Como o temido simum, vento seco, duro, forte, que varre o Saara do sul
ao norte, a tempestade formou-se na Tunísia, golpeando erraticamente o
mundo islâmico − Argélia, Iêmen, Jordânia... − antes de se abater,
duríssima, sobre o Egito. A enorme perplexidade sobre a explosão popular
se deve, sobretudo, ao fato de ferir duramente a apologia do grande
capital de população mundial muda e imóvel diante dos mandos e desmandos
dos poderosos sobre seus destinos. É como se eclodisse, novamente, no
mundo, a era das revoluções.
Nada indicaria a sublevação, ao menos na superfície das aparências,
fixação eterna da grande mídia. Na Tunísia e no Egito, a economia ia de
vento em popa, com importantes aportes de capital estrangeiro, que
garantiam fortes taxas de crescimento do PIB: 5% em média, nos últimos
dez anos, em uma Tunísia embalada pelas privatizações e profunda
liberalização. O valor das ações egípcias na bolsa do Cairo triplicou,
desde 2005.
Tunísia, Arábia Saudita e Egito são o tripé da vasta rede de ditaduras
que o imperialismo USA levantou no mundo islâmico, após a queda de Reza
Pahlavi, o xá da Pérsia, em 1979, para suster Israel e a rapinagem geral
da riqueza petrolífera que exige a acumulação mundial do capitalismo.
Ditaduras com as quais o governo USA conta para combater o Irã e impedir
o ingresso na região de China e Rússia, à procura de mercados e
matérias-primas. O que explica o desespero do governo e da diplomacia
estadunidenses, ao sentirem vacilar, com a multitudinária mobilização,
as ditaduras da Tunísia e principalmente do Egito, país de mais de 80
milhões de habitantes e forças armadas de 500 mil homens, a grande
guarda pretoriana USA na região, após Israel.
Totalmente superado pelos fatos, o governo Obama enviou às pressas ao
Cairo seu mais experiente diplomata para a região, para acelerar a
renúncia de Hosni Mubarak, há trinta anos no poder, e tentar pôr fim à
mobilização popular, como aconteceu na Tunísia, antes que ela atinja o
núcleo duro do regime. Apoiado pelos governos de Israel, Arábia Saudita,
Argélia, por Mahmmoud Abbas, da Autoridade Nacional Palestina, e pela
alta oficialidade do poderoso exército egípcio, ele desconfessou seu
governo. Propôs que o velho ditador seguisse na presidência, até as
eleições de setembro, como segurança contra a radicalização que poderia
originar um Estado do estilo "iraniano" ou "bolchevique"!
Integralismo Islâmico
Sobretudo a derrota do nacional-desenvolvimentismo árabe permitiu a
construção de regimes clientes do imperialismo estadunidense e europeu,
apoiados economicamente na liquidação dos recursos energéticos nacionais
e no turismo, e em burguesia e classes médias rapazes e despreocupadas
com a sorte de população, então, em boa parte camponesa e analfabeta.
A dissolução da URSS, a depreciação do socialismo, o colaboracionismo da
esquerda nessa região e a forte repressão que esta última conheceu
ensejaram que o integralismo islâmico expressasse rusticamente as
reivindicações populares, sob o forte influxo da revolução iraniana −
Egito, Turquia, Marrocos, Líbano (Irmandade Muçulmana); Argélia (FIS);
Líbano (Hizbollah); Palestina (Hamas), Jordânia (FAI), Afeganistão
(Talibãs) etc.
Nas últimas décadas, a África do Norte transformou-se em uma região com
grande população (em torno de 200 milhões de habitantes) nas regiões
mediterrâneas, com alta expectativa de vida (70 anos, nas regiões),
muito urbanizada (Cairo, 14 milhões de habitantes), dominantemente jovem
e, hoje, relativamente instruída (10% de analfabetos entre a população
masculina de 15 a 24 anos). Comumente, as mulheres são maioria nas
universidades.
Uma população jovem e adulta que, há décadas, vive exasperada por
desemprego e sub-emprego que não lhes permitem inserir-se em um mundo
que a educação e a grande mídia lhes apresentam pleno de promessas,
reais e falsas. Piorando tudo, a forte crise mundial do capitalismo
desacelera fortemente a busca na Europa, nem que seja de trabalho duro e
mal pago, realizado sob forte discriminação, quando não de racismo
aberto. Dos dez milhões de tunisianos, um milhão encontra-se fora do
país.
Um mundo sem futuro
Nos últimos anos, no Magrebe, o desespero social é tamanho que se tornou
quase habitual a auto-imolação de jovens em protesto contra as
condições de existência. O estopim da enorme revolta que varre boa parte
do mundo árabe foi o auto-sacrifício, pelo fogo, em 17 de dezembro
2010, do jovem tunisiano Mohamed Bouazizi, informático desempregado, de
26 anos, após ser esbofeteado e humilhado pela polícia, que confiscou
suas mercadorias de camelô pobre.
As transformações sociais em boa parte do mundo muçulmano ensejam
fenômenos políticos raramente registrados pela grande mídia. Entre eles,
destaca-se o descrédito crescente do islamismo político entre as novas
gerações. Crescidas no desemprego e na informalidade, elas afastam-se de
integralismo incapaz de oferecer mais do que medidas paliativas
(escolas, hospitais, comedores etc.), pois integrado social e
ideologicamente à sociedade excludente, da qual seus dirigentes
participam, não raro com destaque.
Característica marcante do movimento na Tunísia e no Egito é seu caráter
laico e a reivindicação de liberdade política que ponha fim ao
desemprego e miséria popular. Entre os manifestantes destacavam-se
mulheres jovens, adultas, idosas. No próprio Egito, a Irmandade
Muçulmana somou-se às manifestações apenas após sua consolidação e
deposita suas fichas em El-Baradei, o ocidentalizado e pró-americano
ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica.
Fenômeno também pouco discutido é a gênese, sobretudo no Egito, de um
novo sindicalismo classista, reunido em apenas fundada federação de
sindicatos independentes. A sublevação anti-Mubarak é superação das
grandes mobilizações contra o apoio, em 2000, do governo egípcio a
Israel, e à invasão do Iraque, em 2003; das duras greves de
trabalhadores no Delta do Nilo, após dezembro de 2006; das
mini-intifadas, em Borollos e Muhalla, em 2008. Foi nas regiões
operárias do Egito que a população assaltou delegacias, apoderando-se de
armas, durante as últimas manifestações. Desde 2004, no Egito, as ações
de protesto de trabalhadores foram mais de três mil!
A Praça e as ruas são do Povo
O movimento tunisiano apenas catalisou no Egito profunda oposição
popular, à qual se somaram jovens das classes médias, que levou às ruas,
no dia 1º de fevereiro, talvez quatro milhões de manifestantes − um
milhão no Cairo; 500 mil em Alexandria; 300 mil em Suez; 250 mil em
Mahalla. Ao igual que na Tunísia, também no Egito é do movimento
operário que pode surgir centralização de um movimento sem direção
clara, handicap negativo com o qual os regimes ditatoriais e o
imperialismo contam para frustrar a onda revolucionária, por
esgotamento, se possível, ou num banho de sangue, se necessário.
Paradoxalmente, o caráter social, político e laico do movimento é um
enorme problema para o imperialismo. O integralismo islâmico foi usado
tradicionalmente, pelo grande capital, com excepcionais resultados, na
luta contra o nacionalismo, o socialismo e o comunismo árabes. Após a
derrota da URSS, o combate ao integralismo é o fantasma utilizado para
impor hegemonia imperialista política, ideológica e militar − "Guerra ao
Terrorismo" −, à população estadunidense e mundial.
Não existiria o constrangimento de Obama, ao ser flagrado pela opinião
pública interna e mundial, sustentando com um bilhão de dólares anuais a
Hosni Mubarak e à ditadura egípcia, se estivesse em marcha no Magrebe
uma revolução pela imposição da sharia e não pelos direitos democráticos
e sociais básicos.
Mais ainda, o ingresso de milhões de populares na arena política, na
luta por reivindicações democráticas e sociais, já exerce e exercerá uma
influência difícil de ser avaliada sobre a população mundial. Com
destaque para a Europa, onde os trabalhadores gregos − parte do mundo
mediterrâneo − protagonizam batalhas históricas, ainda que isoladas,
contra a nova ofensiva do capital contra os direitos do mundo do
trabalho.
Os ventos da Revolução
Na sexta-feira, 4 de fevereiro, na Albânia, prosseguiram as
manifestações, que resultaram, há poucos dias, em combates de rua, com
mortos e centenas de feridos, para exigir a renúncia do
primeiro-ministro e a antecipação das eleições previstas para 2013. Na
Sérvia, vinte mil populares acabam de baixar às ruas, exigindo do
governo pró-imperialista a antecipação das eleições de 2012, devido ao
desemprego e à inflação.
Tudo isso quando o FMI, os burocratas da União Européia e os governos
nacionais europeus preparam-se para aprofundar as políticas anti-sociais
de austeridade e de redução de direitos e salários, na Bélgica,
Espanha, Grécia, Irlanda, Islândia, Itália, Polônia, Portugal etc.
Medidas destinadas a financiar a farra do capital bancário e financeiro
que levou à crise de 2008-2009.
Surgindo das ameaçadoras entranhas do deserto social, o temido simum da
revolução que despeja os ares do norte da África esforça-se para
sobrepor-se aos ventos neoliberais que avassalam o mundo, desde a
vitória histórica de sua "revolução" nos anos de 1989 e 1990.
Mário Maestri é professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF.
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