Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sábado, 2 de julho de 2011
A esquerda democrática e a revolução cubana
Fernando de La Cuadra
Claudia Hilb. Silêncio, Cuba. A esquerda democrática diante do regime da Revolução Cubana. Trad. Miriam Xavier. São Paulo: Paz e Terra, 2010. 111p.
-----------
Quando
os tanques soviéticos invadiram Praga e o socialismo real se
apresentava aos nossos olhos — junto com o fascismo — como um grande
pesadelo do século XX, a revolução cubana surgia como uma experiência
inédita, diáfana e enaltecedora. E, inclusive, os fuzilamentos que se
seguiram ao triunfo de Santa Clara foram considerados consequências
inevitáveis das dores do parto.
Mas como fazer a critica de uma
revolução que gerou tanta esperança na região e no mundo? Como
questionar um processo que se enraizava nos valores mais elevados da
humanidade, o fim da exploração dos mais desprovidos, dos mais
vulneráveis? Como abordar as práticas autoritárias do regime cubano, sem
fazer causa comum com os setores mais “reacionários”? Estas e outras
perguntas de similar teor acabaram por imunizar Cuba da crítica da
própria esquerda democrática. Por isso, já passadas mais de cinco
décadas desde aquele 1º. de janeiro de 1959, ainda existe um silêncio
cúmplice sobre os erros de rumo de uma revolução que continua
assombrando os intelectuais progressistas e a esquerda assumidamente
democrática.
É precisamente esse silêncio incômodo que estimula a reflexão de Claudia Hilb.
Esta socióloga e cientista política argentina, militante da esquerda
radical, teve de sair para o exílio depois do golpe de 1976. Em Paris,
realizou estudos de pós-graduação e frequentou os seminários de Claude Lefort,
sua principal fonte de inspiração intelectual. Colocada diante da
pergunta sobre a razão pela qual a esquerda democrática tem guardado um
conspícuo silêncio frente aos traços autoritários do regime cubano, ela
tenta responder através da seguinte hipótese: a recusa desta esquerda a
se pronunciar a este respeito se deve, em grande parte, ao fato de que
reconhece o esforço realizado pelo regime em termos de justiça social,
ou seja, este setor da esquerda reconhece “algumas realizações
indiscutíveis do regime em questão, particularmente o fato de igualar as
condições sociais e universalizar o acesso à saúde e à educação” (Hilb,
2010, p. 14).
Mas isso é suficiente para legitimar um regime
político que diz lutar por um mundo mais justo, livre e solidário?
Certamente não. Claudia Hilb decompõe os meandros deste dilema e conclui
com a certeza inquietante de que os esforços pela igualação radical das
condições de vida do povo cubano, na primeira década da revolução,
foram um fenômeno entrelaçado com o processo de concentração total do
poder nas mãos de Fidel Castro.
Ainda mais, no percurso do texto
a autora demonstra consistentemente como uma vocação de dominação
total, sustentada na vontade do líder máximo, transformou o entusiasmo e
a virtude revolucionária em obediência acrítica. De modo análogo, a
gesta revolucionária de inspiração emancipadora produziu, através do
medo, um comportamento oportunista e paralisador dos mesmos sujeitos
ativos da revolução. Ela argumenta que o processo de concentração de
poder nas mãos do Comandante Fidel foi um fenômeno de teor organicista,
pelo qual o líder se vê como reitor de uma sociedade, situado
legitimamente no topo de uma pirâmide a partir da qual o social torna-se
visível em sua plenitude.
Foi assim que, como consequência
inevitável desta visão, Fidel Castro se transformou na encarnação
suprema da revolução. Tudo o que provém dele representa a revolução, e,
como ele mesmo sentenciou na mensagem dirigida aos intelectuais cubanos
no ano seguinte ao seu triunfo, “dentro da Revolução, tudo; contra a
Revolução, nada.”
Desta forma — relata Hilb —, o regime passou a
cooptar ou subordinar a totalidade das dimensões que conformavam a
realidade cubana — as universidades e o movimento estudantil, as
fábricas e os sindicatos, os intelectuais e as entidades da cultura —,
numa velocidade vertiginosa e arrasadora que se consolida já nos
primeiros anos do regime socialista, sepultando qualquer vestígio de
critica, ainda que fosse realizada por eminentes figuras surgidas no
seio da própria luta revolucionária, como Huber Matos, Carlos Franqui ou
Heberto Padilla. O caso deste último foi o mais dramático e patético:
“A lamentável paródia da sua confissão de culpa foi o sinal definitivo
de que a possibilidade de discordar dentro da área cultural
revolucionária ficava eliminada e também foi um sinal que, apesar dos
esforços por ignorar o rumo que a Revolução tomava já há muito tempo,
muitos dos seus antigos amigos já não conseguiram ou quiseram deixar de
ouvir” (Hilb, op. cit., p. 35).
A excepcionalidade da
experiência cubana se transformou no mesmo pesadelo de matriz
stalinista, em que o poder do povo se transforma em poder do partido
revolucionário, deste se transfere para o comitê central e, finalmente, o
dito poder acaba concentrado nas mãos do ditador. Mas o que salienta a
autora, e certamente representa uma importante afirmação, é que este
processo de concentração do poder foi concomitante com as intensas e
veementes ações em prol do nivelamento das condições de vida da
população cubana. As mobilizações espontâneas de apoio à revolução —
como a campanha pela alfabetização, o trabalho voluntário durante a
safra do açúcar — foram constituindo-se numa prática formal destinada a
obter maiores benefícios e prebendas da parte do regime. Por sua vez, à
vasta e incondicional adesão e ao entusiasmo inicial captado pelo
movimento revolucionário seguiu-se um período de desconfiança e medo,
causado pelo crescente e perverso patrulhamento ideológico, a espionagem
e a delação entre vizinhos, fato este não só amplamente documentado em
milhares de relatórios sobre direitos humanos na ilha, mas também em
inumeráveis expressões no campo da cultura (literária e artística), como
o romance de Guillermo Cabrera Infante, Três tristes tigres, ou o livro autobiográfico de Reinaldo Arias, Antes que anochezca, levado posteriormente para o cinema.
Assim,
o regime cubano foi institucionalizando apoios e alimentando medos, e,
paradoxalmente, o custo político evidente de uma manifestação de
descontentamento também se estendeu a uma postura neutra. A
neutralidade, afinal, era uma posição mais sintomaticamente política que
qualquer adesão resignada e conservadora marcada pelo interesse
individual para obter benefícios do governo ou como disfarce diante de
possíveis represálias dos aparelhos de vigilância (por exemplo, os
Comitês de Defesa de Revolução — CDR). A “neutralidade” gerava igual ou
maior suspeita que uma posição decididamente opositora e, em definitivo,
resultava ser tanto ou mais perigosa que o enfrentamento direto: se
falo, sou um inimigo, mas, se não falo, também sou um inimigo em
potencial. Como depois seria emulado pelo socialismo bolivariano, o
regime cubano foi criando uma extensa trama de aduladores e seres
desprezíveis que fazem da complacência acrítica uma fórmula fácil para
ganhar as simpatias do líder e aceder aos privilégios proporcionados
pelo Estado, no melhor estilo stalinista descrito magistralmente por
George Orwell em seu romance distópico 1984.
Neste breve e
contundente ensaio, a autora nos lembra também que o ponto de vista
organicista não é privilégio somente das correntes “reacionárias” do
pensamento, mas também de certas vertentes que se dizem de esquerda ou
socialista. No caso cubano, é sintomático que qualquer arroubo de
crítica tenha sido automaticamente reprimido, qualquer sinal de
pensamento dissidente imediatamente expurgado, qualquer indício de
criatividade distinto do cânon institucionalizado igualmente extirpado,
como um câncer maligno que pretendesse se alastrar pelo conjunto do
corpo social.
Sistemas conceituais fechados de explicações
absolutas e totalizadoras não dão espaço para o debate democrático,
pois, qualquer que seja a natureza do questionamento das restrições às
liberdades políticas e individuais, a resposta quase sempre será que
aquele que age dessa forma pensa a partir de uma perspectiva
“pequeno-burguesa”, razão pela qual possui valores deturpados e uma
compreensão ofuscada da realidade derivada da sua condição privilegiada
de classe. Portanto, não existe espaço para devaneios e diletantismos
teóricos: “dentro da Revolução tudo; contra a Revolução, nada”, segundo o
axioma mencionado. O Comandante encarna, em última instância, o fulgor e
a epopeia revolucionária e, consequentemente, é também quem decide o
que está dentro e o que está fora.
Atribuindo-se a
si mesmo o espírito e o comando da revolução, Fidel conseguiu num breve
período de tempo — durante a primeira década do regime — concentrar
todo o poder do Estado cubano e sufocar qualquer tipo de iniciativa
política que pudesse colocar em risco sua liderança e autoridade. E
precisamente neste ponto a autora nos conduz para uma reflexão
perturbadora a respeito do fato de que a experiência revolucionária
acumulada — Rússia e China, entre outras — nos demonstraria que a
afinidade entre personalização e concentração de poder revolucionário
representa uma tendência constante e inevitável, baseada na “convicção
de que o afã construtivista, a pretensão de moldar de cima a sociedade
está indissoluvelmente ligada à convicção de que esta tarefa deve ser
encarada de modo onipotente desde o ponto mais alto da sociedade”. É aí
que a figura do Líder emerge como uma espécie de alquimia para organizar
o todo social, para definir metas, funções e responsabilidades de cada
um dos membros desse organismo. Assim, durante o processo de construção
da Revolução Cubana esse papel foi concentrado na pessoa de Fidel, que
com seu carisma e liderança resolveria, “definitiva e brutalmente”, a
polissemia revolucionária.
No entanto, esta síntese que define o
destino do povo cubano perde desde muito cedo seu verdadeiro caráter
emancipatório. Se bem que o projeto revolucionário tenha conseguido
resolver drasticamente a desigualdade prevalecente nos tempos de
Batista, ele não permitiu, simultaneamente, realizar os anseios de
autonomia e participação democrática entre os habitantes da ilha. Pelo
contrário, a aspiração liberadora das “garras” da ditadura batistiana
transformou-se num breve espaço de tempo no império da censura, do medo e
da submissão.
Tal contradição do socialismo “realmente existente” já tinha sido denunciada, há anos, por Rudolf Bahro no seu livro Die Alternative
(1977) [1]. Nele o escritor alemão constata — entre outros aspectos —
como o socialismo real dos países da Europa Oriental optou por priorizar
(ainda que com evidentes limitações) a resolução da questão da
igualdade e da justiça social, à custa dos princípios da liberdade civil
e política e do respeito aos direitos de participação democrática e
autorrealização dos cidadãos.
Também em Cuba a pretensão
construtivista e igualitária supôs que um conjunto de valores
coletivistas poderia ser inoculado nas pessoas para que elas superassem o
individualismo e o egoísmo particularista, criando uma entidade — com
características do tipo puro ideal weberiano — chamada de “homem novo”.
Mas este projeto transformador se realizou desde cima, desprezando e
coibindo qualquer pulsão dos indivíduos em prol da formação de um novo organismo
ou corpo social em que primassem os princípios igualitários consagrados
pela épica revolucionária: “A fabricação vertical da sociedade exige
que cada um cumpra um papel que o poder, desde a cúpula, lhe atribui; se
não cumprir por consciência, cumprirá por temor”.
De tal
modo, o desejo de liberdade se transformou em aceitação da opressão, o
Terror e o medo substituíram a adesão e o fervor revolucionário do povo
cubano. Quem não compartilha estes princípios converte-se em traidor e
pária: um gusano [2]. A execração das “Damas de Branco”,
que viraram arquétipo da deslealdade e alvo do repúdio dos populares,
que descarregam contra elas a palavra de ordem: “as ruas são de Fidel”,
expressa sem maiores subterfúgios a consagração de uma sociedade
amordaçada e imobilizada pelo temor.
Por isto, nos interrogamos —
tal como se interroga a autora —, o que resta da promessa da Revolução?
O que resta do sonho libertário e emancipatório que encarnava a façanha
revolucionária dos barbudos? O que dele pode restar para uma esquerda
democrática e plural que acredita na construção de uma sociedade mais
justa, igualitária e livre da opressão? Muito pouco ou nada.
A
Revolução que se fez para igualar e libertar os “de baixo” acabou por se
construir pelo alto, domesticando a população através de mecanismos de
persuasão e de coerção. Transformou-se, assim, na negação da esperança
de um mundo pluralista e tolerante, marca iniludível de um socialismo
moderno que não pode abjurar dos princípios democráticos. Ou quiçá,
também, na negação da esperança de um tipo de socialismo associativo
que, segundo a formulação de Paul Hirst, aspire a constituir-se numa
democracia social alternativa ao socialismo autocrático de Estado e ao
liberalismo do livre mercado [3].
Nesse contexto, adquirem maior significado as palavras do recentemente falecido Antonio Cortés Terzi,
para quem os ideais inovadores e pioneiros de Allende têm mais de
“socialismo do século XXI” que as práticas ortodoxas dos irmãos Castro
ou de Chávez.
Estas últimas parecem aproximar-se mais do legado stalinista do século
passado que de um socialismo renovado e projetado para resolver os
desafios futuros de nossas sociedades.
-----------
Fernando de La Cuadra é sociólogo chileno e membro da Rede Universitária de Pesquisadores sobre a América Latina (RUPAL).
-----------
Notas
[1] No Brasil: A alternativa – Para uma critica do socialismo real. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
[2] Este temor ao linchamento social cria paralelamente uma “dupla moral”, uma dissociação entre a moral pública de fidelidade e apoio ao regime e a moral privada, de sobrevivência, que utiliza inúmeros recursos ilegais para resolver restrições e problemas da vida cotidiana.
[3] Paul Hirst. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
[1] No Brasil: A alternativa – Para uma critica do socialismo real. São Paulo: Paz e Terra, 1980.
[2] Este temor ao linchamento social cria paralelamente uma “dupla moral”, uma dissociação entre a moral pública de fidelidade e apoio ao regime e a moral privada, de sobrevivência, que utiliza inúmeros recursos ilegais para resolver restrições e problemas da vida cotidiana.
[3] Paul Hirst. A democracia representativa e seus limites. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
Marcadores:
educação,
Formação Politica,
literatura,
opinião filosofica
Chile deve apresentar reforma educacional nos próximos dias
O subsecretário chileno da Educação, Fernando Rojas, disse nesta
sexta-feira (01) que o presidente Sebastián Piñera apresentará nos
próximos dias o projeto de reforma da educação, que estará centrado no
“financiamento estudantil”.
“Temos que nos encarregar de um sistema que dê acesso, que dê financiamento adequado e que reduza os custos que a educação superior tem para as famílias chilenas”, disse Rojas, em uma entrevista para a rádio Cooperativa.
“Temos que nos encarregar de um sistema que dê acesso, que dê financiamento adequado e que reduza os custos que a educação superior tem para as famílias chilenas”, disse Rojas, em uma entrevista para a rádio Cooperativa.
Segundo o subsecretário, o projeto será discutido no Congresso e “tem
que abordar matérias de qualidade”, assim como “a criação da
Subsecretaria da Educação Superior”. Em relação às recentes
manifestações, o representante do Ministério da Educação disse que os
jovens estão fazendo um chamado. “Temos que deixar de brigar e ir
trabalhar”, acrescentou.
Ontem à noite, depois de encerrados os protestos, Piñera convocou
vários ministros para analisar a marcha e estudar um projeto com o qual o
governo espera superar o conflito. Cerca de 400 mil pessoas se
mobilizaram ontem em seis cidades do país durante uma manifestação
convocada pela Confederação de Federações de Estudantes do Chile e pelo
Colégio de Professores, segundo o balanço entregue por ambas as
organizações.
Líder do Colégio de Professores, Jaime Gajardo, afirmou que o
movimento “vai continuar” e anunciou que já está sendo preparada uma
nova marcha nacional que pedirá a renúncia do ministro da Educação,
Joaquín Lavín. Segundo ele, essa “foi uma jornada de sucesso,
monumental, grandiosa, de caráter nacional”.
A maioria dos manifestantes, que ocuparam a principal avenida da
capital Santiago, é composta por estudantes universitários e
secundários, além de professores e funcionários públicos, que lutam por
melhores condições de trabalho e salário.
Com Ansa
Moradora de Hulha Negra é sétima vítima fatal da gripe A no RS
A Secretaria de Saúde do Rio Grande do Sul confirmou mais uma morte
causada pela gripe A H1N1 no Estado. O óbito, ocorrido em Hulha Negra, é
o sétimo caso fatal de gripe a ser registrado no Rio Grande do Sul. A
vítima, segundo o Centro Estadual de Vigilância em Saúde (CEVS), é uma
mulher de 55 anos, portadora de diabetes e que não tinha sido vacinada
contra a doença.
Até o momento, foram confirmados 37 casos de gripe A no RS. Em um
total de 536 notificações, ainda existem 134 casos sob investigação. Os
demais foram descartados. Segundo a chefe da Divisão de Vigilância
Sanitária do CEVS, Marilina Bercini, a situação está sob controle e não
está caracterizada uma epidemia de gripe a H1N1 no Rio Grande do Sul.
Um lote de 140 mil doses de vacina monovalente foi entregue no RS
nesta sexta-feira (1º). O plano da Secretaria de Saúde é distribuir as
vacinas no decorrer da semana que vem, priorizando áreas onde foram
registrados casos de gripe A.
Com informações da Secretaria de Saúde do RS
sexta-feira, 1 de julho de 2011
Consumidor trabalhador
E
o consumidor vai ao supermercado, enche o carrinho, fica na fila do
caixa; monta seu kit de móveis, instala seu decodificador de TV, ativa
sua conexão de internet; procura a referência da conexão da torneira do
banheiro, aprende a usar programas de computador, lê manuais...
|
por Laurent Cordonnier no LE MONDE - BRASIL |
Folga não é necessariamente descanso. Já sabemos que, quando o
trabalhador – e a trabalhadora, em especial – não está “no trabalho”,
ele continua a labutar, porque o tempo gasto em tarefas domésticas
ultrapassa o usado no trabalho remunerado.1 Mas prestamos
menos atenção ao fato de que ele consome e, como consumidor, muitas
vezes trabalha de graça para as empresas ou governos... para terminar,
justamente, o trabalho. Ele lê revistas de consumidores, faz pesquisas
na internet, organiza seus projetos, reserva suas passagens de trem; vai
ao supermercado, enche o carrinho, fica na fila do caixa; monta seu kit
de móveis, instala seu decodificador de TV, ativa sua conexão de
internet; procura a referência da conexão da torneira do banheiro,
aprende a usar programas de computador, lê manuais... e volta alguns
dias depois ao serviço de suporte de vendas, quando não ao balcão de
reclamações.
Se o consumidor trabalha, pode-se dizer que ele faz isso porque quer.
Participar da produção de bens de consumo seria uma forma agradável de
fazer horas extras, que não são pagas diretamente, mas na verdade
economizam o salário (permitindo comprar mercadorias mais baratas que
estão inacabadas). Para quem é corajoso e aprecia o “faça você mesmo”,
essa oferta de trabalho voluntário tem também a vantagem de não estar
exposta ao risco de desemprego. É um daqueles casos excepcionais, como o
de Robinson Crusoé em sua ilha, em que basta querer trabalhar para
encontrar um emprego. Alguns até defendem que esse trabalho benévolo é o
grau de autonomia que nos é oferecido, a oportunidade de não sermos
consumidores passivos. A figura do trabalhador manual hábil, do amador
entusiasta, da pessoa competente em consertar coisas, do “Consumidor
Atuante”, está sempre pronta para aparecer em cena.
O consumidor-trabalhador achará, no entanto, difícil admitir – porque
seu trabalho é também o de “positivar” esses momentos –, mas esse grau
de autonomia não é, realmente, opção sua. Tal como seu vizinho, ele leva
seus sapatos ao sapateiro, remove sua bandeja de fast-food,
preenche páginas de informações pessoais no momento da compra on-line,
passa as manhãs de sábado nas lojas tentando encontrar um armário de
rodinhas que não é mais fabricado... Mesmo que ele venha a desfrutar a
“liberdade” – uma ideia que alguém colocou em sua cabeça – de reservar
sua passagem de trem pela internet, de pijama, sentado confortavelmente
em sua cama, para sua viagem de negócios do dia seguinte, ele sabe,
talvez lá no fundo, que não está usando seu tempo livre para ir pescar. O
trabalhador ainda ousará, às vezes, admitir que não tem muita escolha,
as filas são longas nas bilheteiras da estação... Pois é desenvolvendo
todo tipo de alternativa desagradável para o consumidor que, este,
finalmente, achará mais conveniente fazer o serviço ele mesmo. O manejo
cuidadosamente calculado das filas nos correios, na Previdência Social,
no supermercado é certamente uma das artes consumadas da gestão
neoliberal, que consiste em transformar o comportamento de repúdio do
consumidor em uma marcha heroica para a liberdade de escolha.
Tornando-se um trabalhador, o consumidor descobre a produtividade. Que
vergonha se ele não tiver a destreza suficiente para parecer um ás do
caixa rápido. Ele vai sentir na nuca a respiração silenciosa e irritada
dos clientes na fila. O imperativo da produtividade o persegue até
quando sai de férias, quando ouve, encantado, as instruções da
recepcionista da companhia aérea para sua autorreserva que irá,
eventualmente, eliminar o próprio trabalho dela. Aos poucos, porém, ele
recebe algumas pequenas recompensas que lhe trarão a alegria de enfim
ter alcançado a conformidade: os caixas rápidos não lhe metem mais medo;
ele pilota com virtuosismo os terminais automáticos da empresa
ferroviária; sabe finalmente atualizar a licença de seu antivírus. O
consumidor certamente ganha competência. Mas, para fazer disso algo
totalmente positivo, seria necessário esconder o fato de que esse tipo
de qualificação – inegavelmente importante, pois sua ausência poderia
torná-lo inviável, social e economicamente – é apenas uma chave que abre
e fecha todas as portas de uma prisão... sem nunca se ver a luz do dia.
Em última análise, de que se ocupa o consumidor – como é que ele se
torna cada vez mais um trabalhador? Ele está ocupado esvaziando com uma
pequena colher o oceano de destroços de uma sociedade que teremos de
chamar um dia de “sociedade da pane”. Tudo o que funciona, tudo o que
pode ser feito sem muita dificuldade, tudo o que é regular (normal,
rotineiro, repetitivo), tudo o que “vai bem”, que “flui”, em suma, tudo o
que é suscetível de sucesso fácil tem sido confiado a autômatos
(tecnológicos ou de procedimento). Mas em um mundo em que o registro da
ação humana foi reduzido, de forma mortal, pelas operações técnicas,
confiar a melhor parte (as ações que produzem) às máquinas é morrer
antes do tempo.
A sociedade de serviços não tem se tornado o recipiente, muitas vezes lucrativo,2
sempre bastante mórbido, dessa economia de pane? Uma economia que faz
que as oportunidades de encontro, intercâmbio e troca de palavras se
realizem em torno do fracasso: nos balcões de serviço ao consumidor, no
guichê de reclamações, no pronto-socorrodo hospital, na delegacia, ou
seja, onde quer que se forneçam as soluções para colocar de volta nos
trilhos de um protocolo automatizado uma situação que foge das normas,
um caso difícil, um mal-entendido, aquilo que escapou por um momento. Os
funcionários que trabalharam durante todo o fim de semana encontram na
segunda-feira, no emprego, os náufragos do protocolo: aqueles para quem o
tratamento de antibióticos não funcionou (os pacientes curados
raramente retornam para cumprimentar o médico), os que perderam sua
correspondência, o viajante que teve sua bagagem extraviada no
aeroporto, os analfabetos que “não compreenderam direito” os termos do
contrato de empréstimo ao consumidor, um inquilino que não paga o
aluguel há três meses...
Marcadas com o selo do fracasso, do fiasco, da má sorte, as
oportunidades que nos são dadas para “restaurar algo de humano em tudo
isso” se transformam em amargura, desconfiança, queixas e protestos
vazios. Sentimo-nos então quase apaziguados quando todas essas
respostas, como a descarga de agressividade que acabamos de lançar no
sistema de telemarketing de nosso provedor de internet, são capturadas
de forma higiênica e retificadas por uma salva de boas maneiras
formulada também automaticamente: “Obrigado por sua confiança, Sr.
Robinson; a empresa Quesabeoquefaz lhe deseja uma boa noite!”.
A ambição de automatizar os excessos do sistema pode ser nosso novo
Eldorado. Começamos a sonhar, imperceptivelmente, com coisas que
poderiam funcionar “realmente bem”. De repente passamos a sentir a
satisfação narcisista de nos reconhecer nesse universo de causalidades
implacáveis, dissimulando cada vez menos nosso entusiasmo tecno-cool.
Como dizia André Gorz, “a mente, que se torna capaz de funcionar como
uma máquina, se reconhece na máquina capaz de funcionar como ela – sem
perceber que na verdade a máquina não funciona como o espírito, mas
apenas como o espírito que aprendeu a funcionar como uma máquina.”3
Laurent Cordonnier é economista e mestre de conferências da Universidade Lille-I. Autor de Pas de pitié pour les gueux (Nenhuma piedade para os miseráveis), Paris, Raisons d'Agir, 2000 e de L’Economie des Toambapiks, Raisons d’Agir, Paris, 2010.
Ilustração: André Dahmer *Laurent Cordonnier, economista, é autor de A economia dos Toambapiks: uma fábula que não tem nada de ficção, Raisons d’agir, Paris, 2010.
1 Estimada entre um quarto e três quartos do Produto Interno Bruto, a
autoprodução dos serviços domésticos não se reflete na contabilidade
nacional, em parte porque são as mulheres que a realizam.
2 Ver Tahar ben Jelloun, “34 centavos de euro por minuto”, Le Monde, 10-11 de outubro de 2010.
3 André Gorz, Metamorfoses do trabalho: Busca de sentido, Galilée, Paris, 1988. |
O governo Tarso e algumas gotas de governo Olívio
|
|
|
|
Marco Aurélio Weissheimer |
Alguns leitores fizeram
referência ao governo Olívio Dutra no contexto do debate sobre o Plano
de Sustentabilidade Financeira apresentado pelo governo Tarso Genro à
Assembleia Legislativa. Estaria faltando, segundo eles, algumas “gotas
de governo Olívio” ao atual governo. A referência é interessante e
oportuna, pois permite lembrar alguns episódios, no início do governo
Olívio que, de certo modo, se repetem agora.
Em maio de 1999, o CPERS realizou uma acalorada assembleia geral no Ginásio Tesourinha. O governo Olívio contava, então, com cinco meses de vida e foi alvo de pesadas críticas, entre outras coisas, por não dar o aumento pretendido pelos professores e por não suspender o pagamento da dívida à União. Argumentava-se que se o governo suspendesse o pagamento da dívida poderia dar um aumento de 99,9% para os professores (não lembro bem se era exatamente esse o valor, mas a ideia era essa). Ali se configurou um bloco partidário dentro do PT que faria oposição “interna” ao longo de todo o governo. O grupo ligado à então deputada estadual Luciana Genro era um dos principais protagonistas desse movimento que contou com o apoio direto ou indireto (pelo silêncio) de outras importantes correntes petistas, formando uma indigesta mistura de esquerdismo e oportunismo.
Na assembleia em questão, chegou-se a apresentar uma proposta para o lançamento de uma campanha de outdoors apresentando os nomes e as fotos de Olívio Dutra, Miguel Rossetto (vice-governador) e Flávio Koutzii (chefe da Casa Civil) como “traidores”. A proposta, apoiada por boa parte da mesa, acabou sendo rejeitada pela maioria da assembleia.
A lembrança é oportuna, uma vez que, nos últimos dias, ouviram-se gritos semelhantes em função principalmente da proposta de Reforma da Previdência, apresentada pelo governo Tarso. O mesmo ocorreu, aliás, no início do primeiro governo Lula, também com a Reforma da Previdência. Acusações enfáticas de “traição” cruzaram os ares com muita rapidez. Nesta terça-feira, foi a vez de Raul Pont receber essa acusação de servidores que estavam nas galerias da Assembleia.
Hoje, ironicamente, alguns petistas e não petistas críticos do governo Tarso lembram com saudade do governo Olívio, sem lembrar, porém, que, naquele período, as acusações de “traição” também foram esgrimidas nos primeiros meses de governo. Algumas das vozes que denunciaram a “traição” naquele maio de 1999 saíram do PT, outras seguem no partido e ocupam hoje cargos de governo. Muitas dessas vozes iradas e enfáticas modulam o seu volume de acordo com as circunstâncias.
O tema do financiamento da Previdência Pública e do Estado é extremamente polêmico e costuma ser causa desse tipo de acusação. O governo Tarso está jogando uma cartada audaciosa, contando com a maioria política que construiu na Assembleia Legislativa, o que se tratando da história do PT no Rio Grande do Sul, é uma novidade importante. A aprovação do projeto terá um custo político sem dúvida, cuja dimensão, porém, dependerá do desempenho geral do governo em seus quatro anos. Se Tarso mantiver a Previdência Pública, se não privatizar empresas públicas, se revitalizar a democracia participativa no Estado, se conseguir recursos para fazer novos investimentos no Estado e implementar políticas sociais que beneficiem os setores mais pobres da população terá feito um bom governo.
As “gotas do governo Olívio” desejadas por alguns deveriam servir para refrescar a memória política de quem já esqueceu que aquele governo apontado, justificadamente, como uma referência para a esquerda, foi acusado de traição com cinco meses de vida, sofreu uma oposição interna dilacerante – além da externa, não menos virulenta – e que acabou derrotado numa prévia interna absurda pelo atual governador. A vida dá voltas estranhas e irônicas. Não seria nada mal que as pessoas tentassem aprender um pouco com elas. Se Lula, Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont, Miguel Rossetto e Flavio Koutzii são os “traidores” quem é que são mesmo os “heróis”???
Em maio de 1999, o CPERS realizou uma acalorada assembleia geral no Ginásio Tesourinha. O governo Olívio contava, então, com cinco meses de vida e foi alvo de pesadas críticas, entre outras coisas, por não dar o aumento pretendido pelos professores e por não suspender o pagamento da dívida à União. Argumentava-se que se o governo suspendesse o pagamento da dívida poderia dar um aumento de 99,9% para os professores (não lembro bem se era exatamente esse o valor, mas a ideia era essa). Ali se configurou um bloco partidário dentro do PT que faria oposição “interna” ao longo de todo o governo. O grupo ligado à então deputada estadual Luciana Genro era um dos principais protagonistas desse movimento que contou com o apoio direto ou indireto (pelo silêncio) de outras importantes correntes petistas, formando uma indigesta mistura de esquerdismo e oportunismo.
Na assembleia em questão, chegou-se a apresentar uma proposta para o lançamento de uma campanha de outdoors apresentando os nomes e as fotos de Olívio Dutra, Miguel Rossetto (vice-governador) e Flávio Koutzii (chefe da Casa Civil) como “traidores”. A proposta, apoiada por boa parte da mesa, acabou sendo rejeitada pela maioria da assembleia.
A lembrança é oportuna, uma vez que, nos últimos dias, ouviram-se gritos semelhantes em função principalmente da proposta de Reforma da Previdência, apresentada pelo governo Tarso. O mesmo ocorreu, aliás, no início do primeiro governo Lula, também com a Reforma da Previdência. Acusações enfáticas de “traição” cruzaram os ares com muita rapidez. Nesta terça-feira, foi a vez de Raul Pont receber essa acusação de servidores que estavam nas galerias da Assembleia.
Hoje, ironicamente, alguns petistas e não petistas críticos do governo Tarso lembram com saudade do governo Olívio, sem lembrar, porém, que, naquele período, as acusações de “traição” também foram esgrimidas nos primeiros meses de governo. Algumas das vozes que denunciaram a “traição” naquele maio de 1999 saíram do PT, outras seguem no partido e ocupam hoje cargos de governo. Muitas dessas vozes iradas e enfáticas modulam o seu volume de acordo com as circunstâncias.
O tema do financiamento da Previdência Pública e do Estado é extremamente polêmico e costuma ser causa desse tipo de acusação. O governo Tarso está jogando uma cartada audaciosa, contando com a maioria política que construiu na Assembleia Legislativa, o que se tratando da história do PT no Rio Grande do Sul, é uma novidade importante. A aprovação do projeto terá um custo político sem dúvida, cuja dimensão, porém, dependerá do desempenho geral do governo em seus quatro anos. Se Tarso mantiver a Previdência Pública, se não privatizar empresas públicas, se revitalizar a democracia participativa no Estado, se conseguir recursos para fazer novos investimentos no Estado e implementar políticas sociais que beneficiem os setores mais pobres da população terá feito um bom governo.
As “gotas do governo Olívio” desejadas por alguns deveriam servir para refrescar a memória política de quem já esqueceu que aquele governo apontado, justificadamente, como uma referência para a esquerda, foi acusado de traição com cinco meses de vida, sofreu uma oposição interna dilacerante – além da externa, não menos virulenta – e que acabou derrotado numa prévia interna absurda pelo atual governador. A vida dá voltas estranhas e irônicas. Não seria nada mal que as pessoas tentassem aprender um pouco com elas. Se Lula, Olívio Dutra, Tarso Genro, Raul Pont, Miguel Rossetto e Flavio Koutzii são os “traidores” quem é que são mesmo os “heróis”???
Marcadores:
Cpers,
critica social,
partidos politicos
A Universidade e as leis para a comunicação
A fundamentação existente na Ley dos Médios argentinos tem grande contribuição acadêmica e poderia servir como referência para a Universidade brasileira. Ao invés de infindáveis e insossas discussões sobre “teorias da recepção”, teríamos o pulsar da vida real das nossas sociedades.
Laurindo Lalo Leal Filho no CARTA MAIOR
Passou desapercebido por aqui. Não fosse a
menção feita pelo jornalista Eric Nepomuceno, na revista Carta Capital,
poucos ficariam sabendo que a Ley de Médios argentina está sendo
implantada, apesar da oposição feroz dos grandes grupos de comunicação
locais.
No noite de 21 de junho, a presidenta Cristina Kirchner apareceu em rede nacional de televisão para fazer um anúncio capaz de tirar o sono dos controladores monopolistas da radiodifusão. O governo abria, naquela data, uma licitação para a concessão de 220 novas licenças de serviço de audiovisual no país.
Como determina a lei metade dessas concessões será destinada a emissoras privadas e a outra metade dividida entre os governos estaduais, o federal e as organizações sem fins lucrativos. Fórmula encontrada para romper com oligopólio existente hoje na comunicação argentina.
Claro que a mídia comercial brasileira esconde esses avanços e quando fala da Ley de Médios argentina é para atacá-la, chegando habitualmente a taxá-la de censura, quando trata-se exatamente do oposto. Seu papel é o de permitir o acesso aos meios de comunicação de um número muito maior de atores sociais, hoje sem voz.
Mas aos que se opõem à lei interessa a omissão e a desinformação. Para isso usam uma estratégia eficiente: apropriam-se de um símbolo facilmente compreensível, como é a censura, e com ele carimbam a lei, interditando o debate de forma liminar.
A legislação argentina mereceria no Brasil estudos e debates mais sérios e aprofundados. As criticas feitas por aqui são superficiais, ecoando apenas o temor dos controladores da mídia nativa com o possível contágio da experiência vizinha.
Não é levado em conta o formidável trabalho de pesquisa realizado para se chegar ao texto final. Seus 166 artigos não caíram do céu. São resultado de um levantamento minucioso daquilo que existe de mais avançado no mundo, em termos de legislação para área das comunicações.
Dos meios comerciais não se pode esperar nada, além das críticas habituais. Os meios públicos pouco se dedicam ao tema e a internet o trata de forma esporádica. Mesmo as redes sociais, com conteúdos mais críticos, não tem como aprofundar a discussão e acabam, em determinados momentos, dialogando com os grandes meios nos mesmos níveis por eles impostos.
Resta como alternativa a Universidade, teoricamente menos sujeita às imposições externas. Mas parece que, no geral, ela não despertou ou não se interessou pelo assunto. Falo, obviamente, dos setores universitários ainda não cooptados pela grande mídia, propiciadora de cursos e eventos destinados ao conformismo e a alienação.
Fico a pensar na riqueza de um debate não só da Ley de Médios argentina, mas das experiências de democratização das comunicações que vêm sendo articuladas na Venezuela, Bolívia, Equador, Paraguai e Uruguai, por exemplo.
Ao invés de infindáveis e insossas discussões sobre “teorias da recepção”, tão ao gosto dos acadêmicos alinhados com “status quo” da comunicação, teríamos o pulsar da vida real das nossas sociedades.
A Universidade – pública ou privada – repousa sob um tripé formado pelo ensino, a pesquisa e a extensão. Um tema como o aqui proposto atenderia com desenvoltura esses três objetivos.
Colocaria o aluno em contato com a disputa que se trava no continente em torno do papel social da comunicação, deixando mais claro o cenário onde se dará, no futuro, sua atuação profissional.
Propiciaria uma ampliação no campo das pesquisas, necessitadas cada vez mais de interdisciplinaridade. O estudo da comunicação só ganha concretude quando dialoga com o Direito e as Ciências Sociais em geral.
E finalmente, a extensão se daria com a formulação de projetos e propostas capazes de contribuir para o debate político que se trava na sociedade em torno das novas leis para a comunicação.
A fundamentação existente na Ley dos Médios argentinos tem grande contribuição acadêmica e poderia servir como referência para a Universidade brasileira.
A íntegra de Lei de Meios da Argentina está disponível neste endereço: http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/155000-159999/158649/norma.htm
No noite de 21 de junho, a presidenta Cristina Kirchner apareceu em rede nacional de televisão para fazer um anúncio capaz de tirar o sono dos controladores monopolistas da radiodifusão. O governo abria, naquela data, uma licitação para a concessão de 220 novas licenças de serviço de audiovisual no país.
Como determina a lei metade dessas concessões será destinada a emissoras privadas e a outra metade dividida entre os governos estaduais, o federal e as organizações sem fins lucrativos. Fórmula encontrada para romper com oligopólio existente hoje na comunicação argentina.
Claro que a mídia comercial brasileira esconde esses avanços e quando fala da Ley de Médios argentina é para atacá-la, chegando habitualmente a taxá-la de censura, quando trata-se exatamente do oposto. Seu papel é o de permitir o acesso aos meios de comunicação de um número muito maior de atores sociais, hoje sem voz.
Mas aos que se opõem à lei interessa a omissão e a desinformação. Para isso usam uma estratégia eficiente: apropriam-se de um símbolo facilmente compreensível, como é a censura, e com ele carimbam a lei, interditando o debate de forma liminar.
A legislação argentina mereceria no Brasil estudos e debates mais sérios e aprofundados. As criticas feitas por aqui são superficiais, ecoando apenas o temor dos controladores da mídia nativa com o possível contágio da experiência vizinha.
Não é levado em conta o formidável trabalho de pesquisa realizado para se chegar ao texto final. Seus 166 artigos não caíram do céu. São resultado de um levantamento minucioso daquilo que existe de mais avançado no mundo, em termos de legislação para área das comunicações.
Dos meios comerciais não se pode esperar nada, além das críticas habituais. Os meios públicos pouco se dedicam ao tema e a internet o trata de forma esporádica. Mesmo as redes sociais, com conteúdos mais críticos, não tem como aprofundar a discussão e acabam, em determinados momentos, dialogando com os grandes meios nos mesmos níveis por eles impostos.
Resta como alternativa a Universidade, teoricamente menos sujeita às imposições externas. Mas parece que, no geral, ela não despertou ou não se interessou pelo assunto. Falo, obviamente, dos setores universitários ainda não cooptados pela grande mídia, propiciadora de cursos e eventos destinados ao conformismo e a alienação.
Fico a pensar na riqueza de um debate não só da Ley de Médios argentina, mas das experiências de democratização das comunicações que vêm sendo articuladas na Venezuela, Bolívia, Equador, Paraguai e Uruguai, por exemplo.
Ao invés de infindáveis e insossas discussões sobre “teorias da recepção”, tão ao gosto dos acadêmicos alinhados com “status quo” da comunicação, teríamos o pulsar da vida real das nossas sociedades.
A Universidade – pública ou privada – repousa sob um tripé formado pelo ensino, a pesquisa e a extensão. Um tema como o aqui proposto atenderia com desenvoltura esses três objetivos.
Colocaria o aluno em contato com a disputa que se trava no continente em torno do papel social da comunicação, deixando mais claro o cenário onde se dará, no futuro, sua atuação profissional.
Propiciaria uma ampliação no campo das pesquisas, necessitadas cada vez mais de interdisciplinaridade. O estudo da comunicação só ganha concretude quando dialoga com o Direito e as Ciências Sociais em geral.
E finalmente, a extensão se daria com a formulação de projetos e propostas capazes de contribuir para o debate político que se trava na sociedade em torno das novas leis para a comunicação.
A fundamentação existente na Ley dos Médios argentinos tem grande contribuição acadêmica e poderia servir como referência para a Universidade brasileira.
A íntegra de Lei de Meios da Argentina está disponível neste endereço: http://www.infoleg.gov.ar/infolegInternet/anexos/155000-159999/158649/norma.htm
Marcadores:
midia,
movimentos sociais,
Software Livre
A condenação da revista por associar coletividade muçulmana ao terrorismo
por sugestão do Stanley Burburinho
DIREITO DE RESPOSTA
Justiça condena revista Veja por associar islâmicos com terrorismo
A juíza Cláudia Maria Pereira Ravacci, da 35ª Vara Cível de São
Paulo, condenou a revista Veja e a Editora Abril, pela reportagem “A
rede do terror no Brasil”, publicada no dia 6 de abril deste ano. A
ação, movida pela União Nacional das Entidades Islâmicas, pediu direito
de resposta. A decisão é desta quinta-feira (30/6).
A revista afirma na reportagem ter tido acesso a documentos da CIA
(agência de inteligência norte-americana), FBI (polícia federal
norte-americana), Interpol (polícia internacional) e Polícia Federal que
mostravam supostos extremistas islâmicos no Brasil. A publicação diz
ainda, que essas pessoas citadas usavam o país como base de operações e
aliciavam militantes.
A autora da ação, representada pelo advogado Adib Abdouni Passos,
congrega 16 entidades islâmicas. O advogado , afirma na petição inicial
que o conteúdo da reportagem era ofensivo e tendencioso. “De acordo com a
Polícia Federal, sete organizações terroristas islâmicos operam no
Brasil”, dizia o trecho extraído da revista. Para a entidade, a
reportagem fere o sentimento religioso islâmico.
De acordo com a petição, houve uma audiência reservada na Comissão de
Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, na Câmara dos
deputados na qual o ministro da Justiça afirmou que as informações
publicadas eram falsas. A União alega que no Brasil a Constituição
Federal assegura a liberdade de crença e religião.
A entidade pediu que a revista fosse condenada a publicar o direito
de resposta. O conteúdo, segundo a petição, deverá ocupar o mesmo espaço
que a reportagem e deverá esclarecer a cultura islâmica. Segundo a
entidade, o objetivo é “desvincular a ideia de terrorismo junto à fé
professada pelos mulçumanos”.
“As ofensas contidas no texto impugnado causam lesão a direitos da
coletividade mulçumana, dando ensejo, ao direito de resposta
reivindicado”, diz Adib Abdouni Passos.
http://ultimainstancia.uol.com.br/conteudo/noticias/52069/justica+condena+revista+veja+por+associar+islamicos+com+terrorismo.shtml?utm
Marcadores:
critica social,
discriminação,
Ditaduras,
islamismo,
midia
Região de Bagé, no RS, terá mais de R$ 4,8 milhões para Educação
A comunidade de Bagé comemorou o anúncio do secretário de Estado
da Educação, Prof. Dr. Jose Clovis de Azevedo, durante a interiorização
do governo no município. Foi na manhã desta sexta-feira (1º), na Escola
Municipal São Pedro, que Azevedo informou que o governo irá investir R$
4,8 milhões na área da educação da região.
De acordo com Azevedo, serão oito escolas da região da 13ª Coordenadoria Regional da Educação (CRE) que serão beneficiadas com os investimentos em ampliações e reformas. As escolas beneficiadas são:
Aceguá
Escola Estadual de Ensino Médio Barão de Aceguá
Ampliação: 2 salas de aula e 3 sanitários - R$ 158.396,10
Bagé
Escola Estadual Ensino Médio Frei Plácido
Reforma do telhado e rede elétrica – R$ 241.664,90
Caçapava do Sul
Instituto Estadual Educacional Dinarte Ribeiro
Prevenção de incêndio – R$ 40.384,77
Caçapava do Sul
Escola Estadual de Ensino Médio Nossa Senhora da Assunção
Reforma do telhado, substituição de aberturas, rede elétrica, hidrossanitária pintura R$ 496.707.26
Candiota
Escola Estadual Ensino Fundamental Oito de Agosto
Reforma de cercamento – R$ 199,11$ 204.
Dom Pedrito
Escola Estadual de Ensino Fundamental Professora Heloisa Louzada – Construção de muro, e reforma dos revestimentos, cobertura, pavimentações, esquadrias, pintura, instalações hidrossanitárias e elétricas - R$ 405.646,69
Lavras do Sul
Escola Estadual de 1º Grau Licínio Cardoso
Construção – R$ 47.047,46
Hulha Negra
Escola Estadual de Ensino Médio Manoel Lucas de Oliveira
Reforma de recuperação da cobertura, pavimentação, revestimento, esquadrias, pintura, instalação hidrossanitárias e elétricas – R$ 198.381,97
Modernização tecnológica
Em homenagem à história da cidade, que tinha o Forte de Santa Tecla localizado às margens do rio Negro, próximo à foz do rio Piraízinho, atual município de Bagé, Azevedo também fez o lançamento do Projeto Santa Tecla. A ação é um desdobramento do projeto estadual Província de São Pedro. A proposta para a região de Bagé prevê R$ 3.089.745,24, e será implantado em 15 escolas estaduais de Bagé, atendendo 5.675 alunos e 875 professores. “Nosso projeto de governo é transformador e busca integrar a nova era da cultura digital ao programa de desenvolvimento do Rio Grande do Sul”, declarou.
Azevedo explica que a perspectiva é fomentar a inclusão digital na rede municipal e estadual do município de Bagé. Para viabilizar esta ação, foi assinado um Termo de Cooperação Técnica entre Secretarias da Educação, de Comunicação, de Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico e Prefeitura Municipal de Bagé.
O Província de São Pedro terá investimento total de R$ 80 milhões, para a compra de 160 mil computadores, infraestrutura e formação docente de dois anos. Serão beneficiadas 278 escolas, 10.500 professores e 139 mil alunos, dos municípios da Fronteira e Região Metropolitana.
Também foi assinado o Protocolo de Intenções da Secretaria da Educação com as universidades da região. O objetivo é promover a formação pedagógica na perspectiva de fomentar a educação de qualidade social. Assinaram o termo a UNIPAMPA, UFRGS e URCAMP.
Agenda da tarde
De acordo com Azevedo, serão oito escolas da região da 13ª Coordenadoria Regional da Educação (CRE) que serão beneficiadas com os investimentos em ampliações e reformas. As escolas beneficiadas são:
Aceguá
Escola Estadual de Ensino Médio Barão de Aceguá
Ampliação: 2 salas de aula e 3 sanitários - R$ 158.396,10
Bagé
Escola Estadual Ensino Médio Frei Plácido
Reforma do telhado e rede elétrica – R$ 241.664,90
Caçapava do Sul
Instituto Estadual Educacional Dinarte Ribeiro
Prevenção de incêndio – R$ 40.384,77
Caçapava do Sul
Escola Estadual de Ensino Médio Nossa Senhora da Assunção
Reforma do telhado, substituição de aberturas, rede elétrica, hidrossanitária pintura R$ 496.707.26
Candiota
Escola Estadual Ensino Fundamental Oito de Agosto
Reforma de cercamento – R$ 199,11$ 204.
Dom Pedrito
Escola Estadual de Ensino Fundamental Professora Heloisa Louzada – Construção de muro, e reforma dos revestimentos, cobertura, pavimentações, esquadrias, pintura, instalações hidrossanitárias e elétricas - R$ 405.646,69
Lavras do Sul
Escola Estadual de 1º Grau Licínio Cardoso
Construção – R$ 47.047,46
Hulha Negra
Escola Estadual de Ensino Médio Manoel Lucas de Oliveira
Reforma de recuperação da cobertura, pavimentação, revestimento, esquadrias, pintura, instalação hidrossanitárias e elétricas – R$ 198.381,97
Modernização tecnológica
Em homenagem à história da cidade, que tinha o Forte de Santa Tecla localizado às margens do rio Negro, próximo à foz do rio Piraízinho, atual município de Bagé, Azevedo também fez o lançamento do Projeto Santa Tecla. A ação é um desdobramento do projeto estadual Província de São Pedro. A proposta para a região de Bagé prevê R$ 3.089.745,24, e será implantado em 15 escolas estaduais de Bagé, atendendo 5.675 alunos e 875 professores. “Nosso projeto de governo é transformador e busca integrar a nova era da cultura digital ao programa de desenvolvimento do Rio Grande do Sul”, declarou.
Azevedo explica que a perspectiva é fomentar a inclusão digital na rede municipal e estadual do município de Bagé. Para viabilizar esta ação, foi assinado um Termo de Cooperação Técnica entre Secretarias da Educação, de Comunicação, de Ciência, Inovação e Desenvolvimento Tecnológico e Prefeitura Municipal de Bagé.
O Província de São Pedro terá investimento total de R$ 80 milhões, para a compra de 160 mil computadores, infraestrutura e formação docente de dois anos. Serão beneficiadas 278 escolas, 10.500 professores e 139 mil alunos, dos municípios da Fronteira e Região Metropolitana.
Também foi assinado o Protocolo de Intenções da Secretaria da Educação com as universidades da região. O objetivo é promover a formação pedagógica na perspectiva de fomentar a educação de qualidade social. Assinaram o termo a UNIPAMPA, UFRGS e URCAMP.
Agenda da tarde
À tarde, o secretário da Educação abre o evento de sua pasta, às
14h, no CTG Prenda Minha. Ele apresentará as políticas da Seduc. Após,
os presentes conhecerão o Comitê de Prevenção à Violência nas escolas,
apresentado pelo coordenador estadual do Comitê, Alejandro Jélvez. A
presidente estadual do Cedica, Márcia Herbetz, falará sobre a
importância das redes para a proteção da criança e do adolescente, e o
secretário em exercício da Secretaria da Justiça e dos Direitos Humanos,
Miguel Velásquez, discorrerá sobre o papel e responsabilidades dos
atores sociais para o enfrentamento e prevenção a várias formas de
violência.
quinta-feira, 30 de junho de 2011
Para entender Stalin e o “stalinismo”
Por Marcos Aurélio da Silva no GRABOIS
A
publicística brasileira, e não só aquela à direita do espectro
político, acostumou-se a se referir a Stalin como um dos grandes
assassinos da história. A julgar pelo livro de Domenico Losurdo agora
publicado entre nós, Stalin: história crítica de uma lenda negra,
tradução de Jaime Clasen, Rio de Janeiro: Revan, 2010, 378 págs. (com um
ensaio de Luciano Canfora), este ponto de vista está a demandar uma
profunda revisão. Isso se se quiser não apenas refletir sobre o uso
político a que a figura de Stalin serviu no Ocidente capitalista, mas
igualmente atentar para o que de mais atual há na historiografia que se
acercou do tema do “stalinismo”.
De fato, se o que se esperava da abertura dos
arquivos da ex-União Soviética era um mar de fatos que tornariam ainda
mais abomináveis a história do líder comunista, bem como do regime que
ajudou a construir, o livro de Losurdo, apoiado nas mais recentes
pesquisas, vem pôr por terra tais expectativas. Veja-se, por exemplo, o
caso das “execuções” de Stalin ao cabo dos anos 30, já bem avançada a
fase da coletivização forçada da agricultura. Demonstram as citadas
pesquisas que elas não alcançavam mais de 1/10 do que se dizia: é que os
ideólogos do anticomunismo, acrescenta o ensaio de Canfora, a elas
aduziram os milhões de mortos da II Guerra Mundial.
Vê-se como, a partir de um tal embuste, se logra associar, para consumo de incautos, Stalin a Hitler, operação a que se entregou mesmo uma autora como Hannah Arendt, que tendo elogiado a União Soviética de Stalin no imediato pós II Guerra, termina por abraçar a idéia da associação entre comunismo e nazifascismo − ambos totalitários, sustentou. Na verdade, uma tese cara não só à ideologia da Guerra Fria, mas do próprio ponto de vista fascista, insiste Losurdo, remetendo a uma citação de Thomas Mann: “Colocar no mesmo plano moral o comunismo e o nazifascismo, como sendo ambos totalitários, no melhor dos casos é superficialidade, no pior dos casos é fascismo. Quem insiste nesta equiparação pode bem considerar-se democrático, mas na verdade e no fundo do coração já é... fascista...”.
Ora, a título de uma comparação apenas empírica, não é questão de somenos opor as condições das prisões soviéticas àquelas dos campos de concentração nazistas. Abundantes relatos demonstram que no país comunista grassavam boas condições de vida – aliás, de algum modo confirmando observação da própria Arendt, que notou não haver campos de extermínio na URSS. É exemplo o presídio moscovita de Butirka, que em 1921 permitia que “os prisioneiros saíssem livremente da prisão”, organizassem “sessões de ginástica matutina”, formassem “uma orquestra e um coro,... um círculo com revistas estrangeiras e uma boa biblioteca”. Ou ainda, no início dos anos 30, em plena virada staliniana, o exemplo das colônias penais do extremo norte, que contavam com investimentos na construção de hospitais, treinamento “a alguns detidos para a profissão de farmacêutico e enfermeiro”, edificação de “empresas agrícolas coletivas” para “suprir as necessidades alimentares”, e até escolas de formação técnica, para ex-Kulaks “analfabetos ou semi-analfabetos”.
Por certo, em cada um dos casos, não é sem sentido falar de um espírito de reabilitação, donde as tantas iniciativas inspiradas nas idéias de Gorki, como a abertura “de salas cinematográficas e círculos de discussão” e mesmo o pagamento “de um salário regular aos prisioneiros”. E, se há tragédias conhecidas, como a dos exilados da ilha de Nazino (Sibéria ocidental) em 1933, marcados pela fome, o que os fez se alimentarem de cadáveres, não decorrem elas de uma vontade homicida como quer fazer crer a militância anticomunista, mas antes “da falta de programação”.
Insistindo ainda nas comparações, Losurdo lembra como um autor caro a Hitler, o angloalemão Houston S. Chamberlein, sabia muito bem diferir socialismo e nazismo, o primeiro filho “das idéias de confraternização universal do século XVIII”, de “origem comum e da unidade do gênero humano”, o segundo do século XIX, o “século das colônias” e das “raças”, cujo “mérito” teria sido o de refutar a mitologia da origem comum e da unidade do gênero humano a qual se apegavam os socialistas. Com efeito, e até para não cair-se no engano de pôr na conta da psicopatologia de Hitler as infâmias do nazismo (tendência observada em Roosevelt, nota o autor), é preciso entender que o Füher tomou do mundo preexistente a ele, o mundo dos impérios coloniais do século XIX, dois elementos centrais, agora levados à radicalização: a) a missão colonizadora da raça branca do Ocidente; b) a leitura da Revolução de Outubro como um complô judeu-bolchevique que estimulava a revolta dos povos coloniais e minava a hierarquia natural das raças. (Aliás, aqui se compreende bem o porquê da implacável perseguição aos comunistas “arrancaremos de todo livro a palavra marxismo”, diz Hermann W. Göring, ministro do interior e segundo homem do regime : são os últimos a pôr em questão o projeto imperial e racial do III Reich)
Quanta diferença, pois, entre o Hitler que chama o povo russo de “animais ferozes” – Stalin seria um ser proveniente dos “infernos”, confirmando o caráter “satânico” do bolchevismo − e diz ser destino do povo ucraniano, como todos os povos subjugados, ficar à devida distância da cultura e da instrução, inclusive sem saber “ler e escrever”, e o Stalin que, posto diante da miséria extrema legada ao povo pelo czarismo, se põe à tarefa da elevação do nível de vida e da emancipação geral de todos os soviéticos. São exemplos, já em meados dos anos 30, o desenvolvimento de nações até então marginalizadas, por meio de ações afirmativas, a equiparação dos direitos jurídicos entre homem e mulher, o surgimento de sólido sistema de proteção social com pensões, assistência médica, proteção das grávidas, abonos familiares, o desenvolvimento da educação e da esfera intelectual em seu conjunto, com a extensão de uma rede de bibliotecas e salas de leitura e a difusão do gosto pelas artes e poesia. Além de importante expansão e modernização da vida urbana, com a construção de novas cidades e a reconstrução das velhas.
Responde por essa grande transformação operada pelo país saído da revolução, certamente, a grande popularidade de que desfrutou Stalin, continuada mesmo após o biênio do Grande Terror (1937-1938), o que não se explica simplesmente pela censura e repressão de Estado, acentua Losurdo, mas pelas chances de promoção social existentes. Basta lembrar a ascensão dos stakanovistas, tornados diretores de fábricas, bem como a ampla mobilidade vertical observada no exército. Aliás, conhecendo o progresso social da Rússia soviética, vem a tempo notar que Stalin assinala ser o regime de Hitler, com seu pisoteio sobre o direito dos intelectuais, dos operários, dos povos, com o desencadeamento dos pogroms medievais contra judeus – os ataques populares de violência −, uma cópia do reacionário regime czarista.
Sabemos que a retórica que associa o movimento vitorioso em Outubro de 1917 e o nazismo aparece também nas referências ao “pacto” de não agressão firmado com a Alemanha hitlerista em agosto de 1939 – o “pacto” Molotv-Ribbentrop. Ora, não sendo puro ardil anticomunista, sustentar este ponto de vista é não conhecer minimamente a geopolítica que precedeu a II Grande Guerra, ou mesmo todo o contexto geopolítico que se abre com a Revolução de 1917.
De fato, assinala Canfora, de algum modo o “pacto” está em linha com a política de relações internacionais da URSS aberta por Lenin – e ao lado do qual se colocou Stalin − através da paz de Brest-Litovsk, assinada com a Alemanha em 1918, qual seja, a de que “os imperialistas se massacram entre eles, nós ficamos de fora e nos fortalecemos”. Por outro lado, terminada a I Guerra, a política de frentes – ou grandes alianças democráticas − a qual se entregou o país comunista, aprovada no III (1921) e IV (1922) Congresso do Komintern, viu-se constantemente sabotada por França e Inglaterra (mas também – e com alguma razão − pela oposição trotskista nas colônias). Já em 1925 o primeiro país se aproxima da Alemanha através do tratado de Locarno (Suíça), isolando a URSS, ao passo que em 1926 é a vez da Grã-Bretanha romper relações comerciais e diplomáticas com o país comunista, convidando a França a fazer o mesmo. E, às vésperas da Guerra, os dois países, já tendo abandonado a República espanhola − ajudada militarmente apenas pelos soviéticos e pelas brigadas internacionais –, que caía ante o fascismo, se desinteressam por um acordo com a URSS contra a Alemanha. Além disso, desde o golpe de Estado do fascista Pilsudki em 1926, a Polônia apresentava-se como um inimigo declarado da URSS − notadamente empenhada em retirar-lhe a Ucrânia −, sendo que desde 1934 está abertamente subordinada à política alemã. Enquanto a leste o Japão era uma ameaça real, aliás contida na medida em que o “pacto” permitiu aos soviéticos enviar armas e munições para que a China se protegesse do país nipônico – até Pearl Harbor abastecido em petróleo e gasolina pelos EUA, vale notar −, como observou Mao Zedond.
Posto o quadro acima, difícil dizer, como sustenta o artigo de Canfora, que o “pacto” não fosse, e a despeito de continuar o pragmatismo iniciado em Brest, uma forma de ganhar tempo para “preparar-se” melhor. A tese, aliás, é cara a Trotski e Kruchiov, a quem Canfora parece seguir também quanto ao despreparo das linhas soviéticas. Mas como não aceitá-la sabendo que Stalin tinha bem presente a análise que fez o general Foch pouco depois da assinatura do Tratado de Versalhes, o Tratado que “pôs” fim a I Guerra Mundial? Qual seja, a de que não se tratava da paz, mas “apenas de um armistício por vinte anos”. Quanto às linhas soviéticas, é preciso ater-se à geografia. De fato, a despeito das enormes dimensões do Exército Vermelho, o sucesso inicial das unidades alemãs se beneficiou da ampla extensão do front (1800 milhas) e da escassez dos obstáculos naturais além das cidades muito distanciadas entre si, e para as quais convergiam estradas e ferrovias, o que deixava ao inimigo inúmeras alternativas de infiltração.
Mas tratar da luta contra o nazifascismo é, também, para Losurdo, extrair uma periodização que explique a era Stalin − ou mesmo toda a história russa. Com efeito, seria ela a da conclusão de um segundo grande período de desordem da história russa. O primeiro deles, que compreende o século XVII, encerrara-se com a subida de Pedro O Grande ao trono (1689). Já o segundo tem início com a I Guerra Mundial, seguindo até o reforço do poder de Stalin e a aceleração da industrialização pesada do final dos anos 20 que ele levou a efeito, bem como a “ocidentalização” que lhe corresponde.
Ora, para Losurdo, a marca desse segundo período não é a de um regime totalitário, mas, antes, a de um estado de exceção, ou uma ditadura desenvolvimentista. Esta responde a uma guerra civil prolongada, cujo início foi a luta contra o czarismo e as potências aliadas entre 1914 e fevereiro de 1917, mas que segue na vitória sobre os mencheviques em outubro de 1917 e com as divergências dentro do grupo dirigente bolchevique após a morte de Lenin. Tudo no contexto de uma crescente hostilidade internacional, ou do perigo iminente, para lembrar uma noção do filosofo estadunidense Michael Walzer, que Losurdo utiliza − não sem uma certa restrição, deve-se notar − para dar conta do universo concentracionário da era Stalin. Daí poder-se compreender, pois, as seguidas ações insurrecionais como a tentativa de golpe feita por Trotski durante o desfile pelo décimo aniversário da revolução as tramas em ambientes militares como as que parecem ter atraído o general Tukatchevski ou ainda os muitos assassinatos como o que vitimou Kirov, aliás hoje já não atribuível a Stalin. A propósito, se se trata de falar dos processos de Moscou, o novo material que a abertura dos arquivos russos tornou disponível tem permitido concluir que eles “não foram um crime sem motivo e a sangue frio, mas a reação de Stalin durante uma aguda luta política”.
Antes que se diga que o livro é pura apologia do socialismo à moda soviética, ou uma hagiografia de Stalin, bom notar a crítica teórica a que ele submete alguns dos fundamentos do marxismo-leninismo ou, para dizer mais corretamente, do marxismo em todo o seu conjunto. No fundamental, Losurdo debruça-se aqui sobre a dificuldade deste quanto a desapegar-se do universalismo abstrato. É a partir daqui, anota, que emergem os tantos problemas com que se deparou a construção da nova sociedade em esferas como o mercado e o dinheiro, o Estado, a nação, a norma jurídica, a família. No fundo, tratou-se da dificuldade, tão comum no âmbito das esquerdas, em passar do universal ao particular. Ora, o curioso é que aqui, a necessidade de dar soluções a questões muito concretas, fez de Stalin o que logrou esboçar importantes avanços − e isso, vale notar, se aproximando de teóricos que, no mais das vezes, são chamados para criticá-lo (Gramsci, Hegel, o próprio Marx) −, conquanto mesmo ele tenha ficado a meio caminho.
Veja-se a questão do mercado e do dinheiro. Enquanto o campeão do reformismo, Karl Kautsky, já em 1918, se entrega à crítica da permanência da produção de mercadorias e da propriedade privada da terra – a cargo dos intelectuais e do proletariado, segundo ele −, num tom que nada o distingue, por exemplo, da crítica extremista de Trotski à NEP − que fala de restauração do capitalismo sob o comando de uma burocracia para apelar à supressão do dinheiro e de qualquer forma de mercado –, Stalin, em relatório de 1934 ao XVII Congresso do PCUS, insiste na necessidade de se prevenir contra “as fofocas esquerdistas..., segundo as quais o comércio soviético seria um estágio ultrapassado e o dinheiro deveria ser logo abolido”. Ora, no lugar de um mercado ou uma economia monetária em geral, trata-se aqui da “construção de um sistema determinado de produção e distribuição da riqueza social”.
Aliás, do anterior decorre outra questão não menos importante, e nem sempre bem compreendida, qual seja, a das diferenças de rendimento no socialismo. Stalin tem bem presente, adverte Losurdo, a referência de Marx no Manifesto quanto à ilusão de que o socialismo seria o reino de um “ascetismo universal” e do “igualitarismo grosseiro”: “O nivelamento no campo das necessidades e da vida pessoal é um absurdo pequeno-burguês digno de qualquer seita primitiva de asceta, não de uma sociedade socialista organizada no espírito marxista, porque não se pode exigir que todos os homens tenham necessidades e gostos iguais... Por nivelamento, o marxismo entende não já o nivelamento no campo das necessidades pessoais e condições de vida, mas a destruição das classes”, afirma. De fato, estamos diante da aporia posta por Hegel na Fenomenologia do Espírito, segundo a qual “uma satisfação igual das necessidades diferentes dos indivíduos” leva a “uma desigualdade em relação... à distribuição dos bens’” (à quota de participação), ao passo que “uma ´distribuição igual` dos bens... torna desigual... a ´satisfação das necessidades`”. Aporia a qual Marx fez corresponder, respectivamente, as etapas socialista e comunista da divisão do trabalho, sendo que na última delas, o estágio alcançado pelas forças produtivas torna sem importância a desigualdade que está sempre presente, pois.
Questão semelhante se põe quanto ao Estado e a nação. Enquanto Trotski, radicalizando o universalismo abstrato, acusa a construção do socialismo na Rússia de nacional-reformista, Stalin irá sublinhar a necessidade de ligar “um nacionalismo sadio, corretamente entendido, com o internacionalismo proletário”, uma advertência que em tudo lembra a distinção de Gramsci entre cosmopolitismo e internacionalismo, o último devendo saber “ser ao mesmo tempo ´profundamente nacional’”. Ora, Stalin tem presente que a luta de classe se configura agora como o compromisso de desenvolver economicamente e tecnologicamente o socialismo na URSS, que assim daria sua contribuição à causa internacionalista da emancipação. Fato ainda mais relevante quando se tratou de resistir aos “planos de escravização do imperialismo nazista”, o que significa dizer que “a marcha da universalidade passava através das lutas concretas e particulares dos povos decididos a não se deixar reduzir à condição de escravos ao serviço do povo hitleriano dos senhores”.
Mas não se trata apenas de uma determinada conjuntura. A questão parece atravessar mesmo todo o problema das transições, como o demonstram as referências às reflexões do idealismo alemão acerca da Revolução Francesa. Kant alertou, destaca Losurdo, quanto a uma “universalidade excessivamente extensa”, afirmando que “o apego ao próprio país” deve conciliar-se com “a inclinação a promover o bem do mundo inteiro”. E Hegel, desenvolvendo a mesma linha de pensamento, celebra “como uma grande conquista histórica a elaboração do conceito universal de homem (titular de direitos ‘enquanto homem e não enquanto judeu, católico, protestante, alemão, italiano, etc.’)” sem, todavia, deixar de acrescentar que esta celebração “não deve desembocar no ‘cosmopolitismo’ e na indiferença ou oposição com respeito à ‘vida estatal concreta’ do país do qual se é cidadão”.
Ora, mas a questão do Estado e da nação é também a questão das relações entre democracia e socialismo. Uma questão a qual não descuidou Lenin, lembra o autor remetendo-nos a uma passagem do líder bolchevique: “quem quiser caminhar para o socialismo por um caminho que não seja a democracia política, chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto do ponto de vista econômico como político”. Mas de que modo o universalismo abstrato de que acima se falou teve aqui também seus efeitos?
O apego à tese da extinção do Estado, eis o ponto problemático, acusa Losurdo. Com efeito, fortemente influenciados pelo anarquismo, diferentes revolucionários se entregaram à crítica acerba de toda a forma de poder − incluindo o desprezo ao “parlamento, aos sindicatos, aos partidos, às vezes até ao partido comunista, ele mesmo afetado pelo princípio da representação e, portanto, pelo flagelo da burocracia”. Trotski é o expoente máximo dessa crítica, sabemos, mas ela afeta a todos sendo mesmo ele, por exemplo, ao lado de Lenin, objeto de rejeição por Alexandra Kollontai nos primeiros anos da Rússia soviética. Aliás, lembra o autor, antes de insistir, em Melhor menos, mas melhor, na tarefa de “edificação do Estado”, do “trabalho administrativo”, para o qual dever-se-ia contar com “os melhores modelos da Europa ocidental”, mesmo Lenin, em O Estado e a revolução, defende necessitar a fase pós revolucionária “unicamente de um Estado em vias de extinção”.
É a Constituição de 1936 que inicia um rompimento com este messianismo − segundo o qual “´o direito é ópio para o povo` e ´a idéia de constituição é uma idéia burguesa`” −, assinala Losurdo. E é Stalin que sublinha não se contentar esta Constituição apenas “em fixar os direitos formais dos cidadãos”, antes logrando deslocar “o centro de gravidade para a garantia desses direitos, para os meios de exercício desses direitos”, entre eles a “aplicação do sufrágio universal, direto e igual, como escrutínio secreto” (o que para Trotski não passava da reaparição de uma instituição burguesa). E, ainda em 1938, convocando a que não se transformasse a lição de Marx e Engels “num dogma e numa escolástica vazia”, elabora que, entre as funções do Estado socialista, “além daquelas tradicionais de defesa do inimigo de classe no plano interno e internacional”, está a função do “trabalho de organização econômica e o trabalho cultural e educativo dos órgãos” do Estado. Isto com a “finalidade de desenvolver os germes da economia nova, socialista, e de reeducar os homens no espírito do socialismo”, devendo mesmo a “função de repressão” ser “substituída pela função de salvaguarda da propriedade socialista contra os ladrões e os dissipadores do patrimônio do povo”.
Certamente, estas declarações estão em contradição com o Grande Terror e a dilatação do Gulag do final dos anos 30. Não obstante, se a ditadura do proletariado, como fixou Lenin em O Estado e a Revolução, é o poder que não se vincula a nenhuma lei, Stalin, no imediato pós II Guerra, declara que Bulgária e Polônia podem “realizar o socialismo de modo novo, sem a ditadura do proletariado”, e que mesmo na URSS, se “não tivéssemos tido a guerra, a ditadura do proletariado teria tomado um caráter diferente.” Algo esboçado após a vitória sobre os Kulaks, como se pode ver na rejeição das emendas à Constituição que queriam “privar dos direitos eleitorais os ministros do culto, os ex-guardas brancos, todos os ´ex` e as pessoas que não desempenham um trabalho de utilidade pública”, bem como a rejeição da proposta de “proibir as cerimônias religiosas.”
Sem dúvida, insiste Losurdo, toda a teorização em torno das funções do Estado, “em si uma novidade essencial”, ficou a meio caminho. Se Stalin fala da conservação do Estado na fase comunista, o faz ainda condicionada ao “cerco capitalista”, ao “perigo de agressões armadas do exterior” (mesmo a questão da língua nacional, onde deu enorme contribuição, insistindo diferir ela “de maneira radical de uma superestrutura”, já que não criada “por uma classe qualquer, mas pela sociedade inteira”, é ainda pensada como sujeita a extinção nesta fase). Ora, é aqui que, para Losurdo, se impõe uma valorização de Hegel. Mais precisamente do Hegel que falou de aprendizagem de governo ao se debruçar sobre a Revolução Francesa e sua congênere inglesa do século XVII no fundamental, do Hegel que falou da necessidade dialética de dar “conteúdo concreto e particular à universalidade, pondo fim à perseguição louca da universalidade nas suas imediatez e pureza”.
Eis aqui também a raíz da tragédia que foi o Grande Terror de 1937-38, ou da coletivização forçada da agricultura ao cabo dos anos 20 − e para a qual contou mesmo o messianismo de parcela não desprezível da população, saudosa do igualitarismo da fase do comunismo de guerra −, raiz, enfim, da dificuldade de avançar em direção à democracia socialista. Lições, aliás, inescapáveis se se quiser entender a evolução dos países socialistas que aí estão (China, Vietnã), empenhados na construção tanto de uma neo-NEP, com o objetivo maior de desenvolver as forças produtivas nacionais, quanto de todo um conjunto de regramento jurídico que só muito forçosamente pode ser interpretado como simples democratização formal. Uma evolução, diga-se, que em nada lembra a apostasia gorbachoviana − bem demonstrada no ensaio de Canfora −, como gostam de fazer crer não só os mais messiânicos no interior da esquerda, mas a própria direita, sempre pronta a decretar a morte do socialismo.
_____________
Marcos Aurélio da Silva é Prof. dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da UFSC.
Vê-se como, a partir de um tal embuste, se logra associar, para consumo de incautos, Stalin a Hitler, operação a que se entregou mesmo uma autora como Hannah Arendt, que tendo elogiado a União Soviética de Stalin no imediato pós II Guerra, termina por abraçar a idéia da associação entre comunismo e nazifascismo − ambos totalitários, sustentou. Na verdade, uma tese cara não só à ideologia da Guerra Fria, mas do próprio ponto de vista fascista, insiste Losurdo, remetendo a uma citação de Thomas Mann: “Colocar no mesmo plano moral o comunismo e o nazifascismo, como sendo ambos totalitários, no melhor dos casos é superficialidade, no pior dos casos é fascismo. Quem insiste nesta equiparação pode bem considerar-se democrático, mas na verdade e no fundo do coração já é... fascista...”.
Ora, a título de uma comparação apenas empírica, não é questão de somenos opor as condições das prisões soviéticas àquelas dos campos de concentração nazistas. Abundantes relatos demonstram que no país comunista grassavam boas condições de vida – aliás, de algum modo confirmando observação da própria Arendt, que notou não haver campos de extermínio na URSS. É exemplo o presídio moscovita de Butirka, que em 1921 permitia que “os prisioneiros saíssem livremente da prisão”, organizassem “sessões de ginástica matutina”, formassem “uma orquestra e um coro,... um círculo com revistas estrangeiras e uma boa biblioteca”. Ou ainda, no início dos anos 30, em plena virada staliniana, o exemplo das colônias penais do extremo norte, que contavam com investimentos na construção de hospitais, treinamento “a alguns detidos para a profissão de farmacêutico e enfermeiro”, edificação de “empresas agrícolas coletivas” para “suprir as necessidades alimentares”, e até escolas de formação técnica, para ex-Kulaks “analfabetos ou semi-analfabetos”.
Por certo, em cada um dos casos, não é sem sentido falar de um espírito de reabilitação, donde as tantas iniciativas inspiradas nas idéias de Gorki, como a abertura “de salas cinematográficas e círculos de discussão” e mesmo o pagamento “de um salário regular aos prisioneiros”. E, se há tragédias conhecidas, como a dos exilados da ilha de Nazino (Sibéria ocidental) em 1933, marcados pela fome, o que os fez se alimentarem de cadáveres, não decorrem elas de uma vontade homicida como quer fazer crer a militância anticomunista, mas antes “da falta de programação”.
Insistindo ainda nas comparações, Losurdo lembra como um autor caro a Hitler, o angloalemão Houston S. Chamberlein, sabia muito bem diferir socialismo e nazismo, o primeiro filho “das idéias de confraternização universal do século XVIII”, de “origem comum e da unidade do gênero humano”, o segundo do século XIX, o “século das colônias” e das “raças”, cujo “mérito” teria sido o de refutar a mitologia da origem comum e da unidade do gênero humano a qual se apegavam os socialistas. Com efeito, e até para não cair-se no engano de pôr na conta da psicopatologia de Hitler as infâmias do nazismo (tendência observada em Roosevelt, nota o autor), é preciso entender que o Füher tomou do mundo preexistente a ele, o mundo dos impérios coloniais do século XIX, dois elementos centrais, agora levados à radicalização: a) a missão colonizadora da raça branca do Ocidente; b) a leitura da Revolução de Outubro como um complô judeu-bolchevique que estimulava a revolta dos povos coloniais e minava a hierarquia natural das raças. (Aliás, aqui se compreende bem o porquê da implacável perseguição aos comunistas “arrancaremos de todo livro a palavra marxismo”, diz Hermann W. Göring, ministro do interior e segundo homem do regime : são os últimos a pôr em questão o projeto imperial e racial do III Reich)
Quanta diferença, pois, entre o Hitler que chama o povo russo de “animais ferozes” – Stalin seria um ser proveniente dos “infernos”, confirmando o caráter “satânico” do bolchevismo − e diz ser destino do povo ucraniano, como todos os povos subjugados, ficar à devida distância da cultura e da instrução, inclusive sem saber “ler e escrever”, e o Stalin que, posto diante da miséria extrema legada ao povo pelo czarismo, se põe à tarefa da elevação do nível de vida e da emancipação geral de todos os soviéticos. São exemplos, já em meados dos anos 30, o desenvolvimento de nações até então marginalizadas, por meio de ações afirmativas, a equiparação dos direitos jurídicos entre homem e mulher, o surgimento de sólido sistema de proteção social com pensões, assistência médica, proteção das grávidas, abonos familiares, o desenvolvimento da educação e da esfera intelectual em seu conjunto, com a extensão de uma rede de bibliotecas e salas de leitura e a difusão do gosto pelas artes e poesia. Além de importante expansão e modernização da vida urbana, com a construção de novas cidades e a reconstrução das velhas.
Responde por essa grande transformação operada pelo país saído da revolução, certamente, a grande popularidade de que desfrutou Stalin, continuada mesmo após o biênio do Grande Terror (1937-1938), o que não se explica simplesmente pela censura e repressão de Estado, acentua Losurdo, mas pelas chances de promoção social existentes. Basta lembrar a ascensão dos stakanovistas, tornados diretores de fábricas, bem como a ampla mobilidade vertical observada no exército. Aliás, conhecendo o progresso social da Rússia soviética, vem a tempo notar que Stalin assinala ser o regime de Hitler, com seu pisoteio sobre o direito dos intelectuais, dos operários, dos povos, com o desencadeamento dos pogroms medievais contra judeus – os ataques populares de violência −, uma cópia do reacionário regime czarista.
Sabemos que a retórica que associa o movimento vitorioso em Outubro de 1917 e o nazismo aparece também nas referências ao “pacto” de não agressão firmado com a Alemanha hitlerista em agosto de 1939 – o “pacto” Molotv-Ribbentrop. Ora, não sendo puro ardil anticomunista, sustentar este ponto de vista é não conhecer minimamente a geopolítica que precedeu a II Grande Guerra, ou mesmo todo o contexto geopolítico que se abre com a Revolução de 1917.
De fato, assinala Canfora, de algum modo o “pacto” está em linha com a política de relações internacionais da URSS aberta por Lenin – e ao lado do qual se colocou Stalin − através da paz de Brest-Litovsk, assinada com a Alemanha em 1918, qual seja, a de que “os imperialistas se massacram entre eles, nós ficamos de fora e nos fortalecemos”. Por outro lado, terminada a I Guerra, a política de frentes – ou grandes alianças democráticas − a qual se entregou o país comunista, aprovada no III (1921) e IV (1922) Congresso do Komintern, viu-se constantemente sabotada por França e Inglaterra (mas também – e com alguma razão − pela oposição trotskista nas colônias). Já em 1925 o primeiro país se aproxima da Alemanha através do tratado de Locarno (Suíça), isolando a URSS, ao passo que em 1926 é a vez da Grã-Bretanha romper relações comerciais e diplomáticas com o país comunista, convidando a França a fazer o mesmo. E, às vésperas da Guerra, os dois países, já tendo abandonado a República espanhola − ajudada militarmente apenas pelos soviéticos e pelas brigadas internacionais –, que caía ante o fascismo, se desinteressam por um acordo com a URSS contra a Alemanha. Além disso, desde o golpe de Estado do fascista Pilsudki em 1926, a Polônia apresentava-se como um inimigo declarado da URSS − notadamente empenhada em retirar-lhe a Ucrânia −, sendo que desde 1934 está abertamente subordinada à política alemã. Enquanto a leste o Japão era uma ameaça real, aliás contida na medida em que o “pacto” permitiu aos soviéticos enviar armas e munições para que a China se protegesse do país nipônico – até Pearl Harbor abastecido em petróleo e gasolina pelos EUA, vale notar −, como observou Mao Zedond.
Posto o quadro acima, difícil dizer, como sustenta o artigo de Canfora, que o “pacto” não fosse, e a despeito de continuar o pragmatismo iniciado em Brest, uma forma de ganhar tempo para “preparar-se” melhor. A tese, aliás, é cara a Trotski e Kruchiov, a quem Canfora parece seguir também quanto ao despreparo das linhas soviéticas. Mas como não aceitá-la sabendo que Stalin tinha bem presente a análise que fez o general Foch pouco depois da assinatura do Tratado de Versalhes, o Tratado que “pôs” fim a I Guerra Mundial? Qual seja, a de que não se tratava da paz, mas “apenas de um armistício por vinte anos”. Quanto às linhas soviéticas, é preciso ater-se à geografia. De fato, a despeito das enormes dimensões do Exército Vermelho, o sucesso inicial das unidades alemãs se beneficiou da ampla extensão do front (1800 milhas) e da escassez dos obstáculos naturais além das cidades muito distanciadas entre si, e para as quais convergiam estradas e ferrovias, o que deixava ao inimigo inúmeras alternativas de infiltração.
Mas tratar da luta contra o nazifascismo é, também, para Losurdo, extrair uma periodização que explique a era Stalin − ou mesmo toda a história russa. Com efeito, seria ela a da conclusão de um segundo grande período de desordem da história russa. O primeiro deles, que compreende o século XVII, encerrara-se com a subida de Pedro O Grande ao trono (1689). Já o segundo tem início com a I Guerra Mundial, seguindo até o reforço do poder de Stalin e a aceleração da industrialização pesada do final dos anos 20 que ele levou a efeito, bem como a “ocidentalização” que lhe corresponde.
Ora, para Losurdo, a marca desse segundo período não é a de um regime totalitário, mas, antes, a de um estado de exceção, ou uma ditadura desenvolvimentista. Esta responde a uma guerra civil prolongada, cujo início foi a luta contra o czarismo e as potências aliadas entre 1914 e fevereiro de 1917, mas que segue na vitória sobre os mencheviques em outubro de 1917 e com as divergências dentro do grupo dirigente bolchevique após a morte de Lenin. Tudo no contexto de uma crescente hostilidade internacional, ou do perigo iminente, para lembrar uma noção do filosofo estadunidense Michael Walzer, que Losurdo utiliza − não sem uma certa restrição, deve-se notar − para dar conta do universo concentracionário da era Stalin. Daí poder-se compreender, pois, as seguidas ações insurrecionais como a tentativa de golpe feita por Trotski durante o desfile pelo décimo aniversário da revolução as tramas em ambientes militares como as que parecem ter atraído o general Tukatchevski ou ainda os muitos assassinatos como o que vitimou Kirov, aliás hoje já não atribuível a Stalin. A propósito, se se trata de falar dos processos de Moscou, o novo material que a abertura dos arquivos russos tornou disponível tem permitido concluir que eles “não foram um crime sem motivo e a sangue frio, mas a reação de Stalin durante uma aguda luta política”.
Antes que se diga que o livro é pura apologia do socialismo à moda soviética, ou uma hagiografia de Stalin, bom notar a crítica teórica a que ele submete alguns dos fundamentos do marxismo-leninismo ou, para dizer mais corretamente, do marxismo em todo o seu conjunto. No fundamental, Losurdo debruça-se aqui sobre a dificuldade deste quanto a desapegar-se do universalismo abstrato. É a partir daqui, anota, que emergem os tantos problemas com que se deparou a construção da nova sociedade em esferas como o mercado e o dinheiro, o Estado, a nação, a norma jurídica, a família. No fundo, tratou-se da dificuldade, tão comum no âmbito das esquerdas, em passar do universal ao particular. Ora, o curioso é que aqui, a necessidade de dar soluções a questões muito concretas, fez de Stalin o que logrou esboçar importantes avanços − e isso, vale notar, se aproximando de teóricos que, no mais das vezes, são chamados para criticá-lo (Gramsci, Hegel, o próprio Marx) −, conquanto mesmo ele tenha ficado a meio caminho.
Veja-se a questão do mercado e do dinheiro. Enquanto o campeão do reformismo, Karl Kautsky, já em 1918, se entrega à crítica da permanência da produção de mercadorias e da propriedade privada da terra – a cargo dos intelectuais e do proletariado, segundo ele −, num tom que nada o distingue, por exemplo, da crítica extremista de Trotski à NEP − que fala de restauração do capitalismo sob o comando de uma burocracia para apelar à supressão do dinheiro e de qualquer forma de mercado –, Stalin, em relatório de 1934 ao XVII Congresso do PCUS, insiste na necessidade de se prevenir contra “as fofocas esquerdistas..., segundo as quais o comércio soviético seria um estágio ultrapassado e o dinheiro deveria ser logo abolido”. Ora, no lugar de um mercado ou uma economia monetária em geral, trata-se aqui da “construção de um sistema determinado de produção e distribuição da riqueza social”.
Aliás, do anterior decorre outra questão não menos importante, e nem sempre bem compreendida, qual seja, a das diferenças de rendimento no socialismo. Stalin tem bem presente, adverte Losurdo, a referência de Marx no Manifesto quanto à ilusão de que o socialismo seria o reino de um “ascetismo universal” e do “igualitarismo grosseiro”: “O nivelamento no campo das necessidades e da vida pessoal é um absurdo pequeno-burguês digno de qualquer seita primitiva de asceta, não de uma sociedade socialista organizada no espírito marxista, porque não se pode exigir que todos os homens tenham necessidades e gostos iguais... Por nivelamento, o marxismo entende não já o nivelamento no campo das necessidades pessoais e condições de vida, mas a destruição das classes”, afirma. De fato, estamos diante da aporia posta por Hegel na Fenomenologia do Espírito, segundo a qual “uma satisfação igual das necessidades diferentes dos indivíduos” leva a “uma desigualdade em relação... à distribuição dos bens’” (à quota de participação), ao passo que “uma ´distribuição igual` dos bens... torna desigual... a ´satisfação das necessidades`”. Aporia a qual Marx fez corresponder, respectivamente, as etapas socialista e comunista da divisão do trabalho, sendo que na última delas, o estágio alcançado pelas forças produtivas torna sem importância a desigualdade que está sempre presente, pois.
Questão semelhante se põe quanto ao Estado e a nação. Enquanto Trotski, radicalizando o universalismo abstrato, acusa a construção do socialismo na Rússia de nacional-reformista, Stalin irá sublinhar a necessidade de ligar “um nacionalismo sadio, corretamente entendido, com o internacionalismo proletário”, uma advertência que em tudo lembra a distinção de Gramsci entre cosmopolitismo e internacionalismo, o último devendo saber “ser ao mesmo tempo ´profundamente nacional’”. Ora, Stalin tem presente que a luta de classe se configura agora como o compromisso de desenvolver economicamente e tecnologicamente o socialismo na URSS, que assim daria sua contribuição à causa internacionalista da emancipação. Fato ainda mais relevante quando se tratou de resistir aos “planos de escravização do imperialismo nazista”, o que significa dizer que “a marcha da universalidade passava através das lutas concretas e particulares dos povos decididos a não se deixar reduzir à condição de escravos ao serviço do povo hitleriano dos senhores”.
Mas não se trata apenas de uma determinada conjuntura. A questão parece atravessar mesmo todo o problema das transições, como o demonstram as referências às reflexões do idealismo alemão acerca da Revolução Francesa. Kant alertou, destaca Losurdo, quanto a uma “universalidade excessivamente extensa”, afirmando que “o apego ao próprio país” deve conciliar-se com “a inclinação a promover o bem do mundo inteiro”. E Hegel, desenvolvendo a mesma linha de pensamento, celebra “como uma grande conquista histórica a elaboração do conceito universal de homem (titular de direitos ‘enquanto homem e não enquanto judeu, católico, protestante, alemão, italiano, etc.’)” sem, todavia, deixar de acrescentar que esta celebração “não deve desembocar no ‘cosmopolitismo’ e na indiferença ou oposição com respeito à ‘vida estatal concreta’ do país do qual se é cidadão”.
Ora, mas a questão do Estado e da nação é também a questão das relações entre democracia e socialismo. Uma questão a qual não descuidou Lenin, lembra o autor remetendo-nos a uma passagem do líder bolchevique: “quem quiser caminhar para o socialismo por um caminho que não seja a democracia política, chegará inevitavelmente a conclusões absurdas e reacionárias, tanto do ponto de vista econômico como político”. Mas de que modo o universalismo abstrato de que acima se falou teve aqui também seus efeitos?
O apego à tese da extinção do Estado, eis o ponto problemático, acusa Losurdo. Com efeito, fortemente influenciados pelo anarquismo, diferentes revolucionários se entregaram à crítica acerba de toda a forma de poder − incluindo o desprezo ao “parlamento, aos sindicatos, aos partidos, às vezes até ao partido comunista, ele mesmo afetado pelo princípio da representação e, portanto, pelo flagelo da burocracia”. Trotski é o expoente máximo dessa crítica, sabemos, mas ela afeta a todos sendo mesmo ele, por exemplo, ao lado de Lenin, objeto de rejeição por Alexandra Kollontai nos primeiros anos da Rússia soviética. Aliás, lembra o autor, antes de insistir, em Melhor menos, mas melhor, na tarefa de “edificação do Estado”, do “trabalho administrativo”, para o qual dever-se-ia contar com “os melhores modelos da Europa ocidental”, mesmo Lenin, em O Estado e a revolução, defende necessitar a fase pós revolucionária “unicamente de um Estado em vias de extinção”.
É a Constituição de 1936 que inicia um rompimento com este messianismo − segundo o qual “´o direito é ópio para o povo` e ´a idéia de constituição é uma idéia burguesa`” −, assinala Losurdo. E é Stalin que sublinha não se contentar esta Constituição apenas “em fixar os direitos formais dos cidadãos”, antes logrando deslocar “o centro de gravidade para a garantia desses direitos, para os meios de exercício desses direitos”, entre eles a “aplicação do sufrágio universal, direto e igual, como escrutínio secreto” (o que para Trotski não passava da reaparição de uma instituição burguesa). E, ainda em 1938, convocando a que não se transformasse a lição de Marx e Engels “num dogma e numa escolástica vazia”, elabora que, entre as funções do Estado socialista, “além daquelas tradicionais de defesa do inimigo de classe no plano interno e internacional”, está a função do “trabalho de organização econômica e o trabalho cultural e educativo dos órgãos” do Estado. Isto com a “finalidade de desenvolver os germes da economia nova, socialista, e de reeducar os homens no espírito do socialismo”, devendo mesmo a “função de repressão” ser “substituída pela função de salvaguarda da propriedade socialista contra os ladrões e os dissipadores do patrimônio do povo”.
Certamente, estas declarações estão em contradição com o Grande Terror e a dilatação do Gulag do final dos anos 30. Não obstante, se a ditadura do proletariado, como fixou Lenin em O Estado e a Revolução, é o poder que não se vincula a nenhuma lei, Stalin, no imediato pós II Guerra, declara que Bulgária e Polônia podem “realizar o socialismo de modo novo, sem a ditadura do proletariado”, e que mesmo na URSS, se “não tivéssemos tido a guerra, a ditadura do proletariado teria tomado um caráter diferente.” Algo esboçado após a vitória sobre os Kulaks, como se pode ver na rejeição das emendas à Constituição que queriam “privar dos direitos eleitorais os ministros do culto, os ex-guardas brancos, todos os ´ex` e as pessoas que não desempenham um trabalho de utilidade pública”, bem como a rejeição da proposta de “proibir as cerimônias religiosas.”
Sem dúvida, insiste Losurdo, toda a teorização em torno das funções do Estado, “em si uma novidade essencial”, ficou a meio caminho. Se Stalin fala da conservação do Estado na fase comunista, o faz ainda condicionada ao “cerco capitalista”, ao “perigo de agressões armadas do exterior” (mesmo a questão da língua nacional, onde deu enorme contribuição, insistindo diferir ela “de maneira radical de uma superestrutura”, já que não criada “por uma classe qualquer, mas pela sociedade inteira”, é ainda pensada como sujeita a extinção nesta fase). Ora, é aqui que, para Losurdo, se impõe uma valorização de Hegel. Mais precisamente do Hegel que falou de aprendizagem de governo ao se debruçar sobre a Revolução Francesa e sua congênere inglesa do século XVII no fundamental, do Hegel que falou da necessidade dialética de dar “conteúdo concreto e particular à universalidade, pondo fim à perseguição louca da universalidade nas suas imediatez e pureza”.
Eis aqui também a raíz da tragédia que foi o Grande Terror de 1937-38, ou da coletivização forçada da agricultura ao cabo dos anos 20 − e para a qual contou mesmo o messianismo de parcela não desprezível da população, saudosa do igualitarismo da fase do comunismo de guerra −, raiz, enfim, da dificuldade de avançar em direção à democracia socialista. Lições, aliás, inescapáveis se se quiser entender a evolução dos países socialistas que aí estão (China, Vietnã), empenhados na construção tanto de uma neo-NEP, com o objetivo maior de desenvolver as forças produtivas nacionais, quanto de todo um conjunto de regramento jurídico que só muito forçosamente pode ser interpretado como simples democratização formal. Uma evolução, diga-se, que em nada lembra a apostasia gorbachoviana − bem demonstrada no ensaio de Canfora −, como gostam de fazer crer não só os mais messiânicos no interior da esquerda, mas a própria direita, sempre pronta a decretar a morte do socialismo.
_____________
Marcos Aurélio da Silva é Prof. dos cursos de graduação e pós-graduação em Geografia da UFSC.
Marcadores:
Direitos Humanos,
Ditaduras,
educação,
Formação Politica,
Historia,
literatura,
movimentos sociais,
revolucionários
Assinar:
Postagens (Atom)