jornalismo”, entende.
Nesta entrevista ao Sul21, Schröder avalia a conduta da revista nesse e em outros episódios e defende a necessidade de um marco regulatório para a comunicação no país.
“Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável”
Sul21 – O que a CPI do Cachoeira pode nos dizer sobre a mídia brasileira?
 
Celso Schröder – A CPI está nos mostrando que a mídia é uma instituição como qualquer outra e precisa estar submetida a princípios públicos, na medida em que a matéria-prima do seu trabalho é pública: a informação. Quanto menos pública essa instituição for e mais submetida aos interesses privados dos seus gestores ela estiver, mais comprometida ficará a natureza do jornalismo. Como qualquer instituição, a mídia não está acima do bem e do mal, dos preceitos republicanos do Estado de Direito e do interesse público. Do ponto de vista político, a Veja confundiu o público com o privado. Do ponto de vista jornalístico, comete um pecado inaceitável: estabelecer uma relação promíscua entre o jornalista e a fonte. Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável. Todo jornalista sabe, desde o primeiro semestre da faculdade, que a fonte é um elemento constituidor da notícia na medida em que ela for tratada como fonte. A fonte tem interesses e, para que eles não contaminem a natureza da informação, precisam ser filtrados pelo mediador, que é o jornalista. A fonte, ao mesmo tempo em que dá credibilidade e constitui elemento de pluralidade na matéria, por outro lado, se não for mediada e relativizada pelo jornalista, pode contaminar o conteúdo.
"Os jornalistas não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Em que pontos a relação entre Policarpo Júnior e Cachoeira extrapolaram uma relação saudável entre repórter e fonte?
 
Schroder – Ele não tratou o Cachoeira como fonte. O problema é um jornalista ou uma empresa jornalística atribuir a alguém uma dimensão de fonte única, negociando com ela o conteúdo e a dimensão da matéria e, principalmente, conduzindo a Veja para uma atuação de partido político. Esse é um pecado que a Veja vem cometendo há algum tempo. A oposição no Brasil é muito frágil. Por não existir uma oposição forte, a imprensa assume esse papel, o que é uma distorção absoluta. A imprensa não tem que assumir essa função, a sociedade não atribui a ela uma dimensão político-partidária, como a Veja se propõe. A Veja acaba de nos produzir um dos piores momentos do jornalismo. Quando houve o episódio da tentativa de invasão do apartamento do ex-ministro José Dirceu (PT) por um repórter da Veja, eu escrevi um artigo dizendo que, assim como Watergate tinha sido o grande momento do jornalismo no mundo, a atuação da Veja no quarto de Dirceu foi um anti-Watergate. Mal sabia eu que teríamos um momento ainda pior. Não foi a ação individual de um repórter sem capacidade de avaliação. Foi uma ação premeditada e sistêmica de uma empresa de comunicação, de um chefe que conduzia seu repórter para uma ação imoral, tangenciando perigosamente a ilegalidade.
“A Veja é uma revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um suicídio”

Sul21 – O mesmo pode ser dito para o episódio recente entre Policarpo Júnior e Cachoeira?
 
Schröder - Neste momento, isso se consolida. É uma revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um suicídio, inclusive do ponto de vista de um negócio jornalístico. A não ser que a Veja esteja contando com um outro tipo de financiamento, ou já esteja sendo subsidiada por outro mecanismo que não seja decorrente da credibilidade e da inserção no público. Não temos dados concretos sobre isso, mas tudo leva a crer que, nesse momento, o financiamento da Veja esteja se dando por outro caminho. O comprometimento e o alinhamento inescrupuloso da revista a uma determinada visão de mundo conduz à ideia de que a Veja possa ter aberto mão de ser um veículo de comunicação para ser um instrumento político com financiamento deste campo.

Sul21 – Mas a revista já passou por períodos em que era mais comprometida com o jornalismo. Como ocorreu essa mudança?
 
Schroder – Não é de agora que a Veja vem dando indícios de que abre mão de um papel de referência jornalística. A Veja foi fundamental para a redemocratização do país, foi referência para jornalistas de várias gerações e teve em sua direção homens como Mino Carta. Depois de um certo tempo, a revista começa a alinhar-se a um determinado grupo social brasileiro. É claro que os editores da revista têm opiniões e cumprem um papel conservador no país. Tudo bem que isso aconteça nas dimensões editoriais. Agora, que se reserve ao jornalismo informativo um espaço de discussão com contrapontos. Princípios elementares do jornalismo foram sendo abandonados e essa revista, que foi importante para a democracia e para o jornalismo, passa a ser um exemplo ruim que precisa ser enfrentado.
"Não é pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como o senhor vê a possibilidade de Policarpo Júnior ser convocado para depor na CPI?
 
Schroder – Tenho visto declarações de alguns políticos, como da senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS), que diz que o envolvimento do Policarpo nisso representa um ataque à imprensa. Os jornalistas não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos. Se ele for convocado pela CPI, tem o direito de não ir. Se ele for, tem o direito de exercer a prerrogativa do sigilo de fonte. Mas a convocação não representa uma ameaça. A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar como ela exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com descompromisso e irresponsabilidade em relação a princípios éticos e técnicos consagrados pelo jornalismo. Questionar isso é fundamental. Os jornalistas e a academia têm obrigação de fazer esse questionamento.

Sul21 – Nesse sentido, não seria válido também convocar o presidente do Grupo Abril, Roberto Civita?
 
Schroder – Parece que seria deslocar o problema. Na CPI, a Veja é um dos pontos. O problema é a corrupção entre o Cachoeira e o Parlamento brasileiro. Um depoimento do Civita geraria um debate que desviaria os trabalhos da CPI. Não há dúvida de que a Veja praticou um mau jornalismo e deve prestar contas. A CPI tem gravações de integrantes da revista com o bicheiro. Que eles sejam convocados, então. Não é pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor.
“A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos”

Sul21 – As críticas à Veja costumam ser rebatidas com argumentos que valorizam o trabalho supostamente investigativo feito pela revista, com diversas denúncias de corrupção. Entretanto, as gravações entre Policarpo e Cachoeira revelam como funcionava a engenharia que movia algumas dessas denúncias.
 
Schroder – Há uma certa sensação de que estamos vivendo um momento de corrupção absoluta no país. E isso está longe de ser verdade. Basta olhar a história e ver que agora temos instituições democráticas funcionando. A imprensa cumpre um papel democrático e fiscalizador importante com a denúncia. O problema é que alguns setores, ao fazerem denúncias, atribuem um papel absoluto à ideia da corrupção. No caso da Veja, o pior de tudo é que a própria revista estava envolvida. Não é só um mau jornalismo sendo praticado. Há indícios perigosos de uma locupletação – que não precisa ser necessariamente financeira. Pode ser uma troca de favores, onde o que a Veja ganhou foi a constituição de argumentos para uma atuação política, não jornalística. Como se fosse o partido político que a oposição não consegue ser. Se a imprensa se propõe a esse tipo de coisa, volta a um patamar de atuação do século XVIII.  Se é para ser assim, que a revista mude de nome e assuma o alinhamento a determinado partido. Agora, ao se apresentar como um espaço informativo, a Veja precisa refletir a complexidade do espaço político brasileiro. Se ela não faz isso, está comprometendo o jornalismo e tangenciando uma possibilidade de ilegalidade que, se houver, precisa ser esclarecida. A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos.

Sul21 – A revelação desse modus-operandi da Veja está gerando uma discussão quase inédita no país: a mídia está debatendo a mídia. A revista Carta Capital tem dedicado diversas capas ao tema e a Record já fez uma reportagem sobre o assunto. É um fenômeno comum em outros países, mas até então não ocorria no Brasil.
 
Schroder – Nos anos 1980, quando a Fenaj propôs uma linha para a democratização da comunicação, partimos da compreensão de que a democratização do país não havia conseguido chegar à mídia. O sistema midiático brasileiro, ao contrário de todas as outras instituições, não havia sido democratizado. Temos cinco artigos da Constituição nessa área que não estão regulamentados. Durante 30 anos tivemos diversas iniciativas de tentar construir  esse debate. A lógica da regulamentação existe em todos os países do mundo. Mas, no Brasil, isso enfrenta resistências de uma mídia poderosa, que fez os dois primeiros presidentes da República após a democratização. Sarney e Collor são dois políticos que saíram dos quadros da Rede Globo. Na presidência do Congresso tivemos outros afilhados da Rede Globo, como Antonio Carlos Magalhães, que também foi ministro das Comunicações. A mídia não só está concentrada, no sentido de ter monopólios, como está desprovida de qualquer controle público. Está absolutamente entregue à ideia de que a liberdade de expressão é a liberdade de expressão dos donos da mídia. Enquanto que o preceito constitucional diz que a liberdade de expressão é do povo, e o papel da mídia é assegurar isso.
“O espírito conservador está no DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir nenhuma regra”
"As empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei protegem-se" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Quanto se conseguiu avançar nesse debate desde então?
 
Schroder – Estamos há 30 anos pautando esse debate até chegarmos a Confecom (Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009). A Fenaj consegue constituir a ideia de que esse debate precisa ser público, já que ele é omitido pela mídia, que atribui à essa discussão uma tentativa de censura. A Confecom, no início, teve a anuência das empresas. Eu fui junto com os representantes da RBS e da Globo aos ministros Helio Costa (Comunicações),  Tarso Genro (Justiça) e Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência) propor a conferência. As empresas compreendiam que, naquele momento, a telefonia estava chegando e ameaçava um modelo de negócios. Mas, durante a Confecom, a Rede Globo e todos os seus aliados se retiraram, tentando sabotar mais uma vez o debate. O espírito conservador está no DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir nenhuma regra. Acostumou-se a impor seus interesses ao país e, portanto, é ontológicamente contra qualquer regra. Naquele momento em que a Globo se retirou da Confecom ficou claro que não é possível contar com esses empresários para qualquer tipo de tentativa de atribuir à comunicação no Brasil uma dimensão pública, humana e nacional, regida por princípios culturais, democráticos e educacionais, não simplesmente pelo lucro fácil e rápido.

Sul21 – O editorial do jornal O Globo defendendo a revista Veja é um indício de que há um corporativismo muito grande entre os donos da mídia tradicional?
 
Schroder – O princípio que os une é aquele verbalizado pela Sociedade Interamericana de Imprensa: Lei melhor é lei nenhuma. As empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei protegem-se. Abrigadas no manto de uma liberdade de expressão apropriada por elas, protegem seus interesses e seus negócios, atuando de uma maneira corporativa e antipública.  O jornalismo é fruto de uma atividade profissional, não é fruto de um negócio. Jornalismo não é venda de anúncios. Jornalismo é, essencialmente, o resultado do trabalho dos jornalistas. Portanto, a obrigação dos jornalistas é denunciar sempre que o jornalismo for maculado, como ocorreu com a Veja. Seria, também, uma obrigação das empresas jornalísticas, na medida em que elas não estejam envolvidas com esse tipo de prática. Ao tornarem-se cúmplice e acobertarem esse tipo de prática, as empresas aliam-se a elas. Essas empresas disputam o mercado, mas protegem-se no que consideram essencial, no sentido de inviabilizar a ideia de que exercem uma atividade submetida aos interesses públicos, como qualquer outra.

A primavera brasileira


Luis Nassif na CARTA CAPITAL

O conceito da “primavera” foi adotado para descrever países ou comunidades em que a Internet entrou quebrando barreiras de silêncio.
Nos países de regime ditatorial, a “primavera” significou romper o controle estatal sobre a informação. Mas em muitos países democráticos, significou romper cortinas de silêncio impostas pela chamada velha mídia – os grandes meios de comunicação nacionais.
Nos Estados Unidos, a blogosfera ajudou a romper o sigilo em torno das guerras do Iraque e Afeganistão. Na Espanha, antes mesmo da explosão da Internet, os sistemas de SMS (torpedos) telefônicos ajudaram a desarmar a tentativa de grandes grupos midiáticos de atribuir um atentado à oposição.
Na Argentina, há um conflito latente entre o governo Cristina Kirchner e os grandes grupos midiáticos. No momento, passeatas tomam as ruas da cidade do México, contra a imprensa local.
No Brasil, em pelo menos três episódios exemplares a blogosfera foi fundamental para romper barreiras de silêncio.
O primeiro foi na Operação Satiagraha, da Polícia Federal. Capitaneados pela revista Veja, a chamada grande mídia se esmerou em demonizar os agentes públicos, vitimizar o banqueiro Daniel Dantas e transformar Gilmar Mendes no maior presidente da história do STF (Supremo Tribunal Federal).
Apenas a blogosfera preocupou-se em mostrar o outro lado, o das investigações.
O episódio terminou com o Opportunity se safando junto à Justiça. Mas, no campo da opinião pública, poder judiciário, ministros que se aliaram ao banqueiro, o próprio banqueiro e Gilmar Mendes saíram amplamente derrotados. O episódio mostrou os limites da grande mídia para construir ou destruir reputações.
Várias armações foram denunciadas pela blogosfera, como o caso do falso grampo no STF, o grampo sem áudio da suposta conversa entre Demóstenes Torres e Gilmar Mendes, a lista falsa de equipamentos da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) brandida pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim.
O segundo episódio relevante foi a promoção do livro “A Privataria Tucana”, com indícios de enriquecimento pessoal do ex-governador José Serra. Apesar de totalmente ignorado pela velha mídia, o livro bateu todos os recordes de vendas do ano.
Agora, tem-se o caso do envolvimento da revista Veja com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Foram quase dez anos de parceria, que transformaram o bicheiro no mais poderoso contraventor da república.
Graças às reportagens de Veja, o senador Demóstenes Torres tornou-se símbolo da retidão na política. Com o poder conquistado, participou de inúmeros lobbies em favor de Cachoeira e de avalista das denúncias mais extravagantes da revista.
Veja sempre soube das ligações de Demóstenes com Cachoeira. Mas por quase dez anos enganou seus leitores, não só escondendo essa relação, como difundindo a ideia de que Demóstenes era político inatacável.
Na velha mídia, não há uma linha sobre essas manobras, nada sobre as 47 conversas gravadas entre o diretor da revista em Brasília e Cachoeira, as quase 200 dele com todos os membros da quadrilha.
Assim como no Egito, Estados Unidos, Espanha, México, França, é a Internet que está explodindo cortinas de silêncio.

domingo, 27 de maio de 2012

Blogueiros planejam grande mobilização

Do sítio Vermelho:

O segundo dia do 3º Encontro de Blogueiros começou, (26/5), com um debate empolgante em defesa da blogosfera e da liberdade de expressão.

Na mesa, Paulo Henrique Amorim, Eduardo Guimarães, Esmael Morais e Emílio Gusmão falaram do uso de ações judiciais como forma de intimidação e tentativa de censura de suas páginas. A mesma experiência foi relatada via telefone por Lúcio Flávio e por outros blogueiros de diversas partes do Brasil durante o debate que se seguiu à exposição dos palestrantes. Cansados de só reclamar, eles defenderam o início de uma grande mobilização nacional pelo cumprimento da Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão aos brasileiros.


A ideia lançada na noite de ontem pelo jornalista e ex-ministro das Comunicações Franklin Martins foi encampada pelos participantes do encontro, que vão propor uma ampla campanha de mobilização nacional em defesa da regulamentação dos artigos da Constituição que tratam da comunicação. “Nada além da Constituição” seria o lema do movimento, que teria o seu auge no dia 5 de outubro, data em que se completa 24 anos de promulgação da Constituição de 1988, com uma grande ação em defesa da Carta Magna brasileira. “Vou pressionar o Miro (Altamiro Borges) para que a Barão de Itararé faça uma grande celebração neste dia”, afirmou Paulo Henrique Amorim, um dos principais defensores da ideia.

O autor do blog Conversa Afiada tem motivos de sobra para defender a campanha, já que responde atualmente a dezenas de processos referentes a conteúdos veiculados em sua página, 24 deles proposto apenas pelo banqueiro Daniel Dantas. Foi ele quem aconselhou os blogueiros presentes a enfrentar o uso da Justiça como forma de censura e não cumprir a decisões judiciais para a retirada de posts do ar, levando o caso para decisão no Supremo Tribunal Federal. “A Justiça não tem o poder de censura. Só tirem os posts do ar após a decisão do Supremo, porque nenhum juiz tem poder de censura no Brasil”, conclamou.

Amorim defendeu ainda que os blogueiros transcendam a batalha de judicialização da censura. “Nós fomos responsáveis por um processo político irreversível no Brasil. Antes de nós, o José Serra e o Fernando Henrique Cardoso davam três telefonemas e calavam o Brasil. Hoje isso não é mais possível”, afirmou, acrescentando que é preciso botar mais gente para participar das discussões sobre a blogosfera. “Temos que multiplicar o número de participantes dos debates por mil. O nosso debate não é de blogueiros políticos, é muito mais que isso, é o da democracia”, conclui o jornalista.

Enfrentamento

O enfrentamento também foi a solução sugerida pelo presidente do movimento dos Sem Mídia, Eduardo Guimarães em sua exposição. “Eu resolvi ir para o combate com esta gente a algum tempo. Em 2007, eu resolvi pegar um megafone e sair para protestar contra a situação e recebi o apoio de muita gente. Desde então, criamos uma ONG e fomos para o enfrentamento, entrando inclusive com ações contra o PIG”, informou, citando como exemplo do péssimo serviço da grande mídia o clima de medo gerado em torno da vacinação contra a febre amarela em 2008, em que mais pessoas morreram por vacinação indevida, do que pela doença.

Guimarães ressaltou também a mudança de posicionamento da grande mídia e de parte da sociedade em relação aos blogueiros. “Está havendo uma reação. Eles estão nos xingando e buscando formas de nos intimidar. Antes eles nos ignoravam, mas agora estão reagindo com a judicialização e a ameaças de agressão. As ações não existiam antes porque éramos ignorados. Hoje estamos incomodando e ninguém teria o trabalho de tentar nos intimidar se não estivéssemos incomodando. Por isso, precisamos avançar nesta proposta de uma associação de defesa dos blogueiros em todo o país. Precisamos avançar nisso, pois diante destas ameaças e judicialização, os que têm recursos reduzidos não poderão continuar o seu trabalho”, declarou.

O Encontro prossegue até domingo, com amplo debate sobre vários temas ligados à defesa da blogosfera, dos blogueiros e da liberdade de expressão.

Cartola, Um dos Maiores Poetas do Samba

Créditos: CARRANCASLITERARIAS


Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve. Assim Nelson Sargento definiu o amigo e parceiro Angenor de Oliveira, o mestre Cartola (1908-1980). Mestre pedreiro, mestre lírico: sambista refinado e elegante, de uma poesia que começava pela escolha dos títulos: As Rosas não Falam, Inverno do Meu Tempo e O Mundo é um Moinho. Como um trovador moderno, cantou o amor, a mulher e o morro, com sensibilidade e delicadeza.
[...] Ouvir Cartola é um exercício de sabedoria sutil. A cada audição treinamos nossa sensibilidade e nossa acuidade para o que é essencial, e aprendemos a perceber o espanto que há nas coisas simples, a ouvir o que as rosas têm a dizer. Nelson Sargento estava coberto de razão. Cartola, o pedreiro que virou poeta, não existiu. Foi um sonho bom. Que a gente não esquece.
CONTINUE A LEITURA: Por João Jonas Veiga Sobral em [O POETA IMPROVÁVEL] Revista Língua Portuguesa

VÍDEOS ESPECIAIS:

Para ouvir os dez maiores clássicos de Cartola acesse:

A política da linguagem e a linguagem da regressão política


Os capitalistas subverteram em grande medida ganhos fundamentais da classe trabalhadora e estamos a cair outra vez em direção ao domínio absoluto do capital


James Petras no BRASIL DE FATO

O capitalismo e os seus defensores mantém a dominação através dos "recursos materiais" sob o seu comando, especialmente o aparelho de Estado, e suas empresas produtivas, financeiras e comerciais, bem como através da manipulação da consciência popular via ideólogos, jornalistas, acadêmicos e publicitários que fabricam os argumentos e a linguagem para enquadrar as questões do dia.

Hoje as condições materiais para a vasta maioria dos trabalhadores deterioram-se drasticamente, pois a classe capitalista descarrega todo o fardo da crise e da recuperação dos seus lucros sobre as costas das classes assalariadas. Um dos aspectos gritantes deste contínuo rebaixamento de padrões de vida é a ausência, até agora, de um grande levantamento social. A Grécia e a Espanha, com mais de 50% de desemprego na faixa etária dos 16-24 anos e aproximadamente 25% de desemprego geral, experimentaram uma dúzia de greves gerais e numerosos protestos nacionais com muitos milhões de pessoas; mas não provocaram qualquer mudança real de regime ou de políticas. Os despedimentos em massa, os salários penosos, os cortes em pensões e serviços sociais continuam. Em outros países, como a Itália, França e Inglaterra, protestos e descontentamento manifestam-se na arena eleitoral, com governantes afastados e substituídos pela oposição tradicional. Mas no decorrer da agitação social e da profunda erosão socioeconômica das condições econômicas e de vida, a ideologia dominante que informa os movimentos, sindicatos e oposição política é reformista: apelos para defender benefícios sociais existentes, aumentar despesas públicas e investimentos, pela expansão do papel do Estado onde a atividade do setor privado deixou de investir ou empregar. Por outras palavras, a esquerda propõe conservar um passado em que o capitalismo estava arreado com o Estado previdência.

O problema é que este "capitalismo do passado" foi-se e um novo capitalismo mais virulento e intransigente emergiu forjando uma nova estrutura mundial e um poderoso aparelho de Estado obstinado e imune a todos os apelos por "reforma" e reorientação. A confusão, frustração e má direção da oposição popular de massa é, em parte, devido à adoção por escritores, jornalistas e acadêmicos de esquerda dos conceitos e linguagem adotados pelos seus adversários capitalistas: linguagem concebida para obscurecer as verdadeiras relações sociais de exploração brutal, o papel central das classes dominantes na reversão de ganhos sociais e as ligações profundas entre a classe capitalista e o Estado. Publicitários, acadêmicos e jornalistas elaboraram toda uma litania de conceitos e termos que perpetuam o domínio capitalista e desviam seus críticos e suas vítimas dos que perpetram o seu drástico deslizamento rumo ao empobrecimento em massa.

Mesmo quando formulam suas críticas e denúncias, os críticos do capitalismo utilizam a linguagem e os conceitos dos seus apologistas. Na medida em que a linguagem do capitalismo entrou no linguajar geral da esquerda, a classe capitalista estabeleceu a hegemonia ou dominação sobre os seus antigos adversários. Pior, a esquerda, ao combinar alguns dos conceitos básicos do capitalismo com a crítica aguda, cria ilusões acerca da possibilidade de reformar "o mercado" para servir objetivos populares. Isto faz com que falhe a identificação das ideias mestras das forças sociais que devem ser expulsas dos comandos da economia e do imperativo de desmantelar o Estado dominado pela classe. Enquanto a esquerda denuncia a crise capitalista e os salvamentos do Estado, a sua própria pobreza de pensamento mina o desenvolvimento da ação política de massa. Neste contexto, a "linguagem" da ocultação torna-se uma "força material" – um veículo do poder capitalista, cuja utilização primária é desorientar e desarmar seus críticos intelectuais através do uso de termos, estruturas concetuais e linguagem que dominam a discussão da crise capitalista.

Eufemismos chave ao serviço da ofensiva capitalista

Os eufemismos têm um duplo significado: o que os termos implicam (conotação) e o que eles realmente significam. Concepções eufemísticas sob o capitalismo implicam uma realidade favorável ou comportamento aceitável e atividade totalmente dissociada do engrandecimento da riqueza da elite e da concentração de poder e privilégio. Os eufemismos disfarçam o impulso das elites do poder para impor medidas específicas de classe e para reprimir sem serem adequadamente identificados, responsabilizados e opostos pela ação popular de massa.

O eufemismo mais comum é a palavra "mercado", a qual é dotada de características e poderes humanos. Como tal, dizem-nos que "o mercado exige cortar salários", desligado da classe capitalista. Mercados, intercâmbio de mercadorias ou compra e venda de bens, têm existido há milhares de anos em diferentes sistemas sociais em contextos altamente diferenciados. Eles têm sido globais, nacionais, regionais e local. Envolvem diferentes atores socioeconômicos e compreendem unidades econômicas muito diferentes, as quais vão desde casas comerciais gigantes promovidas pelo Estado até ao nível de aldeias camponesas de semi-subsistência e praças de cidades. Existiram "mercados" em todas as sociedades complexas: escravocratas, feudais, mercantis e em primitivas ou tardias sociedades capitalistas competitivas, monopolistas industriais e financeiras.

Ao discutir e analisar "mercados" e compreender as transações (quem beneficia e quem perde), deve-se claramente identificar as classes sociais que dominam as transações econômicas. Escrever na generalidade acerca de "mercados" é enganoso porque os mercados não existem independentemente das relações sociais que definem o que é produzido e vendido, como é produzido e que configurações de classe modelam o comportamento dos produtores, vendedores e do trabalho. A realidade do mercado de hoje é definida por corporações e bancos multinacionais gigantescos, os quais dominam o trabalho e os mercados de commodities. Escrever de "mercados" como se operassem numa esfera acima e para além das brutais desigualdades de classe é esconder a essência das relações de classe contemporâneas.

Fundamental para qualquer entendimento, mas ignorado pela discussão contemporânea, é o poder incontestado dos proprietários capitalistas dos meios de produção e de distribuição, a propriedade capitalista da publicidade, os banqueiros capitalistas que concedem ou negam crédito e os responsáveis do estado nomeados pelos capitalistas que "regulamentam" ou desregulamentam relações de troca. Os resultados das suas políticas são atribuídos às eufemísticas exigências do "mercado" as quais parecem estar divorciadas da realidade brutal. Portanto, como insinuam os propagandistas, ir contra "o mercado" é opor-se ao intercâmbio de bens. Isto é claramente absurdo. Em contraste, identificar exigências capitalistas sobre o trabalho, incluindo reduções em salários, bem-estar e segurança, é confrontar uma forma exploradora específica de comportamento de mercado onde capitalistas procuram ganhar lucros mais altos contra os interesses e o bem-estar da maioria dos trabalhadores assalariados.

Ao confundirem relações de mercado exploradoras sob o capitalismo com mercados em geral, os ideólogos alcançam vários resultados: eles disfarçam o papel principal dos capitalistas quando evocam uma instituição com conotações positivas, isto é, um "mercado" onde pessoas compram bens de consumo e "socializam-se" com amigos e conhecidos. Por outras palavras, quando "o mercado", o qual é retratado como um amigo e benfeitor da sociedade, impõe políticas presumivelmente penosas para o bem-estar da comunidade. É o que os propagandistas dos negócios querem que o público acredite ao mercadejarem sua virtuosa imagem do "mercado"; eles mascaram o comportamento predatório do capital na caça por maiores lucros.

Um dos eufemismos mais comuns lançado em meio a esta crise econômica é "austeridade", um termo utilizado para encobrir as duras realidades de cortes draconianos em salários, pensões e bem-estar público e o aumento drástico de impostos regressivos (IVA). Medidas de "austeridade" significam políticas para proteger e mesmo aumentar subsídios do Estado a negócios, criar lucros mais altos para o capital e maiores desigualdades entre os 10% do topo e os 90% da base. "Austeridade" implica autodisciplina, simplicidade, parcimônia, poupança, responsabilidade, limites em luxos e gastos supérfluos, evitar a satisfação imediata em benefício da segurança futura – uma espécie de calvinismo coletivo. A conotação da palavra é o sacrifício compartilhado hoje para bem-estar futuro de todos.

Contudo, na prática "austeridade" descreve políticas que são concebidas pela elite financeira para implementar reduções no padrão de vida de uma classe específica e em serviços sociais (tais como saúde e educação) disponíveis para trabalhadores e empregados assalariados. Significa que fundos públicos podem ser desviados numa extensão ainda maior para pagar altos juros a possuidores de títulos ricos enquanto sujeitam a política pública aos ditames dos senhores do capital financeiro.
Ao invés de falar de "austeridade", com sua conotação de severa autodisciplina, os críticos de esquerda deveriam descrever claramente as políticas da classe dominante contra o trabalho e as classes assalariadas, as quais aumentam desigualdades e concentram no topo ainda mais riqueza e poder. Políticas de "austeridade" são portanto uma expressão de como as classes dominantes utilizam o estado para comutar o fardo do custo da sua crise econômica para cima do trabalho.
Os ideólogos das classes dominantes apropriaram-se de conceitos e termos, os quais a esquerda originalmente utilizou para o avanço de melhorias em padrões de vida e que se voltaram contra si. Dois destes eufemismos, tomados da esquerda, são "reforma" e "ajustamento estrutural". "Reforma”, durante muitos séculos, referia-se a mudanças, as quais diminuíam desigualdades e aumentavam a representação popular. "Reformas" eram mudanças positivas que promoviam o bem-estar público e a restrição do abuso de poder por regimes oligárquicos ou plutocráticos. Ao longo das últimas três décadas, contudo, importantes acadêmicos, economistas, jornalistas e responsáveis da banca internacional subverteram o significado de "reforma" transformando-o no seu oposto: agora refere-se à eliminação de direitos do trabalho, ao fim da regulamentação pública do capital e à redução de subsídios públicos que tornavam a alimentação e o combustível acessíveis aos pobres. No vocabulário capitalista de hoje "reforma" significa reverter mudanças progressistas e restaurar os privilégios de monopólios privados. "Reforma" significa acabar com a segurança de emprego e facilitar despedimentos maciços de trabalhadores pelo rebaixamento ou eliminação da indenização por despedimento. "Reforma" já não significa mudanças sociais positivas; agora significa reverter aquelas mudanças arduamente conquistas e restaurar o poder irrestrito do capital. Significa um retorno à fase primitiva e mais brutal do capital, antes de existirem organizações de trabalhadores e quando a luta de classe era suprimida. Portanto "reforma" agora significa restaurar privilégios, poder e lucro para os ricos.
De um modo semelhante, os cortesões linguísticos da profissão econômica puseram o termo "estrutural", como em "ajustamento estrutural", ao serviço do poder desenfreado do capital. Ainda na década de 1970 a mudança "estrutural" referia-se à redistribuição da terra dos grandes latifundiários para os destituídos de terra; uma mudança de poder dos plutocratas para as classes populares. "Estruturas" referia-se à organização do poder privado concentrado no Estado e na economia. Hoje, contudo, "estrutura" refere-se às instituições e políticas públicas, as quais tiveram origem nas lutas do trabalho e da cidadania para proporcionar segurança social, para proteger o bem-estar, saúde e aposentadoria de trabalhadores. "Mudanças estruturais" são agora o eufemismo para esmagar aquelas instituições públicas, acabar com os constrangimentos ao comportamento predatório do capital e destruir a capacidade do trabalho para negociar, lutar ou preservar seus avanços sociais.
O termo "ajustamento", como em "ajustamento estrutural" (AS), é em si próprio um eufemismo suave que implica sintonia fina, a modulação cuidadosa de instituições e políticas públicas que apoiam a saúde e o equilíbrio. Mas, na realidade, "ajustamento estrutural" representa um ataque frontal ao setor público e um desmantelamento geral de legislação protetora e de agências públicas organizadas para proteger o trabalho, o ambiente e os consumidores. "Ajustamento estrutural" mascara um assalto sistemático aos padrões de vida do povo em benefício da classe capitalista.
A classe capitalista tem cultivado uma safra de economistas e jornalistas que apregoam políticas brutais em linguagem suave, evasiva e enganosa a fim de neutralizar a oposição popular. Infelizmente, muito dos seus críticos "de esquerda" tendem a apoiar-se na mesma terminologia.
Dada a corrupção generalizada da linguagem, tão difusa nas discussões contemporâneas acerca da crise do capitalismo, a esquerda deveria cessar de se apoiar neste conjunto enganoso de eufemismos apropriados pela classe dominante. É frustrante ver quão facilmente as expressões seguintes entram no nosso discurso:

"Disciplina de mercado" - O eufemismo "disciplina" denota uma fortaleza de caráter sério e consciente em face de desafios em contraposição ao comportamento irresponsável, escapista. Na realidade, quando vai a par com "mercado", refere-se a capitalistas a aproveitarem-se de trabalhadores desempregados e utilizarem sua influência política e o poder de despedirem massas de trabalhadores e intimidar os empregados remanescentes para maior exploração e excesso de trabalho, produzindo, portanto, mais lucro por menos pagamento. Ela também cobre a capacidade de grandes senhores capitalistas de elevarem sua taxa de lucro cortando os custos sociais de produção, tais como proteção ambiental e do trabalhador, cobertura de saúde e pensões.

"Choque de mercado" - Refere-se a capitalistas ocupados com maciços e abruptos despedimentos brutais, cortes em salários e eliminação de planos de saúde e pensões a fim de melhorar cotações de ações, aumentar lucros e assegurar maiores bônus para os patrões. Ao ligar o termo suave e neutro de "mercado" com "choque", os apologistas do capital disfarçam a identidade dos responsáveis por tais medidas, suas consequências brutais e os imensos benefícios desfrutados pela elite.

"Exigências do mercado" - Esta frase eufemística é destinada a antropomorfizar uma categoria econômica, afastar a crítica de proprietários reais de carne e osso, dos seus interesses de classe e do seu despótico estrangulamento do trabalho. Ao invés de "exigências de mercado", a frase deveria ser lida: "a classe capitalista ordena aos trabalhadores que sacrifiquem seus próprios salários e saúde para assegurar mais lucro para as corporações multinacionais" – um conceito claro que provavelmente despertará a ira daqueles adversamente atingidos.

"Livre empresa" - Um eufemismo que é a combinação de dois conceitos reais: empresa privada para lucro privado e competição livre. Ao eliminar a imagem subjacente do ganho privado para os poucos contra o interesse dos muitos, os apologistas do capital inventaram um conceito que enfatiza as virtudes individuais de "empresa" e "liberdade" em oposição aos vícios econômicos reais da cobiça e da exploração.

"Mercado livre" - Um eufemismo que implica competição livre, justa e igual em mercados não regulados encobrindo a realidade da dominação de mercado por monopólios e oligopólios dependentes de maciços salvamentos do Estado em tempos de crise capitalista. "Livre" refere-se especificamente à ausência de regulamentações públicas e intervenção do Estado para defender a segurança dos trabalhadores bem como a do consumidor e a proteção ambiental. Por outras palavras, "liberdade" mascara a destruição desumana da ordem cívica por capitalistas privados através do seu exercício desenfreado do poder econômico e político. "Mercado livre" é o eufemismo para o domínio absoluto de capitalistas sobre os direitos e meios de vida de milhões de cidadãos, na essência uma verdadeira negação da liberdade.

"Recuperação econômica" - Esta frase eufemística significa a recuperação de lucros pelas grandes corporações. Ela disfarça a ausência total de recuperação de padrões de vida para as classes trabalhadora e média, a reversão de benefícios sociais e as perdas econômicas de detentores de hipotecas, devedores, os desempregados a longo prazo e proprietários de pequenos negócios em bancarrota. O que é encoberto na expressão "recuperação econômica" é como a pauperização em massa se torna uma condição chave para a recuperação de lucros corporativos.

"Privatização" - O termo descreve a transferência de empresas públicas, habitualmente aquelas lucrativas, para capitalistas de grande escala privados, bem conectados, a preços bem abaixo do seu valor real, levando à perda de serviços públicos, emprego público estável e custos mais elevados para os consumidores, pois os novos proprietários privados elevam preços e despedem trabalhadores – tudo em nome de outro eufemismo: "eficiência".

"Eficiência" - Eficiência aqui refere-se apenas ao balanço de uma empresa; não reflete os custos 
pesados da "privatização" arcados por setores relacionados da economia. Exemplo: "privatizações" dos transportes aumentam custos de negócios a montante e jusante tornando-os menos competitivos em comparação com competidores de outros países; "privatização" elimina serviços em regiões que são menos lucrativas, levando ao colapso econômico local e ao isolamento dos mercados nacionais. Frequentemente, responsáveis públicos, que estão alinhados com capitalistas privados, desinvestem deliberadamente em empresas públicas e nomeiam compadres políticos incompetentes como parte da política clientelista, a fim de degradar serviços e fomentar descontentamento público. Isto cria uma opinião pública favorável à "privatização" da empresa. Por outras palavras, a "privatização" não é um resultado das ineficiências inerentes das empresas públicas, como os ideólogos do capital gostam de argumentar, mas um ato político deliberado destinado ao ganho do capital privado às custas do bem-estar público.

Conclusão

Linguagem, conceitos e eufemismos são armas importantes na luta de classe "dos de cima", concebidos por jornalistas e economistas capitalistas, para maximizar a riqueza e o poder do capital. Na medida em que críticos progressistas e de esquerda adotam estes eufemismos e seu quadro de referência, as críticas e alternativas que propõem são limitadas pela retórica do capital. Colocar "aspas" em torno dos eufemismos pode ser um sinal de desaprovação, mas isto não promove o quadro analítico diferente que é necessário para o êxito da luta de classe dos "de baixo". Igualmente importante, deixa de lado a necessidade de uma ruptura fundamental com o sistema capitalista, incluindo sua linguagem corrompida e seus conceitos enganosos. Os capitalistas subverteram em grande medida ganhos fundamentais da classe trabalhadora e estamos a cair outra vez em direção ao domínio absoluto do capital. Isto deve relançar a questão de uma transformação socialista do Estado, da economia e da estrutura de classe. Uma parte integral desse processo deve à rejeição total dos eufemismos utilizados pelos ideólogos capitalistas e a sua substituição sistemática por termos e conceitos que verdadeiramente reflitam a implacável realidade, que claramente identifiquem os perpetradores deste declínio e que definam as agências sociais para a transformação política.
O original encontra-se em http://petras.lahaine.org/?p=1898
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 26 de maio de 2012

Considerações sobre a reprovação dos educadores



Eunice Couto*
Professora Estadual
Para o Amigos

Impossível não ouvir, sem despertar a indignação dos educadores, os comentários acerca da baixa aprovação no concurso do magistério gaúcho. Em primeiro lugar, creio ser importante analisar o resultado como consequência das políticas educacionais implantadas no país ao longo das últimas duas décadas.

No início da década de 90 a disciplina de Língua Portuguesa contava com quatro ou cinco horas-aulas semanais para o Ensino Médio e ainda eram ensinados conteúdos gramaticais relevantes, sem que os professores fossem tachados de pré-históricos. Atualmente a carga horária diminuiu (duas a três aulas semanais) e tais assuntos – cobrados em qualquer concurso público de forma tradicional – devem ser trabalhados de forma disfarçada. Leia-se: superficial!

Por outro lado, há que se refletir sobre quantos desses quase 70 mil inscritos são vítimas da “expansão universitária”, a qual, entre outros aspectos, possibilitou a criação de centenas de universidades a distância, dessas que “formam” licenciados em Letras, Pedagogia, História, Biologia, etc, em dois ou no máximo dois anos e meio, a baixo custo, “popularizando o acesso ao diploma”. Destaque para o termo ‘Popularizar’ que, aqui, significa baixar a qualidade.

Ainda importantíssimo pensar que, ao contrário do que apregoam os governos sobre avaliação escolar e reprovação – buscando inclusive responsabilizar os educadores pelo baixo rendimento dos alunos, sem considerar aspectos gerais da vida dos educandos – o formato da prova exigia pontuação mínima de 60% em cada uma das quatro partes que a compunha: Língua Portuguesa, Legislação, Conhecimentos Pedagógicos e Conhecimentos Específicos. Ou seja, o candidato poderia totalizar 70% da prova, mas se numa delas não atingisse os 60%, estaria desclassificado.

Além dessas observações, outros pontos necessitam de atenção:

• Foram abertas 10 mil vagas, porém o número de contratos, ditos emergenciais, é bem superior a este número. Assim, o problema da falta de profissionais não seria solucionado, nem mesmo para o ano de 2013 por este concurso;

• Existe uma lei que prevê um piso salarial nacional (proporcional às 20 horas semanais) de R$ 725,50, em 2012, mas o salário básico oferecido no Edital é de apenas R$ 395,54;

• O valor da inscrição variava entre R$ 53,38 (para a formação mínima: Ensino Médio/Magistério) e R$ 121,70 (para formação em curso superior) – um dos processos seletivos mais caros, observando, principalmente, a remuneração oferecida.

Ao considerar esses aspectos, pode-se imaginar que houvesse seriedade na promoção do certame? Real interesse na solução dos problemas de falta de professores na rede pública de ensino do RS? Ou seria, além de fazer um bom caixa – fala-se numa arrecadação aos cofres públicos em torno de R$ 8 milhões (!?) – passar a ideia de atender a uma reivindicação ou promessa eleitoral e, por fim, consolidar suas posições de desmoralizar a categoria e justificar o não cumprimento da lei salarial perante a sociedade?

Ainda há outro ponto importante: é necessário, ao Estado, manter o maior número de profissionais contratados, precarizados, ou seja, sob a ameaça da perda do emprego, caso não se submetam às suas determinações; como também é fundamental que esses trabalhadores não tenham vínculos, não tenham direito à estabilidade, não gerem ônus futuros.

Simplificando: este concurso foi apenas engodo, ilusão para toda a sociedade gaúcha, passando a ideia de que o governo é bom, os trabalhadores é que não se esforçam, são preguiçosos ou desinteressados e, assim, colocar a população contra si própria.

* Eunice Couto é natural de Caçapava do Sul, Licenciada em Letras - Língua e Literatura Portuguesa pela URCAMP/Bagé, em 1991, Especialista em Educação, Professora na rede pública há 25 anos, sendo 17 anos somente na rede pública estadual e militante no movimento sindical desde 2000. Há 3 anos leciono no Colégio Estadual Dom João Braga, no Ensino Médio e Fundamental diurno. "Acredito na mudança da sociedade, rumo à justiça social, mas esta passa, inevitavelmente, pela educação e pela explicação nítida e objetiva acerca dos fatos que nos cercam" - diz a autora.

“Tenho noção da minha responsabilidade”, diz Brizola Neto no RS


PDT-RS
Encontro com Brizola Neto no diretório gaúcho do PDT contou com presença de lideranças estaduais da sigla | Foto: PDT-RS

Rachel Duarte no SUL21

A primeira aparição pública do ministro do Trabalho e Emprego, Brizola Neto (PDT) fora de Brasília foi ao estado berço do trabalhismo. Nesta sexta-feira (25), ele cumpre agendas partidárias no Rio Grande do Sul, que incluem conversas com correligionários, visita ao prefeito de Porto Alegre, José Fortunati (PDT) e um ato de recepção na sede do Partido Democrático Trabalhista. O ministro permanece no estado até sábado (26), quando participa da abertura do XV Congresso Estadual da Juventude Socialista do PDT. Nas primeiras palavras proferidas em solo gaúcho, o ministro afirmou que sabe o peso de ser um brizolista no governo federal. “Tenho noção da minha responsabilidade”, disse na primeira agenda com os trabalhistas.

O primeiro compromisso foi cedo da manhã, em um café de recepção ao novo ministro escolhido por Dilma Rousseff entre uma lista de três nomes oferecidos pelo PDT. O baixo quórum no ato refletiu que as divergências internas com a escolha da presidenta ainda não foram superadas. Os trabalhistas gaúchos desejavam ver uma das principais lideranças do partido no RS, o deputado federal Vieira da Cunha no lugar do neto de Leonel Brizola. Mas a decisão pessoal de Dilma prevaleceu. “A gente entende estas coisas no processo de articulações e preferências pessoais mas, no momento em que isso é definido, nós temos o compromisso partidário e com o trabalhismo brasileiro para nos unir. Eu sei que ele (Vieira da Cunha) sabe que isso é forte nele e em mim, será isso que nos unirá”, falou ao final do ato.

Porém, o parlamentar não esteve no ato e justificou motivos de agenda. “Nos avisaram que ele estava viajando. Eu lamento. Ele é uma grande liderança no partido, mas com certeza deve estar em algum compromisso mais importante que este aqui”, disse a deputada estadual Juliana Brizola. Segundo ela, o momento de disputa já deveria ter sido superado. “Agora já temos um ministro indicado pela presidenta. Espero que os companheiros preteridos por um motivo ou outro também olhem pra frente, para uma construção coletiva”, disse.
Ouvindo as primeiras palavras do ministro ao PDT gaúcho estavam o ex-governador Alceu Collares; o prefeito de Porto Alegre, José Fortunati; o deputado federal Giovani Cherini; o deputado estadual Gilmar Sossela e os representantes do PDT no governo Tarso Genro, Kalil Sehbe, Ciro Simoni e Afonso Mota. Outros parlamentares do estado e da capital, bem como representantes de outros municípios também estiveram presentes, formando um enxuto grupo de anfitriões.
A ausência do deputado federal Vieira da Cunha estava passando despercebida. Nas saudações a Brizola Neto, muitos votos de êxito ao novo ministro a frente da pasta do Trabalho e reconhecimentos ao legado brizolista que ele carrega em seu nome. E, a afirmação de unidade no partido fez parte da todas as falas.
“Vim buscar a nossa unidade partidária. Todos que fazem gestos assim pensam no crescimento do partido. Estamos à vontade com a sua presença”, disse o presidente do PDT-RS, Romildo Bolzan Jr.. Em nome dos sete deputados da bancada gaúcha na Assembleia Legislativa do RS, Gilmar Sossela disse que “a indicação de Brizola Neto honrou o partido”. Já o deputado federal Giovani Cherini disse que, apesar de alguns processos aguçarem as diferenças internas, o momento exige unidade. “Temos que aproveitar a representatividade no governo federal e reforçar o partido para disputar as eleições”, falou.

“Só vou ficar feliz quando Vieira da Cunha abraçar o ministro”, diz Collares

Prefeito de Porto Alegre José Fortunati (PDT) recebeu confirmação de apoio de Brizola Neto para sua reeleição | Foto: Jefferson Bernardes

Foi quando o ex-governador Alceu Collares usou a palavra para fazer sua saudação “ao menino que recebe uma nobre tarefa”, que a ausência de Vieira da Cunha foi posta na mesa. “Cadê o Vieira da Cunha que eu não to vendo aqui?”, perguntou o líder trabalhista. Ao ser informado da razão da viagem, disse que se tratava de uma velha desculpa. “Eu só vou ficar feliz quando o Vieira abraçar o ministro”, disse arrancando aplausos.
Antes que o ministro se justificasse que pretende resolver qualquer mal-estar ainda existente junto ao parlamentar, Collares seguiu expondo outras feridas do partido. “Os últimos acontecimentos da pasta do Trabalho foram lamentáveis. Este ministério foi criado pelo trabalhismo de Getúlio Vargas. Brizola Neto precisa restabelecer as funções esvaziadas, por diversos motivos, do Ministério do Trabalho”, falou. E deu um conselho digno de um antigo quadro partidário. “Ele assume com obrigação da unidade e terá que construí-la, pois não sei se teremos outra oportunidade”, disse.

Recuperar o tradicional trabalhismo no governo de uma trabalhista

Embora a visita de Brizola Neto ao Rio Grande do Sul não seja ministerial, ele aproveitou para reforçar suas intenções como representante do governo federal. “O trabalho era assunto de polícia antes da era Vargas. Depois da redemocratização, os autênticos trabalhistas e os novos trabalhistas tiveram diferenças de projetos de poder. Hoje, precisamos retomar nossa afinidade pelo bem do crescimento econômico do país com justiça social”, falou.
Brizola Neto diz que está à vontade no governo Dilma, devido à trajetória da presidenta no PDT gaúcho. O ministro disse que reconhece o peso de ser neto de Leonel Brizola, mas que está confiante no espaço dado a ele por Dilma. “Apenas fazer lembrar a memória de Brizola no país já seria suficiente, mas vou cumprir os compromissos pelo tradicional trabalhismo no governo Dilma”, garantiu aos colegas de partido.
Segundo ele, a principal tarefa será devolver o protagonismo da pasta antes dos escândalos de suspeitas de esquema de propinas que resultou na queda do antecessor Carlos Lupi. “Precisamos voltar a contribuir para colocar o trabalho como instrumento principal para o desenvolvimento nacional. O crescimento da economia brasileira esta relacionado com a valorização do trabalho e do trabalhador”, disse.
Sobre o encontro com Vieira da Cunha, o ministro desconversou. “A gente sempre se fala e se procura”. A irmã, deputada Juliana Brizola defendeu que “terão outras oportunidades para ele abraçar o deputado”.
Após deixar o ato na sede estadual do PDT gaúcho, o ministro do Trabalho e Emprego, Brizola Neto visitou o ex-marido de Dilma Rousseff, Carlos Araújo. Sobre o apadrinhamento de Araújo na indicação para o ministério, Brizola Neto disse que “é um grande amigo e foi um grande orientador na trajetória que eu tenho”.

1 milhão de vagas para Porto Alegre no Pronatec

Ministro Brizola Neto visita prefeito de Porto Alegre José Fortunati nesta sexta-feira | Foto: Luciano Lanes / PMPA

Em visita ao prefeito de Porto Alegre, José Fortunati, o ministro Brizola Neto anunciou a abertura de 1 milhão de vagas para cursos de qualificação em Porto Alegre, por meio do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). Segundo o ministro, a coordenação do Pronatec será dividida com o ministério da Educação (MEC). A visita ao prefeito teve o objetivo de consolidar a parceria da União com os municípios. “Dependemos 100% das prefeituras para execução dos programas do governo federal na área da qualificação profissional”, destacou.
Segundo Fortunati, a prefeitura já mantém convênios com o ministério para a realização de cursos de qualificação profissional. Este ano, a Secretaria Municipal do Trabalho Emprego projeta a criação de oito mil vagas em cursos na parceria com o governo federal, através dos programas Pronatec e Setorial de Qualificação (PlanSeQ). Os cursos de qualificação em Porto Alegre oferecem vagas em 40 especialidades, em áreas como comércio, serviços, construção civil, hotelaria, indústria e empreendedorismo. As novas vagas devem ser disponibilizadas até o final do ano.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Escracho, um instrumento de luta



Nascidos na Argentina na década de 1990 para denunciar os agentes da ditadura civil-militar responsável por um saldo de 30 mil mortos e desaparecidos no período, os escrachos criaram condenação social e abriram caminho para a abertura dos processos judiciais contra militares e civis envolvidos na repressão
por Dafne Melo no LeMondeBrasil
(Ação da Frente de Escracho Popular, no dia 7 de abril em São Paulo, denuncia o legista Harry Shibata, que assinava laudos falsos para encobrir torturas)

Na manhã de 25 de março de 2006, quem passava pela Avenida Cabildo, número 639, no bairro portenho de Belgrano, via a parte externa de um prédio residencial, precisamente na altura do sexto andar, manchado de tinta vermelha, além de placas e pichações na rua. “Aqui vive um genocida”, diziam algumas das mensagens. Nesse endereço vivia Jorge Rafael Videla, um dos líderes da Junta Militar que tomou o poder por meio de um golpe de Estado em 24 de março de 1976.
Quem tivesse passado no dia anterior teria visto 15 mil pessoas em uma manifestação diante da casa do repressor, na ocasião em prisão domiciliar (hoje cumpre a pena em um presídio). Tratava-se de um escracho, como ficou conhecido na Argentina e no Uruguai um determinado tipo de mobilização em que se evidencia publicamente um fato condenável em relação a uma pessoa ou lugar.
As semelhanças com os atos realizados por jovens brasileiros nos meses de março e abril não são meras coincidências. No comunicado da organização Levante Popular da Juventude, que organizou seis escrachos a repressores brasileiros em seis cidades simultaneamente, no dia 26 de março, é feita referência à experiência do país vizinho e à chilena, onde esse tipo de mobilização recebe o nome de “funa”.
Há consenso, porém, que o escracho nasceu na Argentina. “É uma ferramenta de luta que criamos em determinado período de nossa história”, conta Julio Avicento, da Hijos (sigla em espanhol para Filhos e Filhas pela Identidade, Justiça e contra o Esquecimento e o Silêncio, que forma a palavra “filhos”), da cidade de La Plata, organização à qual se atribui a criação do escracho.
O período a que se refere Avicento é a década de 1990, quando vigoravam as chamadas “leis de impunidade”. Após o fim da ditadura civil-militar, em um contexto de denúncias feitas pelas organizações de direitos humanos, crise econômica e desmoralização em razão da derrota na Guerra das Malvinas, os integrantes das juntas militares que chefiaram o país entre 1976 e 1983 foram julgados, em 1985. O resultado foi a condenação de Videla e Emilio Eduardo Massera à prisão perpétua, e de outros três chefes da Junta a penas menores. Outros quatro foram absolvidos.
 
Nova geração e impunidade
A Argentina era então governada por Raúl Alfonsín, que depois do Julgamento às Juntas sancionou duas leis: Ponto Final e Obediência Devida. Juntas, concediam anistia a todos os outros militares e policiais com a justificativa de que haviam cumprido ordens de seus superiores. Portanto, estes já haviam sido julgados e o assunto estava encerrado. Para completar, em 1990 o então presidente Carlos Menem concedeu um indulto aos condenados, colocando em liberdade os chefes militares.
 Para Julio Avicento, nesse momento houve um ponto de inflexão em que essas leis passaram a ser questionadas pelas quatro gerações de lutadores: as mães, pioneiras na luta contra a impunidade; as avós, que questionavam o paradeiro de seus netos (a ditadura civil-militar argentina roubou cerca de 500 filhos de desaparecidos); a própria geração dos desaparecidos, representada pelos sobreviventes; e os filhos, que nessa época estavam entre a adolescência e a vida adulta.
Em um contexto de impunidade total, no qual era impossível avançar judicialmente, a organização Hijos passou a sugerir a possibilidade de um avanço em outro tipo de condenação. “O caminho era a condenação social, já que não se podia contar com a Justiça, cúmplice do genocídio. Quanto mais a sociedade condena, mais fácil é romper a impunidade, inclusive judicialmente”, resume Agustín Cetrangolo, também militante da Hijos, na capital Buenos Aires. De fato, foi o que ocorreu no país. Em 2003, Néstor Kirchner derrubou as leis, o que permitiu o início do julgamento judicial de vários repressores. “Quase todos os processados ou julgados foram escrachados antes”, conta Cetrangolo.
Julio Avicento revela que diversas organizações participavam do escracho, não apenas a Hijos. “Usávamos as chamadas ‘mesas de escrachos’, nas quais participavam distintas organizações; havia muitas tarefas para dividir e muito a aprender durante o caminho”, lembra. O militante explica que um trabalho prévio ao escracho era feito, não só de investigação para comprovar a participação do repressor, mas também com os vizinhos. “Passávamos casa por casa conversando, explicávamos que íamos fazer uma atividade, entregávamos um texto explicando o porquê”, explica. A chamada “mesa de escracho” era geralmente feita em um centro cultural ou na sede de alguma organização, que cedia o espaço. Os militantes faziam então um diálogo com o bairro e com as organizações a partir do eixo da denúncia aos repressores.
A lógica não era necessariamente gerar a surpresa e um incômodo no repressor no momento do escracho, mas instalar um desconforto permanente por meio do trabalho com os vizinhos. “Queríamos que as pessoas se recusassem a entrar no elevador com eles, que o padeiro do bairro se recusasse a vender pão. Dizíamos: se não vai para a cadeia, que sua casa seja uma cadeia. Que na rua sejam repudiados pela sociedade.”
 
Filhos da luta
As organizações que aderiam ao escracho a um genocida (na Argentina, alguns juízes afirmam que os crimes de lesa-humanidade cometidos na ditadura se deram dentro de um plano sistemático de extermínio, que pode ser classificado como genocídio) não eram apenas formadas por familiares. A Hijos, por exemplo, é aberta à participação de toda a sociedade. Explica Avicento: “Não sou filho de desaparecido, mas há quatorze anos milito no âmbito dos direitos humanos, conheci muitos companheiros [filhos e parentes] e me envolvi. O rico dessa luta é que toda a sociedade pode se envolver”. Não somente pode, como deve. “Toda a sociedade foi vítima do terrorismo de Estado, todos sofreram com o terror e o medo”, completa.
Agustín Cetrangolo é filho de Sergio Cetrangolo, desaparecido em 1978. A mãe, também presa e torturada, é da geração de sobreviventes. “Não entendemos que a reparação é apenas com os familiares, mas deve-se reparar toda uma sociedade”, defende. “Na Hijos dizemos que todos somos filhos da mesma história. Seria um erro dizer que o genocídio pretendeu apenas exterminar as organizações políticas e seus militantes. A violência do genocídio extrapola isso. Se entendemos que toda a sociedade foi vítima desse terrorismo de Estado, por que não podemos organizar qualquer setor para lutar contra isso?”, completa.
Para Julio Avicento, quem usa o argumento de que os jovens de hoje não “têm nada a ver” com a repressão “esconde na verdade uma posição que procura manter a impunidade em relação aos repressores”. Os militantes também lembram que o aparato repressivo da ditadura persiste até hoje, com os casos de assassinatos de jovens pela polícia ou a perseguição e espionagem dos movimentos sociais. Também por isso os escrachos continuam sendo usados. “O escracho transcendeu a Hijos, para além do que entendíamos como escracho. Em 2001, por exemplo, escrachou-se tudo, bancos, McDonald’s”, recorda Cetrangolo.

Dafne Melo
Jornalista e historiadora


Ilustração: Igor Ojeda