Governo demarcou menos terras, não aplicou orçamento e ainda
tornou-se cúmplice da explosão de violências contra os povos indígenas
Roberto Antonio Liebgott no Brasil de Fato
Porto Alegre, Rio Grande do Sul
Nas
eleições de 2002, a candidatura de Lula expressava o anseio popular por
mudanças e sobre a qual recaiam a confiança e as esperanças dos pobres,
que acreditavam ser possível um governo desenvolver políticas de
geração de empregos, assistência digna, educação de qualidade,
segurança, reforma agrária, redistribuição de renda.
Os
povos indígenas confiaram que haveria um governo comprometido com suas
lutas e reivindicações e, por conseguinte, as suas terras seriam
demarcadas e que se estruturariam políticas tendo em vista assistência
diferenciada e digna, conforme determinações constitucionais.
Mas
suas expectativas e anseios não foram atendidos. As demarcações de
terras, dever do Estado, não se tornaram prioridade e muitos dos
procedimentos demarcatórios se encontram paralisados. Poucas foram as
terras regularizadas nos dois mandatos do presidente Lula: 88 terras
foram homologada, sendo que muitas delas tiveram os procedimentos
iniciados em governos anteriores.
Se comparado
com governos anteriores, os dados evidenciam que os procedimentos de
demarcações de terras foram sendo relegados ao esquecimento ou
protelados indefinidamente.
Para agravar a
situação, este governo inaugurou expedientes ilegítimos, tais como a
redução de áreas já demarcadas, e a suspensão de portarias que previam a
continuidade dos procedimentos demarcatórios.
Governo
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Nº de Terras Homologadas
|
Terras em Hectares
|
Collor de Mello / Itamar Franco (Período: 1990-1994)
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128
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31913228
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Fernando Henrique Cardoso (Período: 1994-2002)
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147
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36061504
|
Luiz Inácio Lula da Silva (Período: 2003-2010)
|
88
|
14339582
|
PAC “goela abaixo”
Ao
fazer uma retrospectiva da política indigenista, dos oito anos de
governo do presidente Lula, se constatou, de um lado, o interesse em
manter o bom discurso, alinhado com os anseios e expectativas dos povos
indígenas e de outro, as práticas cotidianas, que diferentemente da
retórica de que se garantiriam os seus direitos, se direcionaram para
estimular a ambição dos segmentos que historicamente se opõem a eles.
Para estes o governo criou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)
que, na essência, serviu e serve para financiar e apoiar empresas da
agroindústria, os banqueiros, as empreiteiras da construção civil, os
conglomerados que investem nas grandes barragens, em mineração, na
exploração madeireira e os grandes latifundiários que se dedicam ao
monocultivo ou a criação bovina.
Na concepção
desenvolvimentista do atual governo, focada apenas em aspectos
econômicos, estes segmentos são “produtivos” e viáveis. Já os povos
indígenas e comunidades tradicionais (como ribeirinhos, caiçaras e
quilombolas) foram rotulados como improdutivos e, desse modo, tratados
como sujeitos sem relevância para a economia e para o país. A sensação
que se tem é a de que aqueles que governam o Brasil analisam e concebem
que os pobres e as “minorias étnicas” devem receber, do poder público, a
sua “generosidade” ou “caridade” e não políticas estruturantes. E, além
disso, o presidente Lula, seguindo o exemplo dos governos militares,
considerou os povos indígenas obstáculos ou entraves ao desenvolvimento e
seus direitos constitucionais penduricalhos.
Explode a violência
Nos
últimos anos pode-se dizer que foi deflagrada uma intensa perseguição e
criminalização de lideranças indígenas que lutam pela terra. Isso
ocorreu especialmente na Bahia, Pernambuco, Maranhão, Mato Grosso do
Sul. Some-se a isso o alastramento de violências contra comunidades e
povos em diferentes regiões brasileiras. Além de terem seus territórios
invadidos, de padecerem com a falta de assistência em saúde, estes povos
sofreram com o assassinato de 437 pessoas.
A
omissão do governo Lula em relação ao intenso processo de violências
enfrentadas pelos Guarani Kaiowá em Mato Grosso do Sul, e que se pode
caracterizar como genocídio, é talvez o elemento mais significativo da
falta de interesse pelos povos indígenas. Os abusos contra este povo são
denunciados por organizações de defesa dos direitos humanos e indígenas
no Brasil e no exterior. A demarcação das terras poderia ter evitado a
morte de centenas de pessoas do povo Guarani Kaiowá. Além disso, uma
ação mais eficaz de proteção das comunidades e de punição daqueles que
praticam as violências poderia ter abrandado, em parte, o sofrimento que
lhes é imposto há décadas.
O estado de Mato
Grosso do Sul é recordista em violências contra os povos indígenas, e
ali as comunidades indígenas são obrigadas a viver em beira de estradas,
são expulsas de seus acampamentos e têm seus pertences queimados.
Vale
ressaltar que em diferentes estados do Brasil também foram praticados
assassinatos de indígenas, e nem todos esses números são divulgados.
Orçamento
Os
dados da execução do orçamento indigenista, ao longo dos últimos oito
anos, também demonstram o descaso com os 241 povos indígenas do país.
Mesmo quando há recursos aprovados, estes acabam não sendo executados
conforme o previsto. Chegamos ao final de 2010 com apenas 61% do
orçamento indigenista liquidado. Programas e ações fundamentais para a
sobrevivência física e cultural dos povos indígenas tiveram uma pífia
execução de seus recursos. Vejamos:
Ação
|
% Liquidado
|
Conservação e Recuperação da Biodiversidade em Terras Indígenas
|
0,00%
|
Saneamento Básico em Aldeias para Prevenção e Controle de Agravos
|
3,21%
|
Estruturação de Unidades de Saúde para Atendimento Indígena
|
9,94%
|
Demarcação e Regularização de Terras Indígenas
|
16,03%
|
Vigilância e Segurança Alimentar e Nutricional dos Povos Indígenas
|
51,00%
|
Promoção, Vigilância, Proteção e Recuperação da Saúde Indígena
|
65,00%
|
Estes
números indicam que os recursos previstos no Orçamento Geral da União
para assistência em saúde, demarcação de terras e recuperação de áreas
degradadas não foram aproveitados como deveriam, e tal procedimento é
injustificável diante da grave situação vivida pelas comunidades e povos
indígenas. Não parece ser, portanto, por falta de recursos que o
governo Lula deixou de demarcar terras indígenas e ocupa o pior lugar em
termos de desempenho neste quesito, se comparado aos seus antecessores.
Reestruturação x Mega projetos
A
Funai, durante todo o mandato do governo Lula, manteve-se em estado de
letargia e subserviência frente às pressões desencadeadas contra as
demarcações de terras. Ao final de 2009, como que num passe de mágica, a
equipe do governo decidiu reestruturar o órgão indigenista, através de
decreto nº. 7056, expedido no dia 29 de dezembro daquele ano. A referida
reestruturação não agradou a muitos dos povos indígenas por apresentar
mudanças na estrutura do órgão sem que eles fossem consultados,
desrespeitando a Convenção 169 da OIT, ratificada e homologada pelo
governo brasileiro. Esse fato gerou um ambiente de extrema desconfiança
quanto às reais motivações que levaram o governo a impor as pretendidas
mudanças.
Depois de apresentada a proposta de
reestruturação do órgão indigenista apenas as coordenações que tratam
das questões administrativas, ambientais e aquelas destinadas a estudos
sobre os empreendimentos que incidem sobre terras indígenas tiveram
planejamentos e ações efetivamente desenvolvidas. Desse modo, pode-se
dizer que o órgão indigenista foi colocado, de certa forma, a serviço do
PAC, e sua função parece ser, neste caso, a de convencer as comunidades
indígenas de que devem dar suas anuências aos projetos a serem
executados.
Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI)
No
que se refere às demandas para além das questões fundiárias, foram
sendo promovidas inúmeras ações nas áreas ambientais, de saúde, de meio
ambiente, agricultura, educação. No entanto, muitas delas foram
realizadas de maneira pulverizada e desarticulada entre si, sem
convergir para a questão central, que é a falta de uma política com
efetiva participação indígena.
Na expectativa de solucionar este
problema, os povos indígenas apresentaram proposta de criação do
Conselho Nacional de Política Indigenista. Ao invés disso, o Governo
Federal constituiu a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI),
em 2007. Não tendo o status de Conselho, a CNPI não tem poder de
deliberação. Os seus membros apresentam as demandas (temas e questões)
que afetam os povos indígenas e que devem ser debatidas, estudadas e
refletidas para posterior encaminhamento no âmbito do governo e da
política indigenista.
Em quase três anos de existência, a CNPI
acabou se tornando um ente de articulação de algumas lideranças, mas
parece ser desconsiderada no que se refere às ações e políticas a serem
implementadas a partir de suas recomendações, já que estas não são
assumidas pelo governo. Exemplo disso foi a edição do decreto de
reestruturação do órgão indigenista, sem que os integrantes da Comissão
tivessem conhecimento de seu conteúdo e muito menos que tenham sido
ouvidos a este respeito. Em síntese, as mudanças que deveriam ser
antecedidas pelo debate e anuência dos povos indígenas acabaram sendo
abruptamente anunciadas desrespeitando, inclusive, os fóruns
qualificados para o debate, como é o caso da CNPI.
Só em 2008,
após muita pressão dos movimentos indígena e indigenista, o Governo
Federal apresentou o Projeto de Lei nº. 3571 que prevê a criação do
Conselho Nacional de Política Indigenista. A sua tramitação segue a
passos lentos no Congresso Nacional, pois não lhe foi dada a importância
devida.
Também merecem uma avaliação as políticas de saúde e
educação. Na assistência à saúde indígena existiram graves e profundas
contradições, pois foi transformada em espaço de negociações com
partidos políticos, de modo especial com o PMDB. A política esteve
estruturada durante mais de uma década no modelo de assistência
terceirizada. Os convênios eram estabelecidos entre a Fundação Nacional
de Saúde (Funasa) com ONGs ou prefeituras. Esta relação perdurou até o
ano de 2008 quando, por pressão do movimento indígena, em função da
intervenção do Ministério Público do Trabalho e de decisão da Justiça, o
modelo de assistência (conforme está estabelecido na lei Arouca e pelas
deliberações das Conferências de Saúde Indígena) passou a ser tratado
no âmbito do Ministério da Saúde. Vale destacar que durante um longo
período a Funasa foi alvo de denúncias por malversação de recursos
públicos e por corrupção. Auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas
da União constataram graves distorções sobre o uso dos bens e recursos e
na prestação dos serviços.
Tardiamente e já quase no final de
seu governo, o presidente Lula determinou a criação da Secretaria
Especial de Atenção a Saúde Indígena. A proposta atende às
reivindicações dos povos indígenas, e esta Secretaria será o órgão
gestor do Subsistema de Atenção a Saúde Indígena, sob a responsabilidade
do Ministério da Saúde. O novo modelo terá como referência os Distritos
Sanitários (DSEIs) enquanto unidades gestoras. A Secretaria foi criada
formalmente, mas ainda não foi estruturada.
A política de educação
escolar indígena tem sido igualmente contraditória. A responsabilidade é
do Ministério da Educação (MEC), que repassa os recursos e as
atribuições da educação escolar aos Estados que, por sua vez, podem
transferi-las aos municípios. Com o objetivo de buscar uma solução para
as distorções e contradições existentes na execução da política de
educação foram apresentadas propostas dos movimentos de professores
indígenas, de entidades de apoio e pesquisadores apontando para uma
perspectiva da federalização da política. No entanto, os técnicos do
Ministério da Educação optaram por um caminho diferente. Instituíram
através do Decreto nº. 6861, de 27 de maio de 2009, os chamados
Territórios Etnoeducacionais, antes mesmo da realização de todas as
conferências regionais previstas para avaliar e propor alternativas para
a educação escolar indígena. Esse processo de reflexão culminou na
Conferência Nacional de Educação que, ao invés de discutir as propostas
vindas das diferentes regiões, acabou por discutir o fato já consumado
do novo modelo. O modelo dos Territórios Etnoeducacionais não foi
debatido e sequer é compreendido pela maioria das comunidades e povos
indígenas e, porque não dizer, por muitos executores da política que, em
geral, são os estados e municípios.
Judicialização
Não
podemos deixar de observar também as crescentes demandas judiciais
contra procedimentos de demarcações de terras, em curso ou até em fase
de julgamento definitivo. Raras têm sido as decisões que acolhem de
maneira favorável os direitos e interesses indígenas. Normalmente as
decisões têm um caráter liminar que suspendem os procedimentos
demarcatórios até que o mérito seja decidido pelas instâncias
superiores, no caso STJ ou STF. Em função destas manobras jurídicas, os
processos se arrastam por décadas sem que haja uma solução para o
litígio imposto.
Neste sentido, merecem destaque
duas ações de grande repercussão e que chegaram ao STF: o caso do povo
Pataxó Hã-Hã-Hãe, do sul da Bahia, ação que tramita há quase 30 anos e
que, embora com voto favorável do relator da ação ao povo indígena,
ainda não foi julgada; e Raposa Serra do Sol, que teve um desfecho
importante, em função de o julgamento ter sido pela manutenção da
demarcação em área contínua, mas complexo pelo estabelecimento de
condicionantes que afetam todas as demarcações de terras em curso e
aquelas que acontecerão no futuro.
Direitos ameaçados
As
opções políticas do governo do presidente Lula o conduziram para a
governabilidade a qualquer custo. Para isso, o governo estabeleceu
alianças políticas com segmentos retrógrados e possibilitou que certas
áreas estratégicas fossem incluídas no rol dos recursos a serem
explorados, a exemplo das áreas ambientais, minerais e de energia
hidráulica.
Os povos indígenas, no atual governo,
diferentemente de anteriores, se fizeram mais presentes nos espaços
públicos, reivindicando e exigindo que as autoridades cumprissem com
suas responsabilidades.
No entanto, apesar de uma
visibilidade maior e da criação de certos espaços de participação, as
artimanhas utilizadas por parte daqueles que governam engessaram as
ações indígenas em torno de discursos, pedidos de paciência e promessas a
serem cumpridas. Com isso, as lutas indígenas que mostraram maior
relevância foram aquelas que se organizaram em âmbito local ou regional.
As de caráter nacional foram como que dissipadas e muitas delas
esvaziadas pela relação que se estabeleceu com setores do governo
federal que eram, até muito recentemente, opositores aos governos
anteriores e inclusive militantes da causa indígena.
Já
os setores anti-indígenas estão cada vez mais articulados. No
parlamento brasileiro, diversos projetos de lei tentam impedir que
terras indígenas sejam demarcadas. Exemplo disso é a proposta de emenda
constitucional que determina que as demarcações de terras sejam
autorizadas pelo Congresso Nacional. Sem contar as dezenas de outros
Projetos de Lei apresentados por parlamentares para, de algum modo,
restringir os direitos indígenas.
Roberto Antonio Liebgott é Vice-Presidente do Conselho Indigenista Missinário
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