República Popular da China: 60 anos
A experiência histórica do país é extremamente valiosa para demonstrar que não existem modelos de revolução
Por Wladimir Pomar
Em
dezembro de 1949, a China assistiu à fundação da República Popular, com
a vitória do Exército Popular de Libertação sobre os exércitos
comandados pelo Guomindang. A nova república implantou a reforma
agrária, com a nacionalização da terra e sua entrega, em usufruto, a
mais de 150 milhões de camponeses. Além disso, denunciou os tratados
desiguais que, por mais de um século, permitiram às potências
imperialistas espoliar e humilhar a China.
As
propriedades das empresas imperialistas, assim como dos chineses que
haviam colaborado com os agressores japoneses, foram nacionalizadas.
Mas os empresários nacionais mantiveram suas propriedades, em
concordância com o Programa da Nova Democracia. Proposto pelo Partido
Comunista, em 1946, esse programa previa uma aliança de longo prazo com
o empresariado nacional, para desenvolver a capacidade produtiva de uma
China ainda pobre e atrasada.
A
nova república, mesmo confrontada com a destruição de mais de 20 anos
de guerras, assim como com o bloqueio das potências imperialistas e com
as ameaças da Guerra da Coréia e de guerra nuclear, conseguiu
reconstruir o país e garantir, num primeiro momento, os direitos
humanos básicos de alimentação, moradia, educação e saúde.
Para
manter a soberania recuperada, proteger-se contra as ameaças da Guerra
Fria, e avançar em suas propostas de ingressar numa sociedade
socialista, a República Popular necessitava industrializar o país.
Porém, sem contar com riquezas acumuladas, nem com capitais externos, o
caminho que lhe restou foi contar com os próprios esforços e uma
pequena ajuda da União Soviética, em projetos e técnicos, para
construir a base de sua indústria pesada.
Desvios de rota
Nessas
condições, era inevitável ocorrer desequilíbrios. Também era inevitável
que camponeses e operários reclamassem que seu sobre-trabalho fosse
desviado para produzir aço, máquinas e fábricas, ao invés de produzir
bens que lhes propiciasse um melhor padrão de vida. Paralelamente,
ressurgiu uma intensa luta de classes, opondo camponeses pobres a
camponeses abastados, tendo como fulcro o usufruto da terra, que tendia
a ser dominado pelos mais ricos, detentores de saber e de relações
sociais antigas.
Os
desequilíbrios na economia, a luta de classes no campo, as tentativas
da burguesia nacional de lucrar com a especulação de alimentos, os
movimentos contra-revolucionários, que tentavam se aproveitar das
dificuldades do novo regime, as ameaças da Sétima Frota dos Estados
Unidos e dos exércitos do Guomindang, no estreito de Taiwan, a Guerra
Fria e sua ameaça nuclear, tudo isso dificultava o desenvolvimento
econômico e social chinês, impondo-lhe desafios de toda sorte.
Foi
num quadro como esse que a República Popular acabou por se desviar do
Programa da Nova Democracia. Os movimentos massivos das Cem Flores,
Comunas Populares, Grande Salto Adiante e Quatro Modernizações,
expressaram apenas as tentativas contraditórias de desenvolver as
forças produtivas, com ou sem o concurso da burguesia e de formas
capitalistas de propriedade.
O
mais radical de todos esses movimentos massivos foi a Revolução
Cultural, entre 1966 e 1976, que levou ao limite a idéia da
socialização completa da propriedade, da abolição do mercado, e da
participação democrática direta das massas no poder, na suposição de
isso permitiria desenvolver as forças produtivas. Mais uma vez, como em
todas as grandes revoltas da história chinesa, o igualitarismo
econômico e social camponês foi a força propulsora que levou massas de
milhões a desafiar o Partido Comunista e o poder instaurado em 1949.
Debate sobre a experiência histórica
Após
passar por todas essas experiências, e realizar uma avaliação histórica
sobre elas, a República Popular ingressou, entre 1976 e 1978, numa
retirada parcial, no estilo da Grande Marcha, para superar os elementos
de instabilidade política e ideológica, encaminhar a solução dos
problemas mais aflitivos do povo, e realizar as “quatro modernizações”,
retornando ao Programa da Nova Democracia.
Apesar
das críticas a Mao Zedong, a necessidade de perseverar na linha que
toma as massas como centro das preocupações, e no estilo de trabalho,
que toma a prática como critério da verdade, criados por Mao, foram
considerados decisivos para emancipar as mentes, combinar democracia e
centralismo, e distinguir as contradições dentro do povo das
contradições entre o povo e o inimigo.
Além
disso, houve o reconhecimento de que, apesar de todos os avanços, a
China ainda era um dos países mais pobres do mundo. Suas forças
científicas, tecnológicas e educacionais estavam 20 a 30 anos atrás dos
países desenvolvidos. A China possuía uma população imensa, com pouca
terra arável. Então, como modernizar a China e, ao mesmo tempo, dar
trabalho e bem-estar à sua enorme população? Como evitar que as “quatro
modernizações” criassem uma imensa população excedente e pobre? As
experiências de desenvolvimento do mundo capitalista apontavam para uma
crescente massa de desempregados, o que ia contra os princípios
socialistas.
Essas
preocupações levaram a República Popular a ancorar-se nos princípios
ideológicos e políticos que haviam orientado seus fundadores. Isto é,
ter como princípios cardeais na definição das políticas de modernização
o caminho socialista, o regime democrático popular, a direção do
Partido Comunista, e o guia teórico do marxismo e do pensamento Mao
Zedong.
A
China só se recuperara como nação ao enveredar pelo caminho socialista.
Assim, embora as reformas representassem um recuo estratégico, este
podia transformar-se em ofensiva, desde que almejasse uma civilização
com um alto nível cultural e ideológico, tendo como suporte uma
civilização material forte. Neste sentido, o combate aos crimes
econômicos tornou-se vital. Não seria possível enfrentar a corrupção,
nem os distúrbios, pequenos e grandes, causados pelo processo de
modernização, sem uma forte adesão ideológica ao socialismo, ao regime
democrático popular e à liderança do PC.
Reajustamentos preliminares
Em
1978 e 1979, em pleno curso do debate sobre a experiência histórica da
revolução e da República Popular, a China adotou reajustamentos
importantes na agricultura e em sua política de abertura ao exterior.
Na
agricultura, que sempre foi o fundamento da nação chinesa, foram
elevados os preços pagos aos produtores agrícolas e permitiu-se que os
próprios camponeses organizassem sua produção e pudessem vender
livremente seus excedentes. Isto levou à retomada da economia agrícola
familiar, substituindo paulatinamente as comunas populares, e resultou
na elevação da produção agrícola, de 304 milhões para 450 milhões de
toneladas.
Paralelamente
a isso, após o salto em sua abertura ao exterior, em plena vigência da
Revolução Cultural, quando os Estados Unidos e a maioria dos países
ocidentais reconheceram a existência de uma só China e a República
Popular como seu governo legítimo, a partir de 1979, a República
Popular passou a permitir investimentos estrangeiros em seu território,
com a criação das Zonas Econômicas Especiais e dos Portos Abertos.
Durante mais de uma década, os investimentos estrangeiros limitaram-se
e essas zonas, tendo como condição se associarem a uma empresa
nacional, aportarem novas tecnologias, e exportarem a produção.
A nova Grande Marcha
No
processo de reformas, iniciado em 1980, a República Popular optou por
um programa gradual. Tendo por base experimentos variados, por meta uma
economia moderadamente desenvolvida em duas décadas e, por perspectiva,
30 a 50 anos de desenvolvimento progressivo, a China iniciou as
reformas agrícolas em 1980, a as reformas urbanas na indústria,
comércio, finanças, serviços, educação etc, em 1984.
As
reformas utilizam várias combinações estratégicas. Elas relacionam
planejamento e mercado, propriedade social e propriedade privada,
trabalho intensivo e capital intensivo, tecnologias baixas e altas,
protecionismo e livre comércio, e regulação e desregulação. O mercado
voltou a ser a base do cálculo econômico e o principal regulador dos
preços e das demandas produtivas. Mas o Estado, através do
planejamento, retifica os desvios do mercado e o orienta de acordo com
as estratégias da construção econômica e das reformas.
A
estrutura de propriedade mantém o setor público (estatal e coletivo)
como principal. Ao mesmo tempo, garante o funcionamento de empresas
individuais e privadas, nacionais e estrangeiras, assim como mistas. Ao
completar 60 anos, a República Popular da China deve possuir mais de 30
milhões de empresas individuais e privadas, 250 mil empresas
sino-estrangeiras e estrangeiras, 680 mil cooperativas, e cerca de 10
milhões de empresas de propriedade pública (estatais e coletivas).
Estas últimas respondem por mais de 45% do PIB.
As
reformas tinham como meta dobrar o PIB entre 1980 e 1990 e dobrá-lo
novamente entre 1990 e 2000, tendo por base o PIB de 1980. Entre 2000 e
2010 o PIB deve ser dobrado novamente, mas desta vez tendo por base o
PIB de 2000. Quanto à distribuição da renda, ela deveria acompanhar de
perto o crescimento da economia, de tal modo que em 2000 não houvesse
mais nenhum chinês abaixo da linha da pobreza e, em 2010, as camadas
inferiores da população estejam vivendo um padrão médio comparável ao
dos belgas.
Em
1995, a China quadruplicou seu PIB, alcançando em 2000 uma cifra
superior a 1,2 trilhão de dólares em termos de paridade cambial, ou
cerca de 5 trilhões de dólares em termos de paridade de poder de
compra. Enquanto a economia cresceu a uma média de 8% a 9%, durante 20
anos, a renda da população urbana e rural cresceu a uma média de 5% a
6%. Das 250 milhões de pessoas que viviam abaixo da linha da pobreza,
em 1990, restaram menos de 20 milhões na passagem do século. E a meta
de dobrar novamente o PIB até 2010, isto é, quase 2,5 trilhões de
dólares, pela paridade cambial, e cerca de 12 trilhões de dólares, pela
paridade de poder de compra, está sendo alcançada antes do prazo.
No
entanto, como os próprios chineses reconhecem, ainda há um longo
caminho a percorrer. Seu ponto de partida estava historicamente muito
atrasado. A imensidão de sua população dilui qualquer produção bruta,
por mais elevada que seja. E a paz, que tanto necessitam para levar a
bom termo seu programa, não depende apenas deles.
Problemas do século 21
A
China possuí mais de um bilhão e trezentos milhões de habitantes, ou
22% da população do globo. Desta população, 56% estão concentradas nas
zonas rurais, cuja terra arável compreende apenas 7% do planeta.
No
processo de modernização, a pressão sobre a produção agrícola aumentou,
enquanto as periferias das cidades, as novas estradas, avenidas,
fábricas e zonas habitacionais avançaram sobre as terras agrícolas,
reduzindo as áreas de cultivo. Apesar disso, a China deu um salto em
sua produção de grãos, chegando a 510 milhões de toneladas.
Porém,
as tecnologias tradicionais não são mais capazes de fazer com que a
produção agrícola da China cresça a uma taxa mínima de 1% ao ano. Isto
só será possível elevando a produtividade, com o uso da ciência e da
tecnologia, o que está acarretando um crescente excesso de mão-de-obra
agrícola. Para evitar desemprego e êxodo massivos no rumo das cidades,
a República Popular está empenhada, desde 2006, num vasto programa de
modernização das zonas rurais.
Ele
abrange a construção das infra-estruturas educacional, de saúde,
cultural, de transportes, energia e telecomunicações, a universalização
dos sistemas educacionais e de saúde pública, pensões, aposentadorias e
seguro desemprego, e a consolidação do sistema de empresas industriais,
comerciais e de serviços, nos cantões e povoados rurais.
Estas
empresas são responsáveis por mais de 50% do valor da produção rural e
pelo emprego de mais de 130 milhões de trabalhadores.
Apesar
das diferenças ainda existentes entre a renda rural e urbana, a
melhoria geral da renda no país pode ser medida pelas mudanças na
estrutura de consumo. Na estrutura alimentar, diminuiu o consumo de
cereais e cresceu o de carnes, ovos, leites, verduras e frutas. O
consumo de roupas passou dos modelos simples para os variados, ao mesmo
tempo em que no varejo aumentou o consumo de roupas prontas e caiu o de
tecidos. Das “quatro velhas peças” de consumo - bicicleta, relógio,
máquina de costura e rádio - os chineses passaram primeiro para as
“seis novas peças” - televisor, geladeira, lavadora, gravador,
ventilador e máquina fotográfica. E, a partir do final dos anos 1990,
incorporaram o telefone, computador, moradia e turismo.
Nesta
nova Grande Marcha, a China se transformou na principal fábrica do
mundo. Introduziu uma nova configuração produtiva, contribuiu para o
controle mundial da inflação, e jogou papel importante em colocar no
mercado global cerca de 40% da população do planeta. Por outro lado, do
mesmo modo que ritmos lentos de crescimento, ritmos muito rápidos têm
causado instabilidade social. O crescimento médio de cerca de 10%,
entre 1980 e 2008, foi o mais elevado da história chinesa após 1949, e
da história mundial no período de 1980 a 2008. Ele permitiu melhorar o
padrão de vida e tornar mais sólidos os fundamentos econômicos do país,
mas colocou em tensão a infra-estrutura, pressionou os preços, causou
pressões inflacionárias, e criou condições para o surgimento de surtos
de instabilidade política, como o de 1989. E acarretou novos problemas
ambientais, riscos financeiros, corrupção e disparidades regionais e
entre pobres e ricos.
Por
isso, ao completar 60 anos, a República Popular se esforça para adotar
a “construção verde” como centro dos projetos econômicos. Ela tem
fechado empresas e minas poluidoras, obrigado a realização dos estudos
de impacto ambiental, desenvolvido métodos de monitoramento,
conservação e recuperação ambiental, imposto compensações pelo uso de
recursos e por danos causados ao meio ambiente, e quer reduzir o
consumo de energia em 20%, até 2010.
Ela
também segue na política de redistribuição de renda, através dos
aumentos salariais, universalização das aposentadorias, pensões e
seguros-desemprego, elevação do padrão de vida dos 20 milhões que ainda
vivem abaixo da linha da pobreza, garantia dos direitos dos
trabalhadores migrantes, e elevação das taxas pagas pelas classes de
renda mais alta, para estender e baratear os serviços públicos.
Durante
a crise global iniciada em 2008, a China se empenhou em reduzir os
riscos globais, reiterando sua política de coexistência pacífica,
aprofundando as reformas de seu sistema financeiro, diminuindo o
desequilíbrio no comércio internacional do país, através do aumento das
importações, e constituindo fundos financeiros para projetos no
exterior.
Ela
também tem reiterado que persiste na extensão dos direitos
democráticos, reforçando o sistema de congressos populares, e ampliando
os sistemas de cooperação multipartidária, consulta política, e
auto-gestão nos níveis primários da sociedade.
Embora
já seja o segundo país em PIB pela paridade do poder de compra, a
República Popular assegura que a China ainda é um país em
desenvolvimento. Reitera que se encontra na fase primária de seu
socialismo. E que, paralelamente ao desenvolvimento das forças
produtivas, se empenha em construir uma sociedade harmônica, como base
de uma civilização política e culturalmente avançada.
Nessas
condições, em 60 anos de existência, a República Popular da China
apenas parece haver encontrado o caminho para alcançar seus objetivos
de transitar da revolução democrático popular para o socialismo. Seus
êxitos e seus riscos são de igual magnitude. Embora tenha avançado
muito rapidamente no desenvolvimento de suas forças produtivas, sua
contrapartida foi o ressurgimento, na China, de uma classe burguesa
detentora de meios de produção.
Assim,
a experiência histórica da República Popular da China é extremamente
valiosa para demonstrar que não existem modelos de revolução, nem de
construção socialista. E que a construção de uma nova sociedade, a
partir de uma sociedade capitalista atrasada, talvez seja ainda mais
complexa, mesmo após uma revolução, porque não se pode destruir por
decreto uma formação econômica e social que ainda não esgotou todas as
suas possibilidades históricas.
Wladimir Pomar é escritor e analista político