Caros leitores, ao ler o artigo em pauta fiquei muito preocupada pela veiculação de algumas informações equivocadas, conceitos errôneos e falsos pressupostos.
Devo antes me apresentar: sou médica, psiquiatra da Infância e
Adolescência, com foco de estudo e trabalho em TDAH e Bipolaridade há
aproximadamente 20 anos. Mas como sou formada há 32, antes tive a
oportunidade de me dedicar ao estudo de muitas das desordens que afetam a
Infância e Adolescência.
Ao citar um livro de um outro jornalista, me pareceu que havia uma
insinuação de que os transtornos mentais e emocionais estariam
aumentando em quantidade e diversidade única e exclusivamente para a
alegria e lucro da industria farmacêutica. Antes de qualquer dúvida, não
recebo nada da tal indústria e nem tenho qualquer ligação com isso. Sei
das artimanhas que elas engendram, não sou ingênua, e do seu apetite
pelos lucros.
Mas a Cesar o que é de César.
Essa descoberta não é só do ilustre jornalista. Há muito as
pesquisas sérias já vinham detectando esse fenômeno. Mas vejamos por
outros ângulos. Nesses 50 anos, o conhecimento científico cresceu como
nunca, os meios de detecção de fenômenos, de testagem e confirmação de
hipóteses, de troca de conhecimentos ao redor do mundo, foram ímpares na
história do conhecimento humano. Em consequência a descoberta de novos
transtornos, a melhor compreensão de outros e a melhora na capacidade
diagnóstica cresceram proporcionalmente. Natural, não?
Nesses mesmos 50 anos, a mudança de parâmetros sociais e culturais, a
mudança de referenciais econômicos, culturais, sociais e emocionais ao
redor do mundo foi também ímpar na história da humanidade.
Nunca houve mudanças tão grandes e profundas em uma extensão tão
ampla de países e culturas como nesses últimos 50 anos. E isso provocou e
provoca alterações na forma de ver, sentir, reagir e responder às
situações por parte das pessoas, levando também a desequilíbrios antes
insuspeitos. Natural, não?
Com relação à pesquisa da Dra. Andreasen quanto à diminuição do lobo
frontal por culpa do uso de medicação por longo período, é interessante
saber se o mesmo número de pacientes psicóticos (que já é uma população
heterogênea ), foi acompanhado pelos mesmos cinco anos, sem uso de qualquer medicação,
para então podermos fazer essa afirmação de que foi o uso da medicação
que provocou a diminuição da massa encefálica com prejuízo das funções
cognitivas.
Outra questão que merece toda a nossa atenção é a citação de frases
de pesquisadores fora dos seus trabalhos. Uma frase fora do seu contexto
pode induzir ao que se queira.
Logo em seguida o jornalista faz afirmações no mínimo curiosas: que
os transtornos mentais seriam mais frequentes justamente em quem se
trata. Para que fosse minimamente correta, seria preciso ter o mesmo
número de pacientes com os mesmos transtornos e as mesmas condições
gerais e que não fizessem uso de qualquer medicação para que se pudesse
fazer tal comparação. Não sei se o jornalista tem essa pesquisa e a que
conclusões chegou.
E as crise são mais freqüentes em quem se trata ou quem não se trata
não tem ninguém que cuide dele e logo não saberemos quantas crises teve e
sequer se sobreviveu?
Outra afirmação curiosa é que a depressão seria um desequilíbrio
químico do cérebro, sem qualquer comprovação, seria antes um “lugar
comum”. Sugiro que o prezado jornalista procure se inteirar um pouco
mais das pesquisas, que já não são nem tão recentes.
Seria também interessante saber o que ele chama de evidências
indiretas e que evidencias diretas supõe que tenhamos de transtornos
físicos e mentais.
Outro equivoco grave é supor que o TDAH é uma “nova síndrome”. Em
1902, o Dr. George Still, pediatra inglês, membro do Royal College
apresentou em um encontro científico seus estudos sobre um grupo de
crianças com os mesmos sinais e sintomas que caracterizam o TDAH, tipo
misto. Ele estudou esse grupo por vários anos, antes de apresentar seu
trabalho de pesquisa e antes dele temos descrições na literatura
descrevendo exatamente o quadro que encontramos hoje.
Existe um poema alemão do século 19 descrevendo as aventuras de um
menino inquieto com o mesmo comportamento que vemos atualmente nos
portadores. Acho que a indústria farmacêutica ainda não era tão
presente. Concordo inteiramente que a sociedade e a cultura americanas
tem esse imediatismo, muitas vezes errôneo. Mas confundir as
características de uma sociedade com a existência ou não de um
transtorno mental, me parece, no mínimo, falta de informação correta.
Outra incorreção preocupante é afirmar que o uso da medicação altera a
química do cérebro “para sempre” e “pior, sem saber exatamente o que
está sendo alterado!”.
A química não é alterada para sempre, até porque se assim fosse não
seria preciso continuar o uso da medicação para se continuar a ter os
benefícios que ela traz. O que a medicação propicia é a correção da
falta de neurotransmissores, que não estão na quantidade necessária onde
seria de se esperar. Uma informação que está disponível em qualquer
texto científico sério sobre o assunto. E as consequências sobre o que
acontecerá na vida daquela criança após anos de uso podem ser
acompanhadas através da entrevista aos portadores que se tratam há anos e
que tem suas vidas dramaticamente melhoradas pelo tratamento.
Seria interessante, quando não imprescindível, ouvir os principais interessados nessa questão: os portadores e seus familiares!
Outro equívoco primário é associar o uso da medicação apenas e tão
somente à atividade escolar. Ou à calma e obediência doméstica. Os que
defendem essas justificativas não sabem qual a ação da medicação e não
sabem do que se trata o TDAH. Não basta se dizer “especialista”, é
preciso conhecer realmente o que é o transtorno, que áreas do
comportamento afeta e quais suas reais consequências na vida do
portador. E de suas famílias.
Se o jornalista autor do livro em pauta afirma que os psiquiatras
não sabem dizer o futuro dos pacientes tratados, talvez não tenha ouvido
um número de profissionais suficiente ou tenha escolhido justamente os
que não sabiam. Preconceito é uma atitude absolutamente democrática.
Acomete a qualquer um.
A taquicardia que ele descreve e, sutilmente, sugere ocorrer em todas
as crianças, é um efeito colateral possível sim, mas não tão comum como
ele quer fazer crer. E todos os profissionais de saúde sérios sabem que
toda e qualquer medicação tem efeitos colaterais. Se não tem efeito
colateral, não tem efeito terapêutico. A frase com que encerra o
parágrafo é maldosa e mentirosa. Mas deve causar um grande efeito nas
pessoas leigas e ajudar a vender bem o produto.
A confusão a que o jornalista induz sobre a proximidade etiológica
entre TDAH e Bipolaridade é, no mínimo, suspeita. A intenção clara é
fazer o leitor acreditar que o uso da medicação para o tratamento do
TDAH irá “promover” o surgimento de outro transtorno, mais grave.
Consequentemente, os médicos que prescrevem a medicação para tratar o
TDAH são criminosos, por provocar o surgimento de outro transtorno
mental em quem, afinal, não tinha nada.
O Dr. Joseph Biederman e o grupo do Massachussetts Hospital fazem
parte de um dos grupos de pesquisa mais ativos no estudo do TDAH e o Dr.
Russell Barkley é um dos mais renomados estudiosos do assunto.
Curiosamente o jornalista cita pesquisas muito antigas ( 1973, 1978,
1996, 1997, 2001, 2002, etc.). Pesquisa com mais de cinco anos pode ser
considerada antiga, dada a velocidade com que as descobertas em qualquer
campo das ciências ( exatas, biológicas, e outras ) se dão. As
pesquisas antigas trazem dados que, muito frequentemente, já foram
revistos e muitas vezes modificados.
Outra questão grave é a citação de frases fora de seus contextos.
Elas se prestam às mais variadas interpretações. Principalmente quando
já se tem um caminho que queremos que o leitor siga.
Quanto ao desempenho acadêmico, a capacidade de aprendizagem, os
efeitos positivos nas funções cognitivas (funções executivas ) e a
melhora no relacionamento social, pessoal e emocional, seria mais
honesto perguntar aos portadores e suas famílias, do que citar obscuros
profissionais em pesquisas das quais pouco se sabe.
Entretanto concordo inteiramente com a jornalista quando diz que os
professores não tem a condição de fazer diagnósticos, nem de apontar
tratamentos para os problemas que ocorrem na escola e em sala de aula.
Para isso existem os médicos, neurologistas e psiquiatras da Infância e
Adolescência, que se dedicam a estudar e pesquisar o transtorno.
É claro que inúmeros problemas podem causar agitação, desatenção e
atitude impulsivas em uma criança ou adolescente. É óbvio que não se
pode negar o efeito de problemas familiares, emocionais, pessoais,
econômicos, na vida e no comportamento das crianças. Assim como métodos
educacionais por vezes equivocados ou professores mal preparados também
causam reações semelhantes. Mas a escola pode desempenhar uma parceria
preciosa.
E é justamente porque as “tias Belas” e “tias Rosas” tinham e tem
suas salas cheias com 30 ou mais alunos, e tem tantos anos de prática no
trato com crianças, que podem e geralmente sabem quando um
comportamento não é “só coisa de criança”. A escola pode perceber quando
a alguma coisa diferente acontecendo com a criança e pode sim alertar
os pais ou responsáveis e sugerir a procura a uma ajuda, uma orientação
até uma avaliação. Mas realmente “os professores, por melhores que
sejam, não estão capacitados para sugerir a necessidade de algum
tratamento psiquiátrico.”
Mas isso não quer dizer que o TDAH não exista. Ou que seja uma
invenção de industrias farmacêuticas gananciosas, professores
preguiçosos ou pais estressados.
O TDAH é um transtorno mental real, com consequências sérias e como tal deve ser encarado.
Seria interessante ouvir as associações de pais e portadores, nos
Estados Unidos o CHADD e os ADD, no Brasil a ABDA; na maioria dos países
do mundo existem associações semelhantes.
PS do Viomundo: O jornalista a que se refere a dra. Katia aparentemente é Robert Whitaker, autor de Anatomy of an Epidemic, citado por Heloisa Villela aqui. Ele também é autor de Mad in America.
O fato de que nos propomos a debater questões espinhosas como as
doenças psiquiátricas não significa que os pacientes ou pais de
pacientes devam abandonar as recomendações médicas.