Educar o povo brasileiro
Chegamos ao fim de 2010, e ao fim da primeira década do século XXI,
vislumbrando um país diametralmente diferente daquele que chegou ao novo
século. Em 2000, éramos um país sem perspectiva. O fim da hiperinflação
em meados da década que terminava – uma década começa e termina nos
anos com dois zeros na casa da dezena de sua representação numérica –
não conseguira nos fazer progredir economicamente e tampouco distribuir
renda.
Hoje, dez anos depois do início do novo século – e, não nos
esqueçamos, de um novo milênio, o que contém um simbolismo altamente
significativo –, tornamo-nos um país em que as perspectivas saltam sobre
nós, de tantas que são. Todavia, culturalmente o Brasil ainda é um país
extremamente atrasado. E na base desse atraso cultural está um
conservadorismo que oscila entre o patético e o deprimente, sobretudo
para quem quer acreditar que um novo país esteja surgindo.
Artigo
do diretor do instituto Vox Populi, Marcos Coimbra, publicado no
Correio Brasiliense de hoje (8/12) revela um dado que, à primeira vista,
é desanimador, mas que representa, apenas, a apuração de um problema na
cultura brasileira que, devido à sua dimensão, assusta, mas que pode,
sim, ser revertido, ainda que tal feito deva tardar um bom tempo até
acontecer.
Coimbra lembra pesquisa do instituto que preside feita no mês
passado, portanto após a eleição presidencial, que revela que o
brasileiro, antes de tudo, é um conservador nato. Temas considerados
“morais”, tais como aborto – que é um problema de saúde pública –,
homossexualidade – que é uma escolha legítima e constitucional do
cidadão – e uso de drogas – que é outro problema de saúde que se tornou
problema de Segurança Pública devido à vã tentativa de se proibir o uso
de certas substâncias e de se liberar outras – aparecem na pesquisa de
uma forma preocupante.
Segundo o Vox Populi:
1- 82% dos entrevistados são de opinião que o aborto não deve deixar de ser considerado crime;
2- 72% acham que o governo não deve propor mudanças na legislação que o descriminalizem;
3- 60% entendem que a união civil de pessoas do mesmo sexo não deve ser permitida;
4- 72% acham que o governo não deve propor leis que descriminalizem o consumo de drogas
E a conclusão de Coimbra sobre a pesquisa é de uma precisão cirúrgica:
“(…) As variações socioeconômicas e regionais nas respostas são
pouco relevantes, embora aconteçam nas direções esperadas. Pessoas de
escolaridade mais alta, com maior renda, mais jovens, moradores de áreas
urbanas e de estados mais desenvolvidos, tendem a ser menos hostis a
mudanças, mas nunca em proporções elevadas (a aceitação de que o aborto
não seja considerado crime é de 10% entre pessoas de baixa ou nenhuma
escolaridade, mas vai a apenas 20% nas de alta escolaridade). Ou seja,
se quisermos falar em conservadorismo, trata-se de um fenômeno
majoritário na sociedade inteira (..)”
A pergunta que surge é sobre por que um povo que precisa tanto de
mudanças se aferra a dogmas religiosos e moralistas que estão na base da
ideologia que moldou o país que mantém esse povo na miséria desde
sempre? Por que em um momento de ruptura com o dogma de que só doutores
poderiam governar bem um país, em um momento em que a mudança é o nome
do jogo que está sendo jogado, o conservadorismo – o que seja, o apreço
pelo “tradicional” – continua tão forte inclusive entre os que apóiam
politicamente a mudança?
A explicação está naquele esquerdista que prega valores moralistas e
ultra-religiosos de repúdio ao aborto e à homossexualidade, mas que
defende valores progressistas como distribuição de renda, igualdade
racial e de gênero etc. Porque a cultura brasileira foi impregnada por
esses valores ao longo de séculos, e muitos ainda mantêm os valores
dentro dos quais foram criados por país conservadores, ainda que tenham
se deixado seduzir por valores humanistas ao amadurecerem.
Outro fator de peso na construção da mentalidade conservadora do
brasileiro é o baixo nível cultural que, a despeito dos níveis de
escolaridade, permeia todas as classes sociais, todas as regiões, ambos
os gêneros, todas as faixas etárias e todas as regiões geográficas do
país. Mesmo entre os mais ricos e escolarizados, a cultura geral é
baixíssima. Entre empresários, por exemplo, enorme parte deles é de
homens sem qualquer refinamento cultural ou preocupação intelectual, que
lêem a Veja e acreditam que estão consumindo cultura.
O povo brasileiro está entre os que menos lêem no mundo e esse não é
um fenômeno restrito às camadas populares, pois devido ao gigantismo do
país e de sua população nossas classes média alta e alta encerram
contingentes que, somados, superam as populações de vários países. Ainda
assim, o Brasil tem um dos menores mercados editoriais do mundo.
Chegamos à segunda década do século XXI em condições de educar este
povo, para que, mais esclarecido, ultrapasse valores medievais e se
insira na moderna sociedade contemporânea da informação, na revolução
dos costumes que o conhecimento da história revela inexorável em sua
marcha cadenciada através da odisséia humana.
Temos riqueza e pujança econômica suficientes, hoje, para tornar o
Brasil um país culto e educado. Só depende das escolhas políticas que
continuarmos fazendo durante a década que começa. Se mantivermos no
poder grupos políticos dispostos a apostar alto no social a despeito da
gritaria de uma casta que se sente ameaçada pela distribuição de renda,
poderemos nos tornar uma das maiores potências do novo milênio.
Renato Janine e o exercício da tolerância
É sempre uma honra receber os comentários do professor Renato Janine
Ribeiro neste blog. Apesar de eminente, pode haver quem não conheça esse
que é um dos grandes pensadores deste país na contemporaneidade. Vale a
pena reproduzir suas credenciais, pois.
Renato Janine Ribeiro
(Araçatuba, 9 de dezembro de 1949) é um filósofo brasileiro. Atualmente
é professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo (FFLCH-USP). Recebeu o Prêmio Jabuti em 2001, bem como foi
condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Científico, em 1998, e com a
Ordem de Rio Branco, em 2009.
Sobre o post
anterior, referente ao exercício da tolerância, deixou comentário que
expõe, de forma quase acadêmica, apesar de sucinta, o pensamento deste
blogueiro. É incrível porque ele propôs exatamente o que eu já estava
escrevendo. Reproduzo a tese logo abaixo, agradecendo ao professor por
sua contribuição.
“Caro Eduardo,
parabéns pela idéia e até pela modéstia de reconhecer que isso é difícil. É mesmo.
O que me preocupa muito na Internet é a tendência dos
comentadores a serem muito radicais no que dizem. Com freqüência se
radicaliza o que o próprio blogueiro apenas indicou ou assinalou.
Ora, ninguém de nós é dono da verdade. Podemos, todos, errar. E erramos.
Acho que, apesar de certas ações horríveis como o preconceito
contra os nordestinos e gays nesse período pós-eleitoral, poderíamos
aproveitar que as eleições passaram e que seu resultado foi acatado por
todos.
Eu temia que estivesse se preparando uma deslegitimação da
presidente eleita (leia-se: clima de golpe). Não aconteceu, e acho isso
fabuloso!
Sinto orgulho do Brasil por ter chegado a esse ponto. E acho que
certos pontos podiam ser discutidos com menos exaltação. Dou um exemplo:
na educação, há muito mais convergência hoje do que dez anos atrás.
Mas uma divergência é entre ensinar com livros didáticos (posição
do governo federal) ou com apostilas e material fornecido por grandes
redes privadas, na verdade bem capacitadas (posição que o governo
paulista parece adotar – em parte).
O que li a esse respeito, até hoje, foi só faccioso. Esse é um
bom tema de debate, se questionarmos o que é melhor para quem realmente
importa: as crianças. E termino mandando um abraço para as suas”.
Renato Janine Ribeiro
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