Vai chegando o final do ano, vão aparecendo os textos
reflexivos na internet. Bem, pelo menos ainda não chegou a época das
restrospectivas… Mas é importante levantar este debate, tendo em vista
que o pessoal esquece que a integração plena ao maravilhoso mundo novo
do mercado global pode ser bom para alguns, mas não para todos.
A reestruturação dos processos de produção mundiais provocou mudanças
significativas na forma como as empresas organizam as suas operações e
relações comerciais. Desde os anos 1970, a geografia da produção foi
transformada de acordo com a atuação das empresas líderes que têm cada
vez mais terceirizado grande parte do processo de produção para
fornecedores de economias em desenvolvimento e emergentes, formando cada
vez mais complexas redes de produção global (RPGs) e estimulando a
expansão da produção das indústrias agroalimentares e de serviços nesses
setores da economia global. Os setores mais importantes de economias
emergentes e mais pobres também têm se tornado mais integrados em RPGs,
impulsionados por estratégias de desenvolvimento destinadas a promover
essa integração, e transformadas, neste contexto, pela dinâmica da
concorrência e pelas exigências da competitividade global. Em ambos os
processos, a evolução das redes de produção globais tem simultaneamente
resultado e facilitado uma profunda reestruturação nos mercados de
trabalho que os sustentam, juntamente com os padrões associados a tipos
de emprego e de trabalho. Tenho realizado um extenso estudo em parceria
com Nicola Phillips, do Centro de Estudos em Pobreza Crônica, da
Universidade de Manchester sobre o tema, do qual trago algumas rápidas
colocações a pedido de alguns leitores.
A forma na qual os produtores mais pobres e os trabalhadores têm
ampliado sua participação nas RPGs está atraindo uma atenção crescente.
Uma grande parte da teoria clássica e contemporânea, associada
principalmente ao trabalho e o legado de Joseph Schumpeter e Karl Marx,
estabeleceu que o desenvolvimento capitalista puxa para direções
diferentes e gera um processo intrínseco de desenvolvimento desigual. O
funcionamento e o impacto da RPGs contemporâneas revelam a mesma
dinâmica de crescimento e de desenvolvimento desiguais. A modernização
econômica seletiva é propelida por algumas partes da economia e para
alguns grupos de trabalhadores enquanto formas que poderiam ser chamadas
de “degradação” são empurradas para dentro e para outros grupos. Os
impactos diferenciais são muitas vezes sentidos por grupos de
trabalhadores do mesmo setor ou indústria, já que o desenvolvimento
capitalista produz uma segmentação do mercado de trabalho e se baseia em
um aumento de demarcação entre os segmentos primários e secundários da
força de trabalho.
O cada vez mais complexo processo de expansão das RPGs pode gerar
novas oportunidades de emprego para trabalhadores, oferecendo novas
fontes de renda para famílias. Mas, enquanto alguns trabalhadores se
beneficiam de maiores salários e proteção social e trabalhista em
processo de melhora, para a maioria que está nos mercados de trabalho
associados com RPGs, este padrão está relacionado a uma “incorporação
adversa”, caracterizada por formas de exploração do trabalho e do
emprego inseguro e desprotegido. Há dados que indicam um crescimento
substancial neste tipo de emprego “precário” e nos números de
trabalhadores altamente vulneráveis na economia global, sobretudo porque
o uso de trabalho pouco qualificado, mal remunerado, migrante e por
empreita tornou-se progressivamente central para a atividade econômica
em redes de produção.
Em outras palavras, a participação em redes de produção globais pode
proporcionar oportunidades de emprego e renda para parte dos mais
pobres, sob algumas condições e em alguns contextos, mas em outros (que
acredito, pelos dados, ser a maior parte dos casos) as condições de
pobreza são exploradas e as relações de pobreza são reforçadas, levando a
uma reprodução de vulnerabilidade, privação e marginalização. Temos
visto que os trabalhadores mais vulneráveis no Brasil e,
especificamente, aqueles classificados como trabalhadores escravos no
setor da pecuária, por exemplo, representam um exemplo de incorporação
adversa em que a dinâmica deste processo agrava as condições de
necessidade crônica e priva o trabalhador de um controle de curto e
longo prazo sobre seus bens (incluindo o trunfo do trabalho) e renda.
Nesse caso, a perda de controle que uma pessoa experimenta devido à
pobreza ou à indigência é reforçada pelo capital na sua criação e/ou
apropriação de um grande conjunto de excedente de trabalho vulnerável e
informal e, por sua vez, esta perda de controle é reforçada pela forma
de incorporação adversa, inclusive – no extremo – do trabalho escravo.
Temos visto que existem várias dimensões a esta dinâmica circular.
Como em todas as RPGs, o último elo na cadeia de valor do gado não é
relacionado com o produtor, mas sim com o trabalho utilizado por ele. As
pressões comerciais inerentes nas cadeias de valor, especialmente para a
redução de preço são, finalmente, transferidas para os trabalhadores
rurais. Em outras palavras, o conflito e a concorrência entre facções de
capital são expressas através de relações de trabalho. Isto se
manifesta em diferentes formas de exploração, incluindo as formas
extremas como trabalho escravo ou infantil. Estes tipos de exploração
por sua vez atuam de maneiras variadas para manter os padrões de pobreza
crônica nas regiões-chave da oferta de trabalho e entre os próprios
trabalhadores. O dinheiro que teria sido dividido em salários e outros
benefícios aos trabalhadores no âmbito das relações de trabalho fica
para os produtores rurais e/ou flui à cadeia de valor na qual a fazenda
está conectada. Condições voláteis de negócios e comércio em RPGs,
juntamente com os padrões de flutuação da demanda, no sentido de
reforçar as formas altamente flexíveis, precárias e inseguras de
emprego, por sua vez reforçam as condições de necessidade crônica que
modelam as estratégias de emprego e as decisões dos trabalhadores.
A pobreza não pode ser entendida exclusivamente com referência a uma
medida estatística de renda, por razões de natureza multifacetada da
pobreza que estão bem estabelecidas na literatura acadêmica e porque, no
caso brasileiro, as práticas de trabalho escravo podem implicar uma
remuneração, mesmo quando as condições de trabalho e de existência
humana envolvidas neste tipo de relação são degradantes, desumanas e
altamente abusivas. A chave nesses casos é que a extensão de insegurança
e instabilidade de emprego e renda limitam profundamente as
possibilidades de acumulação por parte do trabalhador e,
conseqüentemente, são fundamentais na constituição das formas de
vulnerabilidade que estamos discutindo. Esta situação de trabalho
precário e intermitente expressa como as formas de inclusão e exclusão
podem atuar em conjunto para produzir impotência e vulnerabilidade e
reforçar as relações de trabalho altamente exploradoras.
Por fim, formas de exploração não-contratual extrema como o trabalho
escravo não pode ser visto como uma aberração ou desvio do normal
funcionamento do capitalismo em geral e das RPGs em particular,
rejeitando a tendência presente em muitas partes dos debates acadêmicos e
políticos de imaginar que uma separação precisa ser estabelecida entre
estas práticas e outras formas de exploração do trabalho “normal”. Pelo
contrário, esses fenômenos complexos devem ser conceituados como
associados ao funcionamento normal dos mercados em questão e responde ao
mesmo conjunto de pressões de mercado e de forças (com diferentes
níveis e tipos de exploração) presentes ao longo da cadeia de valor.
Eles representam uma manifestação extrema e uma forma de incorporação
adversa, mas mesmo assim permanece em evidência em toda a economia
global.
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