Caros Amigos -
[Fábio Konder Comparato] Em todas as religiões, o ingresso de neófitos
exige um período de instrução mais ou menos longa do candidato sobre os
dogmas da fé. No período da minha infância (e já lá se vão várias
dezenas de anos), toda criança católica, para receber a primeira
comunhão, devia saber de cor o catecismo.
Penso que hoje, analogamente, nenhum agente público, sobretudo do alto escalão estatal, deveria tomar posse do seu cargo, sem comprovar um mínimo conhecimento daquele conjunto de verdades que, embora não sobrenaturais, situam-se no mais elevado escalão ético: o sistema de direitos humanos.
Receio que o atual
ministro das comunicações, Paulo Bernardo, não tenha sido instruído nos
rudimentos dessa matéria, pois o seu conhecimento dos direitos humanos,
para dizer o mínimo, deixa muito a desejar.
Em
entrevista realizada ao vivo na TV Brasil, sua excelência reconheceu
que o setor de comunicação social acha-se muito concentrado no Brasil, e
que é preciso desconcentrá-lo. “Mas não vamos fazer isso por lei”,
advertiu. “Não dá para fazer uma lei que diga que vai desconcentrar, até
porque não haveria mecanismos para isso.”
O
recado foi assim dado. Ao que parece, o governo da presidente Dilma
Rousseff considera sem importância as ações de inconstitucionalidade por
omissão, já propostas no Supremo Tribunal Federal, para exigir que o
Congresso Nacional vote uma legislação regulamentadora de vários
dispositivos constitucionais sobre comunicação social, ações essas que
tenho a honra de patrocinar como advogado.
Vejo-me,
portanto, com grande constrangimento, obrigado a expor ao ministro e,
quiçá, à própria presidente que o escolheu, o b-a-ba dos direitos
humanos.
É preciso começar pela distinção básica entre direitos humanos, deveres humanos e garantias fundamentais.
Os
direitos humanos são inatos a todos os componentes da espécie humana,
porque dizem respeito à sua dignidade de pessoas; isto é, dos únicos
seres da biosfera dotados de razão e consciência, como enfatiza o artigo
primeiro da Declaração Universal de 1948. Por isso mesmo, tais direitos
não são criados pela autoridade estatal, mas por ela simplesmente
reconhecidos. Em doutrina, faz-se, em conseqüência, a distinção entre
direitos humanos e direitos fundamentais. Estes últimos são os direitos
humanos reconhecidos nas Constituições ou nos tratados internacionais.
Em
estrita correspondência com os direitos humanos, existem os deveres
humanos. Para ilustração, basta lembrar que todos têm direito à vida,
direito esse que, em conseqüência, deve ser por todos respeitado. Os
Estados, por não serem pessoas humanas, não possuem obviamente direitos
humanos. Não obstante, todos os Estados têm deveres humanos, quando mais
não seja o de criar os meios ou instrumentos legais de proteção dos
direitos, vale dizer, de estabelecer as garantias fundamentais.
Ao
contrário dos direitos e dos deveres humanos, as garantias somente
existem quando criadas e reguladas pela autoridade competente; ou seja,
os Estados, no plano nacional ou internacional, e as organizações
internacionais, como a ONU e a OEA. Daí porque tais garantias são ditas
fundamentais e não simplesmente humanas, como os direitos.
Pois
bem, ministro Paulo Bernardo, a Constituição Brasileira reconhece o
direito à comunicação como fundamental, no art. 5°, incisos IV, IX e
XIV, e no art. 220 caput, os quais me abstenho de transcrever, mas cuja
leitura me permito recomendar-lhe vivamente.
Mas o que significa, afinal, comunicação?
Atentemos
para a semântica. O sentido original e básico de comunicar é de pôr em
comum. A comunicação, por conseguinte, não é absolutamente aquilo que
fazem os nossos grandes veículos de imprensa, rádio e televisão; a
saber, a difusão em mão única de informações e comentários, por eles
arbitrariamente escolhidos, sem admitir réplica ou indagação por parte
do público a quem são dirigidos.
Tecnicamente,
o direito à comunicação compreende a liberdade de pôr em comum, vale
dizer, de dar a público a expressão de quaisquer opiniões, a liberdade
de criação artística ou científica, e a liberdade de informação nos dois
sentidos: o de informar e o de ser informado.
Para cumprimento do dever fundamental do Estado Brasileiro de respeitar o direito à comunicação, a Constituição Federal em vigor estabeleceu um certo número de garantias fundamentais; as quais, frise-se, só se tornam praticáveis, quando adequadamente reguladas em lei.
Exemplo:
“É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem” (Constituição, art.
5°, inciso V). Como pode ser exercida essa garantia de proteção à
identidade ou à honra individual? Somente em juízo, ou também fora dele?
Há ou não há limites de extensão ou duração da resposta? Recebido o
pedido extrajudicial, em quanto tempo deve o veículo de comunicação
social dar a público a resposta do ofendido? Esta deve ser publicada na
mesma seção do jornal e no mesmo programa de rádio ou televisão, em que
foi divulgada a ofensa, ou a informação incorreta? Tudo isso, senhor
ministro, somente a lei pode e deve estabelecer.
Outro
exemplo, para retomar o comentário do ministro Paulo Bernardo, acima
transcrito. A Constituição proíbe o monopólio e o oligopólio, diretos ou
indiretos, no setor de comunicação social (art. 220, § 5°). Quem deve
definir a existência de monopólio ou oligopólio, de forma direta ou
indireta, no mercado? O ministro das comunicações? A sua chefe, a
presidente da República? O deus onipotente dos tempos modernos, o
Mercado? Ou deveremos, talvez, deixar essa definição para os preclaros
ministros do Supremo Tribunal Federal que, por sinal, não tiveram
constrangimento algum em considerar revogada a lei de imprensa, que
regulamentava o direito de resposta?
Quem
sabe, o ministro Paulo Bernardo já ouviu a citação do art. 5°, inciso
II, da Constituição Federal: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
fazer alguma coisa senão em virtude de lei”.
Ora,
há mais de duas décadas, exatamente há 22 anos e três meses, aguardamos
todos que o Congresso Nacional cumpra o seu dever fundamental de
legislar, definindo as condições em que será reconhecida a existência de
monopólio ou oligopólio, no campo da comunicação social. Nesse tempo
todo, o espírito empresarial não ficou passivo, a esperar, apalermado,
que as autoridades da República se decidissem, enfim, a cumprir a
Constituição. Só no setor de televisão, a Globo passou a controlar 342
empresas; a SBT, 195; a Bandeirantes, 166; e a Record, 142.
Pois bem, senhor ministro Paulo Bernardo, ainda que mal lhe pergunte: – Para que serve, mesmo, uma Constituição?
Fábio Konder Comparato é professor titular aposentado da Faculdade de Direito da USP.
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2011
Para que serve, mesmo, uma constituição?
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