Não é e nunca foi um revolucionário que
quer fazer a História dar saltos, mas um visionário que quer empurrá-la
aos pouco. É a personificação da síntese entre contrários na visão
dialética: é a negação da negação, a continuação da política por meio da
política. Não o confundam, porém, com o estereótipo do político mineiro
tradicional: o político mineiro é um protótipo do príncipe de
Lampeduza, que quer mudar para que as coisas continuem como estão. Lula
quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de fazer composição, arranca
compromissos aos poucos, sem ruptura. O artigo é de J. Carlos de Assis.
O que há de comum entre a dialética marxista
e o princípio milenar de Lao Tsé segundo o qual não se deve remar
contra a corrente, mas usar sua força a seu favor? Tudo. É
essencialmente o mesmo princípio. O que me impediu durante décadas de
ver isso foi uma leitura superficial de Marx. Ou melhor, uma leitura de
Marx que não considerava os fundamentos mais profundos de sua própria
dialética no plano filosófico, ainda hoje insuperável, pela razão de que
ela está recoberta por uma dialética política impressionista que se
revelou idealista e fracassada.
Nenhum político brasileiro, e
poucos no mundo, se revelaram melhores discípulos de Lao Tsé do que Luís
Inácio Lula da Silva. Mas Lula é também um produto genuíno da dialética
marxista. Para Marx, a história avança como resultado de conflitos
entre forças materiais polares (para seu inspirador, Hegel, eram as
forças de idéias polares), sendo uma conservadora, outra progressista, e
de cujo embate sempre resulta a superação de ambas num nível superior.
Em seu aspecto formal, trata-se da interação real entre tese, antítese e
síntese.
Superação não significa domínio da antítese sobre a
tese. Significa a interação de ambas numa síntese que contém elementos
próprios de cada uma delas, porém numa direção nova. A grande novidade
da dialética marxista, em relação a Hegel, é que ela coloca o conflito
histórico recorrente no nível das forças materiais, e não no campo
exclusivo das idéias. Isso não chega a ser contraditório em relação à
dialética política marxista, a qual, confiada no conhecimento humano dos
determinantes de sua própria história, entendeu possível ser eliminado o
conflito de classes pelo domínio absoluto de uma classe, os
trabalhadores, sobre a outra, os burgueses.
A razão dessa
extrapolação política é em si mesma simples: se a dialética formal exige
que, no conflito entre tese e antítese, a síntese que o supere guarde
elementos de ambos, o que se guarda do capitalismo na construção do
comunismo pela liquidação da burguesia não são elementos das complexas
relações sociais por esta criada, mas sua característica material
fundamental: o espetacular desenvolvimento das forças produtivas
realizado pelo capitalismo, exaltado inclusive pelo Manifesto Comunista
de 48. Este seria herdado e apropriado pelos comunistas. Concilia-se
assim dialética formal com dialética política, na medida em que esta
rejeita a superação do conflito mediante interação das classes em favor
da idéia de eliminação, no comunismo, não só da classe burguesa, mas de
todas as classes.
Marx não chegou a ser muito preciso a respeito
do que pensava ser a marcha da história depois do comunismo. Em geral,
confiava num processo de emulação (não de competição) entre
trabalhadores, estes em condições sociais iguais, para produzir o
progresso tecnológico numa sociedade sem classes. Idealismo puro. Num
certo sentido seria o fim da História tal como a conhecemos, ou seja,
como um processo dialético, ou de conflitos. Mais de um século mais
tarde, um pensador norte-americano, Francis Fukuyama, também achou que
estávamos ao ponto de chegar ao fim da História, porém mediante um
processo dialeticamente inverso: pelo predomínio absoluto do
neoliberalismo e a eliminação do reformismo social tradicionalmente
perseguido pelas esquerdas.
Vimos ao longo do século XX e neste
início do XXI que os processos históricos são bem mais complexos, não
obstante a validade formal da dialética marxista e hegeliana: a limitada
burguesia capitalista e a ampla classe dominante feudal, numa área
remota e pouco desenvolvida do mundo, a Rússia, foi liquidada por um
golpe de um punhado de trabalhadores e uma multidão de camponeses
liderados por intelectuais, mas disso não resultou o fim das classes.
Resultou, sim, na lenta criação de uma nomenclatura privilegiada em face
de massas subjugadas, trucidadas e amordaçadas, não obstante algum
progresso material inicial.
Na China, outra área remota de
camponeses, a revolução comunista triunfante só se estabilizou e colocou
o país na trilha do desenvolvimento após a consolidação de uma elite
dominante tecnocrática que tem características mais próximas do antigo
mandarinato do que do mundo burguês ocidental. Nesses dois grandes
países, a tese não era o capitalismo, mas algo próximo do feudalismo; a
antítese, depois do interregno caótico comunista, está sendo o próprio
capitalismo liberal importado, embora com elementos sociais. A síntese,
não revolucionária, está em processo. É como se a história tivesse feito
um desvio geográfico, o equivalente de um epiciclo planetário no
sistema cosmológico de Ptolomeu. Na era nuclear, a guerra, anteriormente
o fato supremo da Geopolítica, já não pode ser, como havia afirmado
Clausewitz, a continuação da política por outros meios: o adversário não
pode ser destruído sem uma simultânea autodestruição, mas, sim,
absorvido num processo de negociação e de composição sem derrotados
definitivos.
O que aconteceu ao longo desse período no Ocidente,
berço da dialética, do capitalismo, do comunismo e da Geopolítica de
Clausewitz? Aconteceu o curso da dialética real, traçando um rumo da
história que se revelaria também o mais próximo do princípio de Lao Tsé:
à sombra do conflito de idéias e de interesses entre capitalismo
liberal e socialismo real, debaixo do medo do comunismo soviético e dos
comunistas internos, um grupo de nações européias, liderado pelos
nórdicos, promoveu a síntese social democrata, com elementos
aproveitados dos dois sistemas em conflito, porém superando-os. De um
lado, o respeito à propriedade privada e o prêmio pelo esforço, pela
inovação e pela competência; de outro, os programas sociais promovidos
pelo Estado a partir de uma pressão crescente por igualdade de
oportunidades sobre a renda nacional, porém de caráter não
revolucionário, através da expansão dos orçamentos públicos pela força
da cidadania ampliada.
O conflito geopolítico entre as potências
hegemônicas antagônicas, Estados Unidos e União Soviética, à sombra do
terror nuclear, dominou a segunda metade do Século XX e de certa forma
obscureceu as nuances do modelo social democrata europeu na sua fase de
construção e de consolidação. É da natureza de qualquer conflito
político a radicalização. Acontece que, na era nuclear, a radicalização
política tinha e tem limites: os falcões norte-americanos não podiam
colocar em prática seus propósitos de levar a União Soviética à rendição
por meios militares, assim como permaneceu como letra morta o artigo do
programa do PCUS de destruir o capitalismo e o imperialismo
(norte-americano). Entretanto, uma retórica estridente num plano
impraticável não deixa de produzir resultados mobilizadores na base.
No plano da ideologia, da propaganda e da imprensa engajada do pólo
norte-americano, toda pessoa com preocupações sociais era taxada de
comunista; com isso, nos Estados Unidos, tendo por epifenômeno a caça às
bruxas do Senador McCarthy nos anos 50, o progresso social a partir do
Estado seria lento. Mais do que isso, sob a vasta área de influência
norte-americana do lado ocidental, se era possível a consolidação da
social democracia no norte da Europa, tornou-se bem mais difícil
importar esse modelo pelos países atrasados ou, como se diz hoje, em
desenvolvimento. Uma das razões, talvez entre as principais, era de
natureza contraditória, e inequivocamente ideológica: os comunistas não
queriam reformas, queriam revoluções. Nisso, acabavam como aliados
efetivos dos conservadores que também não queriam reformas.
A
Europa teve mais sorte. Dois marxistas geniais, Eduard Bernstein e Karl
Kautsky, se deram conta no começo do século XX de que entre a classe
burguesa e a classe operária o movimento real da história, num curso bem
diferente do previsto por Marx, estava produzindo relações sociais
complexas na forma de classes médias cada vez mais amplas, com
interesses próprios diferenciados das outras duas. Foram acusados de
renegados e expurgados do marxismo oficial. Não obstante, foram eles que
abriram as portas para o reconhecimento de uma síntese social democrata
no plano teórico. Foi graças a ideólogos como eles que a pequena Suécia
não caiu na armadilha da luta ideológica radical, fundando efetivamente
a social democracia ainda nos anos 20.
Nós não tivemos a mesma
sorte. O máximo de acomodação que nossos ideólogos de esquerda
conseguiram produzir no espaço entre os dois pólos ideológicos foi o
conceito de revolução nacional burguesa, num momento em que o
capitalismo de fora para dentro já se estava tornando internacional e o
capitalismo de dentro para fora conquistava boas oportunidades
associando-se com o externo, ambos contribuindo para expandir os limites
das incipientes classes médias. Fernando Henrique Cardoso elaborou o
conceito com um trejeito de neutralidade acadêmica, expurgando-o do
apelo revolucionário. Sua teoria da dependência é a teoria do
desenvolvimento capitalista subordinado, por cima das relações sociais
concretas internas, o que tentou levar à prática em sua Presidência.
Certamente foi mais realista que os ideólogos revolucionários
comunistas. Mas não correspondeu ao Brasil real, ou às forças sociais
reais que prevalecem no Brasil desde os anos 90.
O quadro mais
complexo do Brasil contemporâneo está retratado na Constituição original
de 88. Foi essa Constituição, renegada inicialmente pelos parlamentares
do PT e colocada sob suspeita pelos conservadores, que gerou Lula,
sendo que Lula esteve no centro dos acontecimentos sociais e políticos
que geraram a abertura política na ditadura, e a própria Constituinte de
que seria uma consequência. Isso é dialética no mundo real, não no
plano das idéias. O sentido mais profundo da Constituição é que ela
refletia, ou aparentava refletir, uma força política que correspondia a
uma efetiva democracia de cidadania ampliada. O fato político mais
decisivo rumo à ampliação da cidadania foram as históricas greves de
1978, 79 e 80, em confronto direto com as restrições do governo
autoritário. Lula foi o líder inconteste dos trabalhadores organizados
nessa greve, e a aura do sucesso lhe abriu o caminho para que,
transcendendo o sindicalismo, acabasse sendo o grande líder das massas
indiferenciadas que acabou sendo: os pobres eternamente relegados a
segundo plano pelo orçamento público no Brasil. Esses pobres, inclusive
analfabetos, viram reconhecida sua cidadania na Constituição de 88, além
de amplos direitos sociais. Os conservadores só tiveram tempo de
espantar-se diante do novo quadro político, e preparar uma
contra-ofensiva, através da recorrente pregação posterior de reformas
liberais.
No início Lula foi celebrado como um herói contra a
ditadura. Como boa parte das classes médias estava contra a ditadura,
seja por razões ideológicas, seja por sentimentos democráticos genuínos,
é possível que ele no início tenha tido relativamente mais apoio nas
classes médias pelo que parecia ser, e menos apoio das classes
subalternas pelo que ainda não era. Isso se reflete nas várias eleições
presidenciais que disputou e perdeu, antes da vitória em 2002. O partido
que construiu era um curioso ajuntamento de sindicalistas, intelectuais
e católicos progressistas, com um poder de atração considerável sobre a
juventude, dada a inclinação natural desta para uma espécie de
veneração romântica da classe trabalhadora (o que, em outro tempo, era
um grande fator de recrutamento de quadros pelos PCs).
Sabemos
que a Constituição de 88 não foi plenamente aplicada. Aliás, em várias
partes e em momentos posteriores ela foi de fato estuprada, desde o
Governo Collor ao Governo Fernando Henrique. Qual a razão disso, à luz
da dialética? A razão é que os avanços nela inscritos não correspondiam a
uma expressão genuína do jogo de poder entre forças sociais reais, mas a
uma concessão romântica de forças políticas progressistas, que
detiveram por um momento o poder parlamentar, mas não o poder real. Este
estava nas mãos dos conservadores que iniciaram o movimento
anti-progressista ainda com o Centrão e iriam aprofundá-lo com o
movimento de desestatização, privatização e corte de direitos sociais
nos anos posteriores.
Estes foram anos em que o Brasil,
tradicionalmente sujeito à influência de ideologias externas, sucumbiu à
avalanche neoliberal em progresso no mundo. Já antes da desarticulação
da União Soviética o socialismo real se desmoralizava mundialmente como
conseqüência da falta de liberdade individual e de fracassos no plano
material, desde o atraso tecnológico a ondas de desastres agrícolas.
Depois da desarticulação, comunistas brasileiros e simpatizantes do
socialismo viram-se sem referência política. Não era uma característica
exclusiva nossa. Os tradicionais partidos de esquerda europeus, e o
próprio Partido Democrata norte-americano, também sucumbiram. Não
estranha que Fukuyama tenha, nesse contexto, vislumbrado o fim da
História.
O Governo do intelectual Fernando Henrique foi o
reflexo medíocre desse processo: passará à História como um apêndice
irrelevante do neoliberalismo europeu e norte-americano. Foi a crise
financeira de fins dos anos 90, coroando anos seguidos de virtual
estagnação econômica, que apontou a fragilidade do modelo neoliberal
adaptado a condições brasileiras. O relaxamento das certezas políticas
em torno dele, que abalou parte das próprias classes dominantes, abriu
espaço para que emergissem demandas de baixo para cima com potencial de
influir no processo político. Lula ocupou esse espaço, porém com uma
extraordinária habilidade instintiva para construir uma alternativa
entre radicalismos de esquerda e de direita.
Poderia ter sido
feito de outra forma? O início do primeiro Governo Lula foi
decepcionante para a maioria dos progressistas, inclusive para mim. De
saída, ele trouxe para o núcleo central da política econômica um
presidente do Banco Central extraído do próprio sistema neoliberal.
Acrescentou-se a isso, pela mão de um Ministro da Fazenda convertido à
ortodoxia econômica, um compromisso explícito com uma política fiscal
restritiva, igualmente a pleno gosto dos neoliberais. Em face de uma
taxa de desemprego alarmante, esses movimentos na política econômica
poderiam ser justificadamente considerados concessões excessivas à
direita e uma traição à maioria do povo que o elegeu. Por cima de tudo, a
política social oscilava num plano ainda indefinido.
Em
contrapartida, o quadro herdado do Governo anterior era, por sua vez, de
extrema complexidade. A despeito de uma taxa de juros básica elevada, a
inflação tinha disparado. As reservas cambiais minguavam. Uma
especulação desenfreada havia provocado uma explosão da taxa de câmbio.
As expectativas empresariais eram sombrias em relação às iniciativas do
primeiro partido de esquerda que chegava ao poder no Brasil. Diante
disso, a presença de José Alencar, um grande empresário, no cargo de
Vice Presidente, era um hábil expediente político, porém não
necessariamente efetivo (acabou sendo).
Então aconteceu o
imprevisível: os ventos internacionais começaram a soprar a favor. O
boom da economia mundial e sobretudo da China puxou para níveis até
então inimagináveis as quantidades exportadas e os preços das
commodities vendidas pelo Brasil, possibilitando o início de um processo
de rápida acumulação de reservas externas; a taxa de câmbio tinha
atingido níveis tão altos (quase R$ 4,00) que, mesmo com sua progressiva
redução por força do aumento da taxa de juros, subiram também as
exportações de manufaturados, em face do ambiente externo igualmente
favorável; por efeito da melhora do quadro externo, o mercado interno
começou a reagir, inclusive com moderada recuperação do emprego, ao
ponto de que, em 2004, o Banco Central se sentiu no direito de dar uma
travada na economia para supostamente combater pressões inflacionárias. O
resto é conhecido: recuo em 2005 e nova retomada, desta vez mais
consistente, a partir de 2006. E uma firme virada política na direção do
atendimento às aspirações dos mais pobres e das políticas sociais
universais a partir de 2004.
Imagine-se um caminho diferente:
Lula teria composto um Ministério econômico mais progressista e
implementado políticas mais populares desde a saída. Seria um confronto
direto com as classes dominantes conservadoras. No passado, estas tinham
o Exército a seu favor, e reagiriam pelo recurso tradicional de um
golpe. Agora, dispõem de forças igualmente poderosas: uma parte
considerável da grande mídia que forma a opinião pública – muitas vezes
em contradição com os interesses reais desta última.
Vimos, pela
eleição de Dilma, que a grande mídia tem um poder construtivo limitado:
a seu gosto, teria sido eleito Serra. Contudo, seu poder destrutivo não
pode ser subestimado. Para o bem ou para o mal, ela destruiu o governo
militar, desmoralizou o Plano Cruzado e a moratória do Governo Sarney,
promoveu o impeachment de Collor, desestruturou o PT no mensalão. Não
fora a força carismática imbatível de Lula, e sua empatia com o povo,
além dos meios de informação mais democratizados da internet, e ele e
sua sucessão seriam igualmente destruídos pela mídia. Imagine, pois, uma
situação de crise geral do país, como anteriormente assinalada, em que
um governo inexperiente de esquerda começasse a tomar medidas contra os
interesses da classe dominante, muito especialmente os interesses do
estamento financeiro entrelaçados com preconceitos ideológicos das
classes médias, e que têm as maiores contas de publicidade: seria
simplesmente massacrado e desestabilizado pela mídia, inclusive em face
da contribuição eventual de petistas tão embriagados pelo poder que
fossem capazes de produzir algo tão moralmente repugnante como um
mensalão na órbita do palácio!
É claro que a especulação sobre o
que poderia ter acontecido se Lula tivesse tentado fazer um governo puro
de esquerda (o que é exatamente isso?) é perfunctória, depois do fato
consumado. Entretanto, o caminho seguido é uma lição de história... e de
dialética, ou da aplicação prática da doutrina de Lao Tsé. Estranho
que, quem a tenha dado, seja um torneiro mecânico treinado apenas no
sindicalismo, sucessor de quem era considerado um dos mais brilhantes
intelectuais brasileiros. Contudo, talvez seja essa a explicação. Lula
nunca pregou a destruição do capitalismo. Nas greves históricas que
promoveu, era sobretudo um negociador de aumentos salariais. E em geral
sabia até onde poderia ir em termos de reivindicações para não
inviabilizar a empresa e destruir a fonte de emprego do próprio
trabalhador.
Testemunhei isso. Em 1978, eu era subeditor de
Economia do “Jornal do Brasil” e fui indicado pelo editor, Paulo
Henrique Amorim, para coordenar as edições das greves do ABC. Na época o
“Jornal do Brasil” era o principal formador de opinião brasileiro e o
fato de ter aberto duas páginas diárias para as greves foi decisivo para
sua repercussão em nível nacional, já que a conservadora imprensa
paulista praticamente se omitiu no início delas.
Terminadas 40
dias de greves, fui a São Bernardo para conhecer pessoalmente Lula.
Estive com ele um dia inteiro. Entre os relatos que me fez, lembro-me de
um sobre uma fábrica de uns 400 empregados que haviam parado e o
chamado para negociar o aumento. Queriam 20%. Lula negociou, e obteve o
acordo. Duas semanas depois, os operários entraram em greve de novo.
Queriam mais 20%. O dono da fábrica desesperou-se. Não podia dar. Lula
foi à fábrica e convenceu os empregados, em assembléia, a desistir do
pedido.
Esse fato singelo antecipa o que Lula foi na Presidência
da República: um hábil negociador e conciliador. Ele não é e nunca foi
um revolucionário que quer fazer a História dar saltos, mas um
visionário que quer empurrá-la aos pouco. É a personificação da síntese
entre contrários na visão dialética: é a negação da negação, a
continuação da política por meio da política. Não o confundam, porém,
com o estereótipo do político mineiro tradicional: o político mineiro é
um protótipo do príncipe de Lampeduza, que quer mudar para que as coisas
continuem como estão. Lula quer efetivamente mudar, e, no seu jeito de
fazer composição, arranca compromissos aos poucos, sem ruptura.
Por
que, então, ele é tão odiado por uma fração das elites e das classes
médias? É uma parte pequena da sociedade, mas com capacidade de
vocalização. E é a clientela preferencial dos grandes jornais. Em geral,
são privilegiados, e seus interesses básicos foram preservados no
Governo Lula. Assim, seu ódio é de estrito fundo ideológico. É um
reflexo tardio da doutrina neoliberal que, derrotada pelos fatos a
partir da crise financeira iniciada em 2008, ainda não foi entendida
como um fracasso retumbante no Brasil, em razão justamente da
mediocridade ou da parcialidade de grande parte de nossa mídia. Diga-se,
a bem da verdade, que o Ministério de Lula e de sua sucessora também
guardaram e guardam resíduos neoliberais. Entretanto, a direção geral
das políticas públicas tem um claro viés popular. Não é o ideal, mas o
que talvez permitam as circunstâncias.
Isso se revelou sobretudo
no enfrentamento da crise financeira mundial que eclodiu em 2008. Alguém
deve ter dito a Lula que se tratava de uma marolinha, que o Brasil
passaria ao largo dela. Entretanto, quando os fatos demonstraram o
contrário, em especial em face de uma explosão no desemprego em dezembro
de 2008, o Governo começou a mexer-se. E a medida a meu ver mais eficaz
sequer podia ser interpretada como uma iniciativa conjuntural
anticíclica. Foi o aumento real de 7% do salário mínimo, fruto de
negociação anterior entre centrais sindicais e patronato sob condução de
Lula.
O aumento do mínimo injetou uma soma considerável de
recursos novos na economia pelo lado da demanda, o que, somado ao
estabilizador automático do Bolsa Família e de outros programas sociais,
parou a queda do produto e sustentou o início da retomada, estimulado
também por reduções de tributos. Do lado da oferta, a principal
iniciativa foi a transferência ao BNDES de R$ 100 bilhões (depois mais
R$ 80 bilhões) diretamente do Tesouro, o que assegurou a sustentação e
ampliação do investimento produtivo deficitário para fazer face à
reativação de demanda que estava sendo estimulada. Se não foi possível
evitar a queda do PIB em 2009, já no terceiro trimestre havia sinais
claros da recuperação que se configuraria em 2010.
Evidentemente
que haverá quem, de forma sincera, ache que Lula fez pouco. Isso
suscita uma das recorrentes discussões teóricas em dialética: qual a
margem de liberdade que o conflito entre interesses reais deixa para a
decisão individual do líder? Sabemos que há margens de liberdade, mas
sabemos também que, no processo político em andamento, o líder não sabe
de antemão quais são. É justamente aí que entra sua inteligência, ou sua
intuição. Depois do fato, e sobretudo depois que se sabe a reação do
adversário, ou de suas conseqüências, é fácil dizer que haveria um
caminho melhor. No fragor da luta, tudo depende de uma avaliação que nem
sempre está no campo racional, mas sim no da intuição.
Entre o
primeiro e o segundo mandato, Lula poderia ter mandado o presidente do
Banco Central para casa. Era o principal empecilho a um crescimento
brasileiro mais vigoroso. Talvez ele o fizesse, não fosse a eclosão do
mensalão, que o deixou muito fragilizado politicamente. Poderia também
ter recorrido a uma política fiscal efetivamente desenvolvimentista,
forçando a redução dos juros e por aí liberando recursos fiscais para
investimentos produtivos, como queria José Alencar. Não o fez, talvez
temendo a reação da mídia. E isso, como dito, não é de subestimar: duas
medidas importantíssimas do segundo Governo, a liberação do controle
fiscal sobre os investimentos da Eletrobrás, e a capitalização da
Petrobrás com reservas do pré-sal, foram recebidas com uma avalanche
impressionante de críticas, não obstante sua importância vital para o
desenvolvimento brasileiro.
No balanço geral, Lula fez um governo
bom para todo mundo, o que se refletiu com justiça nas pesquisas de
opinião. Poderia, aliás, inverter a frase: como mostram as pesquisas de
opinião, Lula fez um governo bom para todo mundo. Só os obstinados
radicais de oposição podem questionar isso. O que se pode tentar fazer é
explicar esse fenômeno racionalmente. Talvez nem seja racional.
Lembro-me que, no início da crise do mensalão, e amargando uma queda de
popularidade que vinha desde antes, Lula deu a uma repórter de tevê
amadora uma entrevista em Paris. Foi uma coisa patética, num ambiente
patético, e com uma aparência patética. Entre outras coisas, disse que
quem está no quarto andar do palácio (Planalto) não sabe o que acontece
no terceiro, e que foi traído por alguns companheiros. Assisti à
entrevista e fiquei perplexo. Lula parecia destruído.
A partir
dali, nas semanas seguintes, a credibilidade de Lula começou a subir.
Subiu até ganhar a reeleição. A única explicação é que o povo se apiedou
dele, de seu isolamento, visível naquela entrevista improvisada, e se
identificou ainda mais com o homem do povo que chegou ao poder e que
estava sendo atacado impiedosamente pelas elites dominantes.
Critiquei
muito a política econômica do Governo Lula no primeiro mandato. Não
tenho muitos motivos hoje para mudar de opinião, mesmo em relação ao
segundo mandato. Entretanto, como disse uma vez Alencar, “fizemos tudo
errado mas deu tudo certo”. Examinando o passado e sondando o futuro,
Delfim Netto disse a mesma coisa, com outras palavras: “Lula teve vento a
favor, Dilma terá vento contra”. Em qualquer hipótese, a marca das
políticas sociais de Lula ficará gravada para sempre na História do
Brasil. Dificilmente se poderá recuar delas, sobretudo depois que ele
fez sua sucessora. Isso não compensa exatamente a política econômica
conservadora, mas é muito mais que simples populismo porque tem a força
de criação de direitos ancorados na democracia de cidadania ampliada.
Em
certo momento do primeiro mandato de Lula, estava tão indignado, como
disse, com sua política econômica que encerrei um ensaio com uma paródia
mais ou menos assim: “Lula, como Moisés, levou seu povo até a beira da
Terra Prometida. Mas diferente de Moisés, que não entrou nela, Lula
entrou sozinho”. Esse juízo se revelaria, com o tempo, um dos mais
injustos que fiz em mais de 40 anos de jornalismo. Acho hoje que um
pedaço do Brasil, justamente o dos mais desassistidos desde a
escravatura, recebeu de Lula uma oportunidade para entrar na Terra
Prometida. Afinal, o que prometeu em suas campanhas, de modo mais
enfático, não foi mudar a política econômica. Foi ver dois pratos de
comida, por dia, na mesa de cada brasileiro.
Por isso vejo Lula
como o filho da dialética. Em escala, é um modelo reduzido, embora
eloqüente, do futuro do mundo. Esse futuro não será uma volta pura e
simples ao capitalismo liberal dos Estados Unidos, ainda a potência
econômica dominante, nem o avanço em direção ao modelo de capitalismo
sem liberdade da China, a potência emergente. Será uma superação de
ambos. Algum forma política que combine liberdade empresarial e
liberdade individual, e alguma forma econômica que combine estímulo ao
empreendedorismo privado e maior regulação estatal.
(*) Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, professor de Economia Internacional na UEPB.