Em
vigor há dois anos, uma nova regulamentação europeia permitiu 0,9% de
organismos geneticamente modificados nos produtos orgânicos e o
adiamento da aplicação de leis referentes ao uso de agrotóxicos. Aliada à
produção em grande escala e por empresas do setor alimentício, a medida
colocou em xeque a própria definição
|
por Phillipe Baque no LeMonde-Brasil |
Em junho de 2009, um técnico da cooperativa Terres du Sud, no sudoeste
da França, organizava uma jornada de visitas às criações intensivas de
frangos orgânicos. O desempenho das instalações, entregues prontas para o
uso, assim como os créditos e o apoio público propostos visavam
converter os agricultores convidados. Para garantir o fornecimento aos
grandes distribuidores e às empresas de alimentação1, as poderosas
cooperativas agrícolas mergulham, agora, numa concorrência selvagem para
a criação de frangos acima de qualquer suspeita. Elas se beneficiam da
nova regulamentação europeia, que permite ao criador produzir até 75 mil
frangos de corte orgânicos por ano e não limita o tamanho das criações
orgânicas de galinhas poedeiras.
Essas cooperativas perceberam que poderiam ganhar muito dinheiro com um
tipo de agricultura que, por muito tempo, elas haviam criticado. “Os
produtores perderam toda a autonomia”, conta Daniel Florentin, membro da
Confédération Paysanne [Confederação Camponesa], ex-criador de aves
orgânicas, que trabalhou com a cooperativa Maïsadour. “Eles estão
endividados por pelo menos 20 anos e devem fornecer toda a sua produção
para a cooperativa que se comprometer a comprá-la, sem preço
predeterminado.”
Desde 1999, devido a problemas de saúde e relacionados ao meio
ambiente, o consumo de produtos alimentares orgânicos vem crescendo 10%
ao ano na França. Em 2009, apesar da crise, o volume de negócios de
produtos orgânicos aumentou 19%.2 Este mercado, por muito tempo
marginal, tornou-se relevante e foi ocupado pelos grandes
distribuidores, que respondem atualmente por mais de 45% das vendas.
Entretanto, em 2009, apenas 2,46% da superfície agrícola usada era
destinada a produtos orgânicos. Para atender à demanda dos consumidores,
os atores que dominam o mercado escolheram duas soluções: um apelo
maciço às importações e o desenvolvimento de uma agricultura orgânica
industrial e intensiva.
A noção de agricultura orgânica nasceu na Europa em reação à
agricultura química e produtivista que se generalizou após a Segunda
Guerra Mundial. No início dos anos 1960, uma rede de pequenos
agricultores orgânicos e de consumidores criou a Nature & Progrès
(N&P). A associação atraiu grande parte das populações urbanas, que
decidiu voltar à terra e tecer relações com os diferentes movimentos
ecologistas e políticos, como o sindicato Paysans-travailleurs
(Camponeses-trabalhadores) nos anos 1970 e a Confederação Camponesa e os
antiOGM (Organismos Geneticamente Modificados) a partir dos anos 1990.
Feito isso, a Nature et Progrès adotou alguns princípios: rejeição a
produtos sintéticos, tratamentos naturais, diversificação e rotação das
culturas, autonomia das explorações, energias renováveis, defesa dos
pequenos camponeses, biodiversidade, sementes orgânicas etc. Para dar um
novo sentido ao consumo e recriar relações sociais, a venda dos
produtos orgânicos é assegurada por mercados locais, feiras e grupos de
compras que formaram a rede Biocoop3. A carta da Nature et Progrès
inspirou a da Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura
Orgânica (Ifoam), datada de 1972, que associava aos critérios
agronômicos, objetivos ecológicos, sociais e humanistas.
Coerência
Mas o movimento camponês ligado a este tipo de cultura sofre para
encontrar coerência interna. Nos anos 1980, a declaração oficial de
finalidade da Nature et Progrès coabitava com uma quinzena de outras,
criadas por diferentes movimentos. Em 1991, Bruxelas impôs uma definição
de escopo para o conjunto da União Europeia, cuja aplicação pelo Estado
francês fornece o selo nacional AB. Encarregados de fiscalizá-lo, os
organismos certificadores, privados e comerciais, entram em confronto
com o controle participativo realizado até então pelas comissões de
produtores, consumidores e beneficiadores.
A Natute et Progrès vive uma grave crise. Alguns membros decidiram
boicotar o selo. Outros, tentados por um mercado certificado em plena
expansão, deixaram a associação. “A certificação favoreceu os grandes
distribuidores em detrimento das redes solidárias”, explica Jordy Van
Den Akker, ex-presidente da Nature et Progrès. “A ecologia e o social,
que para nós são valores importantes, não estão mais associados ao
econômico. O selo e a regulamentação europeia permitiram o
desenvolvimento de um mercado internacional, facilitando a livre
circulação dos produtos, o comércio e a concorrência.”
Em vigor a partir de 1o de janeiro de 2009, uma nova regulamentação
europeia permitiu, entre outras coisas, 0,9% de organismos geneticamente
modificados nos produtos orgânicos e o adiamento da aplicação de leis
referentes ao uso de agrotóxicos.4 “O orgânico é incompatível com os
organismos geneticamente modificados”, reagiu Guy Kastler, criador do
departamento de Hérault e militante da N&P. “Nós continuamos
exigindo 0% de OGM! A nova regulamentação definiu normas e não se
preocupa mais com as práticas agrícolas. Passaram de uma obrigação de
meios – qual método de cultura utilizado? – a uma obrigação de resultado
– qual resíduo é recuperado no produto final? É a porta aberta para a
generalização de uma agricultura orgânica industrial.”
As cooperativas agrícolas estão no auge. Graças, em particular, à
alimentação das aves que elas produzem e fornecem aos agricultores, suas
margens de lucro são consideráveis. A antiga regulamentação francesa
impunha ao criador de orgânicos a produção de 40% da alimentação animal
em suas terras. Essa ligação com o solo não existe mais na nova
regulamentação europeia. O criador compra das cooperativas a totalidade
dos alimentos, entre os quais a soja é um dos componentes principais. Em
2008, na França, a produção de aves orgânicas teve um aumento de 17%,
enquanto a de soja orgânica caiu 28%. A soja importada, muito mais
barata, se impôs.
Frutas e legumes
A França importa mais de 60% das frutas e legumes orgânicos que
consome. A ProNatura é a líder francesa de comercialização nas lojas
especializadas e supermercados. Em menos de dez anos, esta empresa do
sudeste da França multiplicou seu volume de negócios por dez e absorveu
quatro outras sociedades. Um quarto de seus produtos provém da França,
mas o resto é importado da Espanha (18%), do Marrocos (13%), da Itália
(10%) e de cerca de 40 outros países. A ProNatura foi a primeira
sociedade a comercializar frutas e legumes orgânicos fora das estações.
Isso não impede que seu fundador, Henri de Pazzis, preconize o respeito à
terra, ao meio ambiente, ao camponês e ao consumidor.
Mas a lei ditada pelas empresas distribuidoras está bem longe desses
princípios. “Elas adotam para o orgânico os mesmos mecanismos de compra
destruidores que usam no convencional”, explica Pazzis. “Elas encorajam a
concorrência de um modo agressivo. Alguns de nossos produtos são
retirados do mercado, pois outros fornecedores propõem preços muito
inferiores aos nossos.” Nessa guerra de preços, da qual a ProNatura e as
outras empresas de importação e exportação escolheram participar, o
social e o respeito ao meio ambiente têm bem pouco espaço.
Há 12 anos, a ProNatura importa morangos orgânicos da Espanha,
produzidos pela sociedade Bionest. Os donos, Juan e Antônio Soltero,
possuem 500 hectares de estufas que, à primeira vista, não se
diferenciam em nada das milhares de estufas convencionais que cobrem a
região de Huelva, prejudicada por uma monocultura de morangos
particularmente poluidora e exploradora de mão de obra. Como outras
empresas, a Bionest situa-se no seio do parque natural de Doñana,
inscrito no Patrimônio Mundial da Unesco (Organização das Nações Unidas
para a Educação, a Ciência e a Cultura5. Segundo a WWF-Espanha, as
estufas se multiplicam de maneira mais ou menos ilegal no parque,
prejudicando o meio ambiente e ameaçando principalmente as reservas de
água6.
A Bionest não respeita a biodiversidade – as poucas variedades de
morangos utilizadas são as mesmas das estufas convencionais –, pratica a
monocultura e aplica fertilizantes nas plantas através de um sistema de
irrigação por gotejamento. Seus métodos de cultura não são radicalmente
diferentes dos usados pelas estufas convencionais de Huelva. Apenas os
insumos certificados lhes garantem o selo orgânico. Para a colheita, a
Bionest emprega centenas de romenas, polonesas e filipinas, com uma
relação trabalhista precária. O assunto é muito delicado e os donos da
Bionest recusam-se a receber jornalistas para dar explicações.
Essas mulheres vêm todo ano para a Espanha, diretamente recrutadas em
seus países pelas organizações patronais, com contratos e vistos de
duração limitada. Não conhecendo seus direitos, elas ficam totalmente
submissas aos empregadores, que as exploram à vontade.7 Francis Prieto,
membro local do Sindicato dos Trabalhadores dos Campos (SOC), improvisa
uma visita aos acampamentos das trabalhadoras da Bionest. Totalmente
isoladas no meio das estufas, elas devem se submeter a um regulamento
rigoroso: proibição de visitas, saídas controladas, passaportes
confiscados. “Elas são aterrorizadas por seus patrões”, explica Francis
Prieto, “e sofrem a mesma exploração que os outros empregados
temporários de Huelva, com condições de trabalho particularmente
difíceis.”
A Bionest não é um caso isolado na Andaluzia. Nos arredores de Almería,
a AgriEco produz, embala e comercializa, de setembro até o final de
junho, mais de 11 mil toneladas de tomates, pimentões e pepinos
orgânicos. Nas estufas dotadas de tecnologias de ponta, os insumos são
certificados como “eco” e as trabalhadoras temporárias são romenas e
marroquinas. Miguel Cazorla, dirigente sorridente e afável, prevê com
orgulho uma nova expansão da sociedade. Transportados em caminhões para
todas as lojas especializadas em produtos orgânicos da Europa, os
legumes da AgriEco estão concorrendo diretamente com os produtos das
estufas “orgânicas” da Itália, do Marrocos e de Israel. No circuito do
Mediterrâneo, a guerra comercial tornou-se acirrada para o proveito dos
intermediários.
Bem longe dessa profusão de produtos orgânicos industriais, a pequena
cooperativa agrícola La Verde, na serra de Cadix, foi criada nos anos
1980 por trabalhadores membros do SOC que conduziram, no final do
franquismo, lutas para obter terras. Seis famílias cultivam ali legumes e
frutas e criam algumas vacas e carneiros em 14 hectares. Elas
comercializam toda a sua produção na Andaluzia por meio de outra
cooperativa, a Pueblos Blancos, que agrupa 22 pequenos agricultores e
cooperativas. “Nós fomos os primeiros a nos lançar na agricultura
orgânica”, lembra Manolo Zapata. “Ela se assemelhava à agricultura de
nossos bisavós e ia ao encontro da nossa luta. Se a agricultura orgânica
não conseguir restabelecer a justiça, a autonomia, a autossuficiência e
a soberania alimentar, ela não terá sentido algum. E os certificadores
não nos ajudam. Um agricultor que diversifica suas culturas e cultiva
muitas variedades será mais pesadamente taxado que aquele que pratica a
monocultura intensiva.”
Por ter denunciado publicamente o apoio do principal organismo
certificador espanhol – o Comitê Andaluz de Agricultura Ecológica (CAAE)
– às grandes empresas do “biobusiness”, a La Verde sofreu uma avalanche
de inspeções. Enquanto seus membros criaram o mais importante banco de
sementes orgânicas da Espanha, que lhes permitiu garantir sua cultura e
abastecer todos os pequenos produtores de orgânicos da região, eles
temem que a repressão caia sobre eles. “Existem leis e normas que
reprimem o direito ancestral de reproduzir sementes e que nos impedem de
certificar essas variedades antigas que nós preservamos.” A
regulamentação europeia de agricultura orgânica impõe de fato ao
agricultor utilizar sementes certificadas orgânicas. Se elas não
existem, ele deve recorrer às sementes convencionais do mercado
autorizadas. “Por enquanto, tudo se passa no limite da legalidade, mas
se amanhã a venda de nossos produtos for proibida, seremos obrigados a
usar as sementes orgânicas vendidas pela Monsanto8.” Tomando como
exemplo alguns camponeses da Nature et Progrès, os membros da La Verde
pensam em se retirar da certificação orgânica.
Exemplos como o da La Verde se multiplicam atualmente, na Colômbia,
Bolívia, Brasil, Índia, Itália e França. A resistência ao biobusiness
organiza-se em todo o planeta. Cada vez mais camponeses, comunidades
rurais e pequenas cooperativas de produtores defendem uma agricultura
tradicional e tipos de culturas agroecológicas que privilegiem a
produção com uma dimensão humana, respeitando a biodiversidade e a
soberania alimentar. Muitos rejeitam as certificações e praticam os
sistemas participativos de garantia fundados numa relação de troca e
confiança entre produtores e consumidores. Redes de defesa das sementes
orgânicas se desenvolvem para impor o direito dos camponeses de produzir
e comercializar suas próprias sementes.
Na França, as associações para a manutenção da agricultura tradicional
(Amap), que estabelecem trocas diretas entre produtores e consumidores
sem passar pelo mercado, vivem tal euforia que não conseguem dar conta
da demanda. A associação Terre de Liens coleta, com sucesso, fundos
solidários para possibilitar o estabelecimento de jovens agricultores de
orgânicos. Para se distinguir da regulamentação europeia, a Federação
Nacional da Agricultura Biológica (FNAB) criou uma nova marca: a
Bio-Cohérence. Ela complementará a certificação oficial, exigindo o
respeito a metas muito mais rigorosas e a adesão a princípios inspirados
naqueles adotados pela Ifoam em 1972. À parte da regulamentação, a
Nature et Progrès segue defendendo a agricultura orgânica tradicional.
A integração, ou não, dos valores sociais e ecológicos no centro das
preocupações dos produtores, intermediários e consumidores dos orgânicos
determinará seu futuro. Tornar-se-á uma simples face do mercado,
submissa aos únicos interesses do liberalismo econômico? Ou será ainda
mensageira de uma alternativa a esse liberalismo?
Phillipe Baque
é jornalista, coordenador do projeto do livro De la bio alternative aux
derives du “bio”-business, quel sens donner à la bio?, que será lançado
no final de 2011; site: alterravia.com
1 Para atingir um dos objetivos fixados
pela Grenelle de l’Environnement [Grenelle do Meio Ambiente], o Estado
pretende introduzir, até 2012, 20% de mercadorias provenientes da
agricultura orgânica no cardápio dos restaurantes das administrações e
estabelecimentos públicos.
2 A maioria das cifras citadas provém do dossiê de imprensa da Agence Bio “Les chiffres de la bio sont au vert”, serviço de imprensa da Agence Bio, 2010, e da obra Agriculture biologique, chiffres clés, Agence Bio, Montreuil-sous-Bois, edição 2009. 3 Pascal Pavie e Moutsie, Manger Bio. Pourquoi? Comment? Le guide du consommateur éco-responsable, Edisud, Aix-en-Provence, 2008. 4 “Bio/OGM: o voto dos deputados europeus em detalhes”, 21 de maio de 2009, www.terra-economica.info 5 Ler “Importer des femmes pour exporter du bio?” [Importar mulheres para exportar orgânicos?], Silence, n° 384, novembro de 2010. 6 Communicado da WWF: “Fraises espagnoles: exigeons la traçabilité” [Morangos espanhóis, exijamos a identificação da origem], 23 de março de 2007. 7 Emmanuelle Hellio, “Importer des femmes pour exporter des fraises (Huelva)” [Importar mulheres para exportar morangos], Etudes rurales, Paris, julho-dezembro de 2008. 8 “A qui profite la récolte? La politique de certification des semences biologiques” [Quem se beneficia com a colheita? A política de certificação das sementes orgânicas], relatório da Grain, Barcelona, janeiro de 2008; www.grain.org |
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
sábado, 30 de abril de 2011
Um novo sentido para os produtos orgânicos
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário