Há mais de
150 anos, no Manifesto Comunista, Marx explicou que «toda a História da
humanidade foi uma História da luta de classes. (…) patrícios e plebeus,
senhores e servos, opressores e oprimidos (…) sempre se enfrentaram,
mantiveram a luta, umas vezes velada e outras franca e aberta. (…) A
moderna sociedade burguesa (…) substituiu as velhas classes, as
velhas condições de opressão, as velhas formas de luta por outras novas»
Uma luta feroz tem atormentado a Igreja Católica durante os últimos 25
anos, com alguns dos oprimidos sobreviventes de abusos sexuais durante a
sua infância a exigirem, cada vez mais, que se actuasse contra
sacerdotes individuais e, ultimamente, contra a poderosa hierarquia
eclesiástica, incluindo bispos e cardeais que, constantemente,
protegeram os violadores.
Esta exigência de justiça vinda de baixo conseguiu o impensável:
trazer á luz do dia papel do actual papa, Bento XVI, num punível
encobrimento internacional.
O marxismo é uma ciência que explica as relações de classe
subjacentes a factos sociais que parecem obscuros e distantes da luta
imediata dos trabalhadores. A actual controvérsia, por muito que se
esconda por detrás dos paramentos clericais, não deixa de ser uma luta
de classes no interior da Igreja Católica. Trata-se de uma pequena parte
da luta de classes global que aspira á absoluta igualdade de direitos e
de autoridade.
O que antes se aceitava por não haver outro remédio tornou-se hoje
insuportável. Os milhares de vítimas de abusos sexuais que hoje
denunciam casos de pedofilia eram crentes genuínos, filhos da classe
trabalhadora, sem qualquer possibilidade – até agora – de opor
resistência ou confessar às suas próprias famílias os delitos de que
foram vítimas. Eram crianças violadas em hospícios, reformatórios,
escolas para surdos-mudos e deficientes, escolas paroquiais locais e
igrejas.
Este desafio desde baixo contra o secretismo e a repressão é uma
clara ruptura com o passado. O mau-trato sexual permaneceu impune porque
as autoridades religiosas eram impunes. Em muitas escolas paroquiais as
violações eram clandestinas, mas os maus-tratos físicos, psicológicos e
as humilhações eram tão habituais que se tornaram a normalidade.
Logo que as vítimas sobreviventes começaram a falar os sacerdotes
que se colocavam ao seu lado foram silenciados e excluídos do ensino ou
de posições de poder. Mas a hierarquia eclesiástica – um pequeno grupo
que detém de forma absoluta a autoridade religiosa – não conseguiu
silenciar ou deter este movimento.
Praticamente, nenhuma das denúncias surgiu do exterior ou das
autoridades laicas, receosas de ofender uma instituição tão poderosa,
mas todas surgiram de indivíduos católicos sem qualquer poder no
interior da Igreja que recusaram continuar silenciosos. Apresentaram
queixas, fizeram declarações e, por último, fizeram queixas judiciais,
uma após outra.
A hierarquia eclesiástica, empenhada em defender o seu
inquestionável poder, exigiu silêncio absoluto. Ameaçou com a excomunhão
os que apresentassem queixa judicial e exigissem a intervenção das
autoridades civis. Este esforço para manter o controlo absoluto dos
sacerdotes defronta-se com uma luta interna muito mais ampla, que tenta
esclarecer quais são os interesses a que esta poderosa instituição se
devia submeter.
O escândalo internacional que hoje emociona a Igreja Católica inclui
provas irrefutáveis de dezenas de milhares de casos de violações
infantis e maus-tratos sexuais cometidos por milhares de sacerdotes. As
queixas apresentadas aconteceram ao longo de décadas. A luta mais
encarniçada começou nas cidades que até agora albergavam os crentes mais
devotos dos EUA. Daí passou à Irlanda, depois a Itália e, mais tarde a
regiões da Alemanha com fortes populações católicas.
Perturbador, e agora a receber um tratamento quase quotidiano nos media,
é a certeza de que o actual papa, Bento XVI, foi durante décadas
responsável pessoal pela ocultação, encobrimento e sigilo sobre os
depredadores sexuais. As condenações mais enérgicas provêm dos que,
apesar disso, se consideram parte integrante da Igreja Católica.
O teólogo liberal Hans Kung descreveu assim o papel do papa Bento
XVI no auge da ocultação e do silêncio que rodeava as violações: «Não
havia uma só pessoa em toda a Igreja Católica que soubesse de mais casos
de abusos sexuais que ele, visto que tais casos faziam parte do seu
trabalho diário. (…) O que ele não pode fazer é apontar o dedo aos
bispos e dizer-lhes que não fizeram o suficiente. Foi ele quem deu as
instruções na qualidade de Presidente da Congregação para a Doutrina da
Fé e, depois, voltou a dá-las como papa.»
Em 26 de Março de 2010, o editorial do National Catholic Reporter
afirmava o seguinte: «O Santo Padre tem de responder directamente, num
foro credível, às perguntas sobre qual foi a sua responsabilidade como
arcebispo de Munique (1977-1982), como perfeito da Congregação para a
Doutrina da Fé (1982-2005) e como papa (desde 2005 até hoje) pela
inépcia com que tratou a crise dos abusos sexuais do clero.»
Antes de em Abril de 2005 ter sido nomeado para o cargo máximo da
hierarquia católica, o papa Bento XVI era conhecido como o Cardeal
Joseph Ratzinger. Os seus adversários referiam-se a ele como «o pitbull»
e como o «rotweiller de Deus». Ratzinger era então um protegido da
extrema-direita do papa João Paulo II, que o nomeou para que impusesse a
disciplina e a autoridade eclesiástica numa instituição afundada numa
profunda agitação.
Durante 24 anos, Ratzinger presidiu à instituição mais poderosa e
historicamente mais repressiva da Igreja Católica, a Congregação para a
Doutrina da Fé, entidade que durante séculos tinha sido conhecida como o
Santo Ofício da Inquisição, responsável pelo estabelecimento de
tribunais religiosos para a condenação e a tortura de dezenas de
milhares de pessoas acusadas de bruxaria e heresia. A Inquisição deu
lugar a pogroms e expropriações massivas de judeus e muçulmanos. Foi
através deste Ofício no interior da Igreja que o papa João Paulo II
implantou uma moderna Inquisição.
Um vasto encobrimento perfeitamente documentado
A escala da criminosa conspiração internacional de silêncio
destinada a proteger delinquentes sexuais em série e a pôr os interesses
da Igreja acima da segurança e bem-estar das crianças ficou
perfeitamente documentada no ano passado com a forma como se tratou o
caso de abusos sexuais na Irlanda, um país maioritariamente católico.
Depois de anos de petições das vítimas de violações para que a
Igreja tomasse medidas e o governo julgasse os responsáveis e, depois de
uma série de actos censórios nos media irlandeses, o governo
de Dublin encomendou um estudo que demorou nove anos a fazer. Em 20 de
Maio de 2009 a Comissão publicou um relatório de 2.600 páginas.
Este relatório incluía testemunhos de milhares de antigos internos e
de responsáveis por mais de 250 instituições controladas pela Igreja. A
Comissão constatou que quer sacerdotes quer freiras católicas tinham
aterrorizado milhares de meninos e meninas ao longo de décadas e que os
inspectores do governo tinham fracassado na hora de cortar radicalmente
com as tareias, as violações e as humilhações crónicas e diárias. O
relatório qualificou as violações e os abusos sexuais de «endémicos» nas
escolas e nos orfanatos católicos dirigidos pela Igreja da Irlanda (
www.childabusecommission.com/rpt/).
A grandeza dos abusos na Irlanda e a força do movimento que exigia o
seu reconhecimento fizeram com que o papa Bento XVI se visse forçado a
emitir uma débil desculpa, na qual são responsabilizados os bispos
irlandeses. Esta recusa em admitir a menor responsabilidade pelo seu
conhecido procedimento como dirigente – sempre insistiu no silêncio –
encolerizou milhões de católicos sinceros e fervorosos, e enfureceu
ainda mais uma oposição que há décadas está em crescendo no interior da
Igreja Católica.
Em Springfield (Massachusetts), o reverendo James J. Scahill – há
anos critico do encobrimento eclesiástico – respondeu durante um sermão à
frouxa desculpa, qualificando alguns clérigos de «criminosos» e pedindo
a demissão do papa Bento XVI:
«Devemos declarar pessoal e colectivamente que duvidamos muito da
honestidade do papa e daquelas autoridades eclesiásticas que o estão a
defender ou inclusivamente a partilhar responsabilidades em seu nome.
Começa a ser evidente que, durante décadas, se não séculos, os
dirigentes da Igreja ocultaram os abusos sexuais de crianças e menores
para proteger a sua imagem institucional e a imagem do sacerdócio»,
disse Scahill (New York Times, 12 de Abril de 2010).
Scahill acrescentou que tinha começado a falar claro depois dos seus
próprios paroquianos lhe contarem os abusos sexuais que tinham sofrido
durante décadas em Boston e lhe terem pedido que fizesse alguma coisa.
O Cardeal Bernard Law, da arquidiocese de Boston, teve um papel
destacado na protecção de sacerdotes implicados em abusos sexuais de
crianças para não sofressem qualquer castigo – nem religioso nem civil –
transferindo-os sigilosamente para outros lugares. Em 2002, este facto
converteu-se num escândalo nacional quando um juiz de Massachutts
permitiu a divulgação de milhares de páginas de documentos, memorandos e
declarações legais. Estes documentos mostravam uma clara tendência para
a ocultação, protectora dos culpados e marginaladora das vítimas, ao
revelar que, desde 1940, mais de 1.000 crianças tinham sofrido abusos
sexuais na arquidiocese, por parte de mais de 250 sacerdotes e
trabalhadores eclesiásticos. O cardeal Law foi obrigado a resignar de
forma pouco digna e a arquidiocese de Boston foi condenada a desembolsar
como indemnização a 552 vítimas, entre 85 e 100 milhões de dólares.
Esta multimilionária condenação, o aumento de escândalos noutras
cidades e a ampla cobertura mediática que os factos tiveram forçaram os
bispos norte-americanos a publicar uma «Declaração para a protecção de
crianças e jovens», na qual se instituía uma política de tolerância
zero, com expulsão imediata dos sacerdotes implicados mesmo que num só
daqueles actos. Mas a dita declaração não propôs nenhuma medida contra
os bispos que tinham encoberto os delitos.
O então cardeal Ratzinger que estava no Vaticano, recusou-se a dar
andamento a este modesto esforço de limpeza. Em vez disso, exigiu que
todas as acusações de abusos sexuais fossem transferidas para o Ofício
que presidia – a Congregação para a Doutrina da Fé – antes que os padres
fossem expulsos do sacerdócio. Um dos seus primeiros actos como papa
foi promover o cardeal de Boston, Bernard Law, a um lugar de prestígio
no Vaticano.
Numa carta de infausta memória enviada que Ratzinger enviou aos
bispos em 2001 e que tem sido profusamente citada, utilizou a sua
influência para que as alegações de abusos sexuais se mantivessem
secretas sob ameaça de excomunhão. Os sacerdotes acusados de delitos
sexuais e as suas vítimas receberam ordem para «manterem o mais estrito
silêncio» e «guardar silêncio perpétuo».
O padre Tom Doyle, um antigo advogado do Vaticano, denunciou esta
política da cúpula do Vaticano com as seguintes palavras: Trata-se de
uma medida explícita de encobrimento de casos de abusos sexuais infantis
por aprte do clero e de castigo para os que divulguem este tipo de
delito cometido por sacerdotes. Cada vez que se descobriam padres
delinquentes a resposta não era investigar os casos e julgá-los mas
transferi-los para outro sítio.
Negligência ou cumplicidade criminosa?
Qual é a dimensão dos delitos sexuais cometidos contra a juventude? É
a hierarquia eclesiástica culpada por ter ignorado o problema, isto é,
de negligência criminosa, ou de ter recusado tomar medidas quando teve
conhecimento dos delitos?
Um memorando assinado pessoalmente pelo então cardeal Ratzinger,
quando dirigia no Vaticano o poderoso Ofício e depois da centralização
de todos os casos, foi publicado em Abril e levantou um enorme
burburinho. Ratzinger anulou e interrompeu todas as acções que se
puseram contra um padre predador, o reverendo Lawrence C. Murphy.
Murphy foi acusado de abusar sexualmente de mais de 200 rapazes numa
escola para surdos-mudos de Milwaukee, apesar das petições a pedir a
sua expulsão, inclusive do seu bispo. Durante décadas, os antigos
estudantes tinham utilizaram uma linguagem de sinais e juramentos
escritos em reuniões com bispos e funcionários civis, em que pediam que o
padre Murphy fosse acusado e julgado por tais delitos.
Simultaneamente, soube-se em Itália que 67 antigos pupilos de uma
outra escola de surdos-mudos, em Verona, tinham acusado 24 padres e
religiosos leigos de repetidas violações que lhes infligiram desde os
sete anos.
Na Alemanha, mais de 250 casos de abuso sexual ocultado viram a luz
do dia durante os dois últimos meses, inclusive em distritos
directamente supervisionados pelo papa Bento XVI quando era bispo.
A publicidade internacional que rodeou o caso judicial de Boston e a
multimilionária condenação permitiram que muitas outras vítimas
tivessem possibilidade de sair à luz do dia e exigissem justiça. Desde
1950, mais de 4.000 sacerdotes foram acusados nos EUA de abuso de
menores e a Igreja Católica pagou mais de 2.000 milhões de dólares em
indemnizações às vítimas. Em 2007, a arquidiocese de Los Angeles
anunciou que tinha chegado a um acordo por 600 milhões de dólares com
uns 500 queixosos. Seis dioceses viram-se forçados a declarar bancarrota
e muitas outras a vender abundantes bens eclesiásticos para financiar
os acordos.
Muitos destes casos tinham sido descritos detalhadamente por uma
organização denominada Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual por
Sacerdotes (SNAP na sua sigla em inglês). A SNAP é o grupo mais antigo e
numeroso de apoio às vítimas de abuso sexual pelo clero.
Mas as vítimas de abuso não foram apenas crianças. Segundo o St.
Louis Post-Dyspach de 4 de Janeiro de 2003, foi feita uma sondagem
nacional dirigida por investigadores da Universidade de St Louis
financiada por algumas ordens de religiosas católicas. A sondagem
estimou que um «mínimo» de 34.000 freiras católicas, isto é 40% de todas
as freiras católicas dos EUA, tinham sofrido de alguma forma um trauma
sexual.
Vale a pena assinalar que a maioria dos testemunhos, das queixas
judiciais, das averiguações e das revelações de abusos sexuais tiveram
lugar no interior da própria Igreja Católica, e foi feita por antigas
vítimas. Muitos outros católicos – indignados – uniram-se a eles para
exigir a responsabilização de uma hierarquia clerical privilegiada que
vive obcecada pela protecção da sua posição, da sua autoridade e da sua
riqueza, em vez de proteger as crianças.
Na Europa existe uma corrente de opinião – cada vez mais numerosa –
que pretende levar o papa Bento XVI ao Tribunal Penal Internacional
(TPI) acusado do delito de proteger a Igreja e não as suas vítimas.
Geoffrey Robertson, membro do Conselho de Justiça das Nações Unidas e
presidente do Tribunal Especial da Serra Leoa, disse que julga ter
chegado o momento de questionar a imunidade papal.
Num artigo publicado no Guardian de 2 de Abril sob o título
«Sentemos o papa no banco dos réus», Robertson escreveu: «A imunidade
papal não pode continuar. O Vaticano deveria sentir o peso do Direito
Internacional. A pedofilia é um crime contra a humanidade. A anómala
pretensão de que o Vaticano é um Estado – e o papa um chefe de Estado
imune á lei – não resiste à menor análise.»
Naturalmente, vale a pena recordar que o Tribunal Penal
Internacional só apresentou acusações contra quatro países africanos que
estavam debaixo da mira do imperialismo.
O TPI ignorou os crimes de guerra norte-americanos no Iraque e no
Afeganistão, tal como os crimes israelenses contra civis palestinos e
libaneses. Como baluarte que é do imperialismo dos EUA à escala global,
parece pouco provável que o Vaticano tenha que responder perante a
justiça num futuro imediato.
Contra o movimento global pela justiça
Qual a função mais valorizada pelo imperialismo norte-americano
desempenhada pelo Vaticano na sociedade de classes?
Enquanto absolvia, encobria e transferia milhares de padres culpados
de abuso sexual de crianças, o papa Bento XVI aproveitou durante 25
anos o seu cargo de direcção na mais poderosa instituição eclesiástica, a
Congregação para a Doutrina da Fé, com o objectivo de eliminar de
paróquias, escolas e de qualquer posição de poder milhares de
sacerdotes, bispos e pessoas religiosas que, de alguma maneira, tinham
posições progressistas ou defendiam os direitos humanos e a dignidade
dos pobres e oprimidos.
Impediu que os teólogos, docentes, escritores e intelectuais
pudessem escrever, publicar e ensinar em instituições da Igreja. Os
bispos que tentaram utilizar a sua autoridade para promover uma mudança
social foram investigados por deslealdade e forçados a resignar.
Substitui-os o clero politicamente mais reaccionário, desejoso de
preservar a autoridade religiosa e o dogma.
Este foi um esforço da direita mais extrema para sufocar uma
corrente progressista conhecida como a «teologia da libertação», que
procurava alinhar a Igreja com os movimentos de libertação e com as
lutas anticolonistas e revolucionárias que varriam a África, a Ásia e a
América Latina, bem como com o movimento pelos direitos civis nos EUA.
Sacerdotes como o padre Camilo Torres da Colômbia – que escreveu,
dialogou e organizou o seu apostolado na tentativa de unir o catolicismo
e o marxismo revolucionário – foram considerados uma ameaça directa à
exploração capitalista. O padre Camilo Torres uniu-se à luta armada
contra a ditadura lacaia do imperialismo e morreu em combate.
Freiras activistas que dirigiam o Movimento Santuário de ajuda e
salvo-conduto para os emigrantes salvadorenhos que fugiam dos esquadrões
da morte também foram um objectivo a abater, como o foram igualmente
Philip e Tom Berrigan, dois sacerdotes sempre à beira da detenção, que
cumpriram penas de prisão juntamente com um grupo católico oposto à
guerra do Vietname.
Teólogos da libertação como o carismático Leonardo Boff, do Brasil,
sofreram a proibição eclesiástica de fazer declarações ou escrever.
Sacerdotes que disseram servir os pobres, como o padre Jean-Bertrand
Aristide, do Haiti, foram expulsos da sua ordem religiosa e forçados a
demitirem-se pelo crime de «glorificação da luta de classes». Samuel
Ruiz, o bispo de Chiapas (México), recebeu ordem para se abster de fazer
«interpretações marxistas».
Foi uma caça às bruxas e uma purga que tomou como alvo os activistas
contra o racismo e a favor da justiça social. No entanto, o
reaccionário bispo dissidente Richard Williamson, que negou publicamente
o Holocausto, foi calorosamente readmitido na Igreja.
Perante uma oposição cada vez maior em todos os estratos, esta
poderosa instituição que durante séculos protegeu as propriedades e os
privilégios das classes dirigentes ocidentais, utilizou com afinco
crescente as suas forças mais fanaticamente reaccionárias para combater
os que procuravam a mudança, a abertura, a igualdade e a atenção para as
necessidades dos pobres e dos oprimidos.
Sob a liderança do papa João Paulo II e depois do papa Bento XVI, a
Igreja Católica foi um aliado incondicional do imperialismo dos EUA,
opôs-se á construção socialista na Europa de Leste. Como contrapartida,
os poderosos media norte-americanos promoveram activamente e
ofereceram uma cobertura favorável à Igreja Católica, ao mesmo tempo que
diabolizavam os muçulmanos e outras religiões de povos oprimidos.
Em 2006, o papa Bento XVI apoiou a propaganda antimuçulmana que
Washington tinha exacerbado conscientemente para justificar a guerra e a
ocupação do Iraque e do Afeganistão. Num importante discurso papal,
Bento XVI citou um imperador bizantino do século XIV que tinha acusado o
profeta Maomé de apenas ter trazido ao mundo «coisas malignas e
desumanas».
A aliança com o imperialismo norte-americano forçou a Igreja
Católica a reviver os mais reaccionários excessos do seu próprio e
obscuro passado. Membros de grupos com ligações a esquadrões da morte e
ditaduras militares da América Latina e com o fascismo e a
extrema-direita da Europa – como a hermética seita Opus Dei e os
Legionários de Cristo – foram promovidos às mais altas posições no
Vaticano e no mundo.
Dois clérigos fascistas, Josemaria Escrivá – que se colocou ao lado
de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial e organizou bandos fascistas
para caçar comunistas e sindicalistas revolucionários na Espanha de
Franco – e o cardeal croata Aloysius Stepinac – que ajudou a criar
campos de exterminação de judeus sérvios e ciganos – foram canonizados
como santos.
O facto de proteger e esconder sacerdotes que tinham abusado de
crianças ao mesmo tempo que obrigava à demissão as forças religiosas que
defendiam os direitos dos oprimidos e se aliavam com os seus movimentos
de libertação não é contraditório. A indulgência para com marginais e
criminosos e a dura repressão de progressistas são as duas caras de uma
mesma política de classe que consiste em defender a autoridade de uma
hierarquia estabelecida, uma política que a Igreja vem assumindo em cada
assunto social.
Uma visão repressora da sexualidade
Desde o esclavagismo em Roma à sociedade feudal europeia e, depois,
como instrumento fundamental da conquista imperial, a Igreja Católica é
uma instituição religiosa arreigada na sociedade de classes e no
patriarcado. Esta herança patriarcal constitui a base das suas posições
repressoras de todas as formas de expressão sexual humana. Quer se trate
de homossexuais ou heterossexuais, de casados ou solteiros, a Igreja
Católica arroga-se o direito de legislar todas as formas de expressão
sexual da sociedade.
Ao mesmo tempo que se recusava qualquer acção contra depredadores
sexuais porque isso punha em perigo a autoridade e a santidade do
sacerdócio, Ratzinger era o principal executor de arcaicas doutrinas
religiosas sobre a sexualidade e sobre a subordinação da mulher na
Igreja e na sociedade. Não permitiu a menor liberalização em questões de
controlo da natalidade, aborto, divórcio ou reconhecimento da
homossexualidade. No interior da Igreja estas regras impuseram-se
através do prisma do pecado e da culpa. Aos católicos homossexuais, aos
casados depois de um divórcio, aos que praticavam o controlo da
natalidade ou às mulheres que tinham abortado recusavam-se os
sacramentos e eram excluídos da Igreja ou excomungados.
O peso das instituições eclesiásticas com mais recursos económicos e
influência utilizava-se de forma agressiva na sociedade civil para
oposição à liberalização das leis do divórcio, e ao direito da mulher ao
controlo da natalidade e ao aborto. A Igreja Católica organizava e
financiava campanhas políticas contra o matrimónio homossexual e a
adopção de crianças por parte de casais homossexuais. E enquanto
proclamava o seu dever religioso de proteger os «nascituros», recusava a
protecção às crianças que estavam sob o seu controlo.
À medida que ia crescendo a onda de protestos pelos seus ataques
contra as crianças que supostamente deviam cuidar, este agrupamento
reaccionário tentava converter a sua criminosa ocultação dos crimes numa
luta contra os homossexuais, ao ligar a pedofilia – isto é, o abuso
sexual da infância – com a prática homossexual, de mútuo acordo, entre
os adultos.
No passado dia 14 de Abril, o cardeal Tarcísio Bernone, secretário
de estado do Vaticano, atribuiu a pedofilia à homossexualidade, que
tachou de «patologia». Numa conhecida carta aos bispos escrita em 1986, o
papa Bento XVI descreveu a homossexualidade como um «mal moral
intrínseco». Foi mesmo muito mais longe ao justificar e inclusive
incentivar violentos ataques contra os homossexuais ao afirmar que «nem a
Igreja nem a sociedade deveriam surpreender-se se aumentarem as
reacções irracionais e violentas» quando os homossexuais exigem direitos
civis.
Estes crimes contra todos os movimentos de povos oprimidos deverão
ser incluídos na cólera que hoje desperta a hierarquia eclesiástica.
Os anos de repressão, de caça às bruxas e intolerância organizada
fizeram com que a hierarquia católica perca cada vez mais apoios. Está
mais desnorteada que a sua própria congregação e totalmente alheada dos
valores da sociedade.
Por muito esforço que faça, a Igreja Católica já não poderá
recuperar o poder absoluto que teve há 500 ou há 100 anos, quando padres
e bispos não tinham que dar contas dos crimes contra mulheres,
escravos, servos, camponeses ou trabalhadores iletrados.
As desculpas cuidadosamente redigidas de forma a não assumir
qualquer responsabilidade, e os actos de relações públicas com umas
quantas e seleccionadas vítimas de abusos sexuais – onde tudo se
desenrola de acordo com um guião previamente preparado – não vão
resolver a crise que enfrenta a reaccionária cúpula da Igreja Católica.
* Sara Flounders é co-directora do Centro de Acção Internacional
de Nova York e estudou durante 14 anos em escolas católicas nos Estados
Unidos.
Este texto foi publicado no jornal norte-americano
Worker’s World,
Tradução de José Paulo Gascão