Os novos sacerdotes e Abya Yala
Tal
e qual os “selvagens” povos da mesoamérica, os povos contemporâneos
empreendem guerras de busca de prisioneiros a serem oferecidos aos
deuses. Não há como esconder. Até mesmo nas grandes catástrofes se vê a
boca sangrenta do capital
Desde os anos 70 que das entranhas da América baixa
assoma o que hoje conhecemos como “o novo movimento indígena”. Diz-se
novo apenas porque apresenta outra configuração, uma vez que desde a
invasão, em 1492, as comunidades originárias sempre resistiram à
violência, à morte e à destruição de suas vidas e culturas. E esse
“novo” momento começa quando em boa parte dos países latino-americanos
as ditaduras calavam a voz de estudantes, sindicalistas e lutadores
sociais. Naqueles dias, no final dos anos 60, os povos originários
começaram a se reunir e discutir suas demandas. Pequenos encontros,
outros um pouco mais expressivos e, a cada ano, ia crescendo a
articulação continental. No México, problemas relacionados à questão da
terra levaram povos de várias etnias a realizar um congresso em 1974,
que acabou sendo um marco nesta reorganização. Na Bolívia os aymaras e
quéchuas também se organizavam e realizavam encontros, no Equador,
Guatemala, Colômbia, enfim, em vários pontos do continente se debatiam
e se discutiam os problemas relacionados ao território, aos direitos, à
saúde, educação, etc...
Nos anos 80 esta organização se fortalece, sai do
âmbito da briga por melhorias dentro da ordem, e em alguns países os
indígenas decidem fazer a luta efetiva. Não mais palavras ou pedidos,
mas ações concretas. Foi assim no Equador em 1990, quando os
originários ocuparam igrejas e prédios públicos no centro histórico
exigindo seus direitos. Em 1994, quatro anos depois, a luta explodiu
com os zapatistas e sua voz armada, enfrentando 12 dias de combate
contra o exército mexicano, os aymara na Bolívia com a guerra da água
(2000) e a expulsão de Sanchez de Lozada (2003), os originários do
Equador derrubando presidentes (2005). Hoje, passada a primeira década
do século XXI, é inegável a organização e as conquistas dos povos
originários em toda América Latina. Já foram realizados quatro grandes
encontros intercontinentais, dois países já incorporaram nas suas
Constituições o Estado Plurinacional, que garante aos indígenas o
direito de organizar sua vida segundo seus costumes, e ninguém mais
concebe a vida sem a participação das gentes originárias. Mesmo no
Brasil, onde as lutas indígenas ainda se travam completamente à margem
da grande mídia, cresce a organização e a avançam as conquistas.
O preconceito
Mas, apesar de toda esta luta e das sucessivas conquistas dos povos
originários em toda América Latina, o preconceito e o racismo ainda são
os grandes entraves para que as gentes passem a respeitar as demandas
dos indígenas como legítimas e necessárias. É que ao longo dos séculos
os países do continente foram dominados por uma elite criolla (gente
branca ou mestiça nascida na América), que sequer chegou a cogitar ter
ao seu lado, no comando da vida latino-america, os legítimos donos da
terra de Abya Yala. O próprio Bolívar, quando volta do Haiti e
incorpora as reivindicações negras e indígenas, é rechaçado pelos seus
generais, que acabam por vencê-lo. Enquanto Bolívar agoniza de
tuberculose, derrotado na sua concepção de estado, a nova América
Latina que emerge das lutas de independência fica entregue a esta elite
predadora, que se apropria das terras comunais, que rouba o indígena e
o submete ao que José Carlos Mariategui chamou de “gamonalismo”,
sistema de domínio dos latifundiários no qual não pode haver a redenção
dos povos originários.
O foi justamente Mariategui, nos anos 30 do século XX,
o primeiro a afirmar que as reivindicações dos originários precisavam
sair do cultural e converterem-se em econômicas e políticas. Segundo
ele, a questão indígena deveria ser encarada com uma solução social, ou
seja, o centro não deveria ser racial ou moral, mas sim a propriedade
da terra. Sem resolver isso, nada mudaria. De qualquer forma, a voz do
marxista peruano não foi suficiente para que as elites
latino-americanas mudassem sua maneira de encarar o clamor indígena e,
ao longo dos anos que se seguiram, foi reforçado o preconceito, com a
idéia de que o índio é preguiçoso, sujo, bêbado e com isso, seguiu
aumentando o racismo que se perpetua indelével em toda a sociedade.
É por isso que nas escolas da maioria dos países
latino-americanos as crianças sabem muito mais dos egípcios do que dos
maias, assim como conhecem em profundidade a vida dos povos europeus
enquanto sequer sabem onde vivem os caraíbas, os chibchas, os arauak,
os tupinambás, os guarani. Suas formas de organizar a vida, então, são
absolutamente desconhecidas e o que é falado não foge do folclore ou
das aberrações.
Os sacrifícios humanos
E, ainda assim, desconhecendo, o povo que pensa o mundo (os chamados
intelectuais) insiste em dizer que é impossível transladar as formas de
viver dos originários para o nosso tempo. E mais, ainda há aqueles que
buscam nos costumes mais lúgubres dos antigos os exemplos para
respaldar isso. “Veja os maias. Eram uns sanguinários. Faziam
sacrifícios humanos, assim como também os mexicas, os olmecas,
teotihuacanos, astecas etc... Vamos voltar a sacrificar pessoas a um
deus que exige sangue? É isso que se quer com a volta das culturas
índias?” Este argumento nos faz refletir sobre os costumes antigos e os
de agora. Sim, é verdade. Os maias e os demais povos que habitavam a
mesoamérica realizavam sacrifícios humanos. Seus deuses eram
implacáveis e era por isso que faziam incursões guerreiras. Buscavam
prisioneiros para alimentar os deuses. Isso pode ser visto com bastante
crueza no filme de Mel Gibson, Apokalipto, o qual narra a saga de um
jovem capturado pelos maias e mostra com riqueza de detalhes os rituais
de sacrifício.
Para os maias, assim como para os demais povos da
região, a religião era um contrato entre deuses e homens. Os primeiros
ajudavam no trabalho, davam alimentos e segurança, mas exigiam
pagamento antecipado. Por isso havia o ritual de “abrir a boca”,
chamado assim porque o sangue dos sacrificados era usado para untar a
boca do grande deus. Enquanto entregavam o pagamento aos deuses, os
sacerdotes pediam saúde, filhos, prosperidade, água e temporais para
que a vida florescesse, força para enfrentar os inimigos, folga e
descanso.
Naquela complexa sociedade que inventou o zero no
século III a.C - bem antes dos hindus que só chegaram a ele no século
VIII depois de cristo ou da Europa que só o conheceu na Idade Média -
que cultivava o milho e construía gigantescas pirâmides com degraus,
muito mais espetaculares que as egípcias, quem detinha o poder sobre a
vida e a morte eram os sacerdotes. Os homens comuns não podiam
interpretar a vontade dos deuses, só os sacerdotes eram capazes e por
isso tinham o domínio dos rituais, do ensino e da vida. Eles decidiam
quem vivia ou morria, eles eram os que repassavam as ordens dos deuses
e mesmo os reis eram obrigados a seguir seus conselhos. Então reverbera
nos ouvidos a pergunta: “Vamos querer essa barbárie outra vez?”
Os sacerdotes atuais
Desde a pergunta do amigo intelectual passo em revista
os tempos modernos. Nos livros que se escrevem aos borbotões e que vem,
sobretudo, da Europa, fala-se de uma pós-modernidade, de um tempo de
fins, de fragmentações, de vazios. Conta-se de um tempo anômico, sem
normas. Diz-se que houve uma época em que no mundo ocidental a norma
era revelada, emanava de deus. Depois, com o iluminismo, a norma passa
a ser uma construção humana. É o homem quem é o centro da vida. E hoje,
não há mais normas. Tudo é válido. Existe apenas o fluxo, fluido e
líquido. Mas, uma olhada mais apurada revela que o fluxo, dito sem
forma e sem lei, está sim submetido a uma razão bem específica: é a do
mercado capitalista. Este é o grande deus sanguinário, cuja boca aberta
está borbulhante do sangue das vítimas que, implacavelmente, seguem
sendo oferecidas.
Tal e qual os “selvagens” povos da mesoamérica, os
povos contemporâneos empreendem guerras de busca de prisioneiros a
serem oferecidos aos deuses, no geral travadas com pastas pretas e bem
trajados homens e mulheres, representantes das agências financiadoras
internacionais. Ou mesmo com guerreiros tradicionais como é o caso das
invasões estadunidenses. Nações inteiras são capturadas e submetidas.
Milhões de pessoas são sacrificadas todos os dias nas “bocas abertas”
do capital. Uma zapeada nos programas dominicais da televisão
brasileira e isso salta aos olhos. Não há como esconder. Até mesmo nas
grandes catástrofes se vê a boca sangrenta do capital, quando as gentes
são soterradas por estarem vivendo em áreas de risco, ou por serem
expulsas do centro da cidade, ou por estarem entregues à especulação da
natureza.
Os maias e os demais povos realizavam estes sacrifícios
em momentos rituais, sempre acreditando que o resultado seria o bem de
toda a comunidade. Exatamente como pontificam os novos sacerdotes do
sistema capitalista. É preciso que alguns se sacrifiquem para que a
vida de todos melhore. Primeiro crescer o bolo para depois repartir. Se
a pessoa trabalhar muito, ela chega lá. Não são estes os mantras que a
televisão, sede da mais-valia ideológica, passa todos os dias? Pois,
então, onde está o barbarismo dos maias? Não é exatamente igual ao que
vemos hoje?
Por todo o planeta economistas e políticos vomitam suas
fórmulas sobre crescimento, desenvolvimento, modernidade. Há que
privatizar, há que enxugar, cortar gastos públicos, diminuir o estado.
Há que criminalizar os movimentos sociais, há que prender aqueles que
se opõem a marcha inexorável do capital, há que eliminar terroristas,
hereges, subversivos. Há que invadir países, há que roubar riquezas
naturais, há que destruir todas as resistências. Nas telas de TV estes
novos sacerdotes aparecem como aqueles que são os únicos capazes de
interpretar a vontade dos deuses. Ao povo comum isso está vetado, tal e
qual no tempo dos maias. E se alguém se arvora a querer dizer: “mas não
é assim, pode ser diferente”, lá vem o garrote e o punhal. Elimina-se e
entrega-se à boca aberta do grande Murdoch ( que pode ser o antigo deus
babilônico ou o magnata da mídia).
É por conta disso que talvez seja bom pensar bem e
refletir se os povos originários eram mesmo os bárbaros ou
sanguinários. Eles estavam seguindo sua vida, evoluindo no conhecimento
da natureza e certamente chegariam a avanços se não tivessem sido
invadidos e exterminados. Não sei se seriam melhores ou piores que as
gentes de hoje, não sei se seguiriam realizando sacrifícios humanos ou
sustentando uma casta sacerdotal poderosa. Mas uma coisa me bate a
certeza. Seria diferente. A considerar o respeito que tinham pela
natureza, a sabedoria que carregavam de que o que acontece a terra
acontece também aos filhos da terra, os propósitos comunitários que
sustentavam a vida das civilizações mais avançadas, como a dos incas,
dos aymaras, quéchuas, não tenho dúvidas de que encontrariam uma forma
mais respeitosa de organizar a vida.
Um exemplo disso pode-se observar no povo Shuar, do
Equador, que hoje luta para preservar suas águas, entendendo que elas
são sagradas, ou os Mapuche, que querem preservar as araucárias onde
vivem seus deuses. Também se pode ver nos originários que ocupam o
território brasileiro, de sociedades menos complexas, mas igualmente
respeitosas com a vida que vive. Estas comunidades todas que
conseguiram ao longo dos séculos manterem vivas as memórias coletivas
de sua cultura são as que estão na ponta da luta pela preservação dos
recursos naturais. Elas sabem que o deus desse tempo é um deus de
destruição. Ele não protege o milho, não dá força, não manda águas e
temporais para que a vida floresça. Ao contrário, este ídolo de boca
aberta cria o transgênico, destrói a semente, faz assomar o tsunami,
joga bombas, arrasa tudo onde pisa, desfaz as comunidades.
Abya Yala é o novo
Hoje, a humanidade está colocada diante de um grande
desafio. O modelo de desenvolvimento apresentado como revelação divina
por políticos e economistas está esgotando os recursos e destruindo a
vida. Mudar a maneira de viver no mundo é uma necessidade bioética. Não
há escolhas. As pessoas “comuns”, a quem se lhes diz vedada a
capacidade de interpretar as falas dos deuses precisam saber que isso
não é verdade. Cada ser humano neste mundo sabe onde lhe aperta o calo.
Os que vivem na pobreza, na miséria, na dor, devem saber que isso não é
por conta de um “castigo de deus”. Não. A miséria de milhões só existe
porque ela garante a riqueza de uns muito poucos. Esse é o dogma da
teologia capitalista. Para que um viva, outro tem de morrer.
Mas, por todo o planeta existem culturas, comunidades,
seres, que sabem que há formas outras de organizar a vida, nas quais as
pessoas dividem o que tem e todos podem viver com dignidade. Não há os
muito ricos, nem os muito pobres. Todos cuidam da terra, das riquezas e
distribuem os bens. Isso é possível e real. E, agora, diante das
catástrofes, mudanças climáticas, degelos, furacões, tsunamis, ou é
isso ou é o fim.
Os maias, estes mesmos chamados de sanguinários, eram
extraordinários astrônomos e criaram no seu tempo um intricado
calendário no qual previram uma mudança radical da vida que viriam no
ano de 2012. Claro que não é a bobagem hollywoodiana que andou pelos
cinemas nestes dias de verão. A profecia é clara: a humanidade deve
escolher entre perecer por conta da estúpida exploração dos recursos
naturais, ou viver em harmonia com o universo. Parece uma coisa boba,
conversa de “velhos hippies”, utopias descabeçadas. Mas, os maias
sabiam que o sol era uma entidade viva, conheciam seus segredos, e
amavam a terra. Hoje, observando como o sistema-mundo capitalista
organiza a vida e todas as conseqüências que daí decorrem, talvez
“descabeçado” seja não entender que as coisas precisem mudar. Já basta
de entregar nossa gente à boca aberta do sanguinário deus.
Abya Yala desperta e se agiganta. Os movimentos
originários caminham na direção da preservação da sua cultura e mais,
apresentam novas liras para novas canções. Não querem a volta a um
passado perdido. Querem um futuro de paz, de respeito à natureza, de
cuidado com a mãe-terra, de solidariedade, de cooperação. Avançam na
construção de um outro tipo de estado que garanta o nacional/popular,
mas também o pluricultural. Não querem separação, mas direito de
governar junto. Propõe um passo além, dialeticamente, ao projeto
generoso de Bolívar. Uma pátria grande, na qual as etnias, as culturas,
as comunidades, sejam ouvidas, respeitadas e participem da esfera do
poder. Uma coisa nova, abyayálica, típica do nosso espaço geográfico,
mesclado de tantas culturas.