DIREITO AO DELÍRIO
Eduardo Galeano
Já está nascendo o novo milênio. Não dá para levar muito a sério o assunto: afinal, o ano 2001 dos cristãos é o ano 1421 dos muçulmanos, o 5114 dos maias e o 5761 dos judeus. O novo milênio nasce num 1.º de janeiro por obra e graça de um capricho dos senadores do Império Romano, que um bom dia decidiram quebrar a tradição que mandava celebrar o ano-novo do começo da primavera. E a conta dos anos da era cristã deriva de outro capricho: um bom dia, o papa de Roma decidiu datar o nascimento de Jesus, embora ninguém saiba quando nasceu. O tempo zomba dos limites que lhe atribuímos para crer na fantasia de que nos obedece; mas o mundo inteiro celebra e teme essa fronteira.
Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.
Verdade seja dita, não há quem resista: numa data assim, por arbitrária que seja, qualquer um sente a tentação de perguntar-se como será o tempo que será. E vá-se lá saber como será. Temos uma única certeza: no século 21, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, do milênio passado.
Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível:
O ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das humanas paixões;
Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães;
As pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado e nem olhadas pelo televisor;
O televisor deixará de ser o mais importante membro da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa;
As pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar;
Será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
Em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar o serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo;
Os economistas não chamarão nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;
Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas;
Os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos;
Os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas;Ninguém acreditará que a solenidade é uma virtude e ninguém levará a sério aquele que não for capaz de deixar de ser sério;
A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavaleiro;
Ninguém será considerado herói ou pascácio por fazer o que acha justo em lugar de fazer o que mais lhe convém;
O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se em falência;
A comida não será uma mercadoria e nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos;
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;
Os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua;
Os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos;
A educação não será privilégio de quem possa pagá-la;
A polícia não será o terror de quem não possa comprá-la;
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro contra ombro;
Uma mulher, negra, será presidente do Brasil, e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru;
Na Argentina as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória;
A Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo;
A Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte";
Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;
Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de tanto esperar e os que se perderam de tanto procurar;
Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo;
A perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como fosse o primeiro.
Eduardo Galeano - De pernas para o ar - A escola do mundo ao avesso
Milênio vai, milênio vem, a ocasião é propícia para que os oradores de inflamado verbo discursem sobre os destinos da humanidade e para que os porta-vozes da ira de Deus anunciem o fim do mundo e o aniquilamento geral, enquanto o tempo, de boca fechada, continua sua caminhada ao longo da eternidade e do mistério.
Verdade seja dita, não há quem resista: numa data assim, por arbitrária que seja, qualquer um sente a tentação de perguntar-se como será o tempo que será. E vá-se lá saber como será. Temos uma única certeza: no século 21, se ainda estivermos aqui, todos nós seremos gente do século passado e, pior ainda, do milênio passado.
Embora não possamos adivinhar o tempo que será, temos, sim, o direito de imaginar o que queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos, mas a imensa maioria da humanidade só tem o direito de ver, ouvir e calar. Que tal começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal delirarmos um pouquinho? Vamos fixar o olhar num ponto além da infâmia para adivinhar outro mundo possível:
O ar estará livre de todo o veneno que não vier dos medos humanos e das humanas paixões;
Nas ruas, os automóveis serão esmagados pelos cães;
As pessoas não serão dirigidas pelos automóveis, nem programadas pelo computador, nem compradas pelo supermercado e nem olhadas pelo televisor;
O televisor deixará de ser o mais importante membro da família e será tratado como o ferro de passar e a máquina de lavar roupa;
As pessoas trabalharão para viver, em vez de viver para trabalhar;
Será incorporado aos códigos penais o delito da estupidez, cometido por aqueles que vivem para ter e para ganhar, em vez de viver apenas por viver, como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
Em nenhum país serão presos os jovens que se negarem a prestar o serviço militar, mas irão para a cadeia os que desejarem prestá-lo;
Os economistas não chamarão nível de vida o nível de consumo, nem chamarão qualidade de vida a quantidade de coisas;
Os cozinheiros não acreditarão que as lagostas gostam de ser fervidas vivas;
Os historiadores não acreditarão que os países gostam de ser invadidos;
Os políticos não acreditarão que os pobres gostam de comer promessas;Ninguém acreditará que a solenidade é uma virtude e ninguém levará a sério aquele que não for capaz de deixar de ser sério;
A morte e o dinheiro perderão seus mágicos poderes e nem por falecimento ou fortuna o canalha será transformado em virtuoso cavaleiro;
Ninguém será considerado herói ou pascácio por fazer o que acha justo em lugar de fazer o que mais lhe convém;
O mundo já não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza, e a indústria militar não terá outro remédio senão declarar-se em falência;
A comida não será uma mercadoria e nem a comunicação um negócio, porque a comida e a comunicação são direitos humanos;
Ninguém morrerá de fome, porque ninguém morrerá de indigestão;
Os meninos de rua não serão tratados como lixo, porque não haverá meninos de rua;
Os meninos ricos não serão tratados como se fossem dinheiro, porque não haverá meninos ricos;
A educação não será privilégio de quem possa pagá-la;
A polícia não será o terror de quem não possa comprá-la;
A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, tornarão a unir-se, bem juntinhas, ombro contra ombro;
Uma mulher, negra, será presidente do Brasil, e outra mulher, negra, será presidente dos Estados Unidos da América; e uma mulher índia governará a Guatemala e outra o Peru;
Na Argentina as loucas da Praça de Mayo serão um exemplo de saúde mental, porque se negaram a esquecer nos tempos da amnésia obrigatória;
A Santa Madre Igreja corrigirá os erros das tábuas de Moisés e o sexto mandamento ordenará que se festeje o corpo;
A Igreja também ditará outro mandamento, do qual Deus se esqueceu: "Amarás a natureza, da qual fazes parte";
Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;
Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles são os que se desesperaram de tanto esperar e os que se perderam de tanto procurar;
Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham aspiração de justiça e aspiração de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem que importem nem um pouco as fronteiras do mapa ou do tempo;
A perfeição continuará sendo um aborrecido privilégio dos deuses; mas neste mundo confuso e fastidioso, cada noite será vivida como se fosse a última e cada dia como fosse o primeiro.
Eduardo Galeano - De pernas para o ar - A escola do mundo ao avesso
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