Não se assustem os leitores. Não se trata de Barack Obama, o 44°
presidente yankee, que visitará em breve o Brasil, sob o frisson geral
nascido de suas promessas eleitorais reformistas, que, no seu país, já
terminou há muito no ralo da decepção. Refiro-me ao infeliz Jim Roy, o
88º presidente estadunidense, eleito no distante ano de 2.228, que se
suicidou antes da posse como primeiro mandatário afro-estadunidense. E
razões não lhe faltavam para o ato desesperado.
Após embranquecer a pele até parecer uma "barata descascada", ao igual
que todos os afro-estadunidenses, Jim Roy amaciou e alisou os cabelos,
seguido também por seus eleitores, logo após sua vitória, obtida com
manobra eleitoral oportunista. Para tal, serviu-se de milagroso produto
oferecido pela indústria branca, que disfarçava potente esterilizador
masculino.
Esterilização que, organizada pelos "supremos chefes da raça branca",
resolveu o "choque das raças" preservando a "pureza ariana" nos USA, ao
pôr um "manso ponto final" à raça negra. Ato consagrado como mais uma
"vitória da eugenia" – eugenia, para os que não sabem, é a ciência da
melhoria da raça humana pela seleção dos reprodutores, mais ou menos
como se faz "na criação de belos cavalos puros-sangues".
Com o título de O choque, o romance do choque das raças na
América no ano de 2228, Monteiro Lobato lançou pela então prestigiosa
Companhia Editora Nacional, em 1926, texto já apresentado, em vinte
capítulos, como folhetim, no jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, em setembro e outubro daquele ano. Na edição argentina, de 1935, o livro teve o título El presidente negro: novela americana del año 2228, assumido nas demais re-edições O presidente negro: o choque das raças.
Recuperando o irrecuperável
Em 2008, a Globo reapresentou – em forma oportunista – o romance com o título politicamente correto de O presidente negro,
sem referência ao "choque das raças". Na apresentação do romance, "Um
fabulista visionário", os autores se retorcem como minhoca na ponta do
anzol para livrar o texto das suspeitas de racismo "dos críticos de
plantão". Mesmo concedendo "reverberarem" nele as "controvertidas teses
de purificação étnica difundidas entre a intelectualidade brasileira",
apontam-no como "ficção científica futurista" que mostraria o "conflito
(racial)" "sob a perspectiva do próprio negro", combatendo a "imitação
dos hábitos e costumes", ou seja, a aculturação negra!
O presidente negro: o choque das raças foi o único romance de
Monteiro Lobato. Talvez sua fragilidade literária ajude a compreender
por que o prolífico autor jamais retornou ao gênero, consagrando-se
literária e economicamente com a literatura infanto-juvenil, que
literalmente fundou no Brasil. O romance destaca-se, sobretudo, na
produção cultural brasileira como paradigma da literatura e da
propaganda racista e eugênica.
E que não fiquem dúvidas. No romance, o narrador e os protagonistas
positivos alardeiam as melhorias sociais possíveis de serem obtidas com a
literal eliminação dos seres tidos como geneticamente inferiores. "A
Lei Owen, como era chamado esse Código da Raça, promoveu a esterilização
dos tarados, dos malformados mentais, de todos os indivíduos em suma
capazes de prejudicar com má progênie o futuro da espécie".
"Desapareceram os peludos, os surdos-mudos, os aleijados, os loucos, os
morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos, (...), os
místicos, os vigaristas, os corruptores de donzelas, as prostitutas, a
legião inteira de malformados no físico e no moral, causadores de todas
as perturbações da sociedade humana".
Servindo-se da voz de sua heroína, Monteiro Lobato recrimina,
igualmente, a "solução" brasileira para a "questão racial" − a
miscigenação: "A nossa solução foi medíocre. Estragou as duas raças,
fundindo-as. O negro perdeu as suas admiráveis qualidades físicas de
selvagem e o branco sofreu a inevitável piora de caráter, conseqüente a
todos os cruzamentos entre raças díspares".
O Sul é o meu país!
Mas não devemos nos desesperar sobre o futuro do Brasil, que Monteiro
Lobato também aborda. Ele foi dividido em dois, nesse distante futuro.
Os mestiços de portugueses, negros, índios e asiáticos ficaram reduzidos
ao marasmo, na parte norte "tropical", enquanto o arianismo dos
imigrantes dava origem, na parte sul, ao longo do rio Paraná, a uma
vigorosa e saudável civilização ariana, no melhor estilo do "O Sul é o
meu País". Metade sul acrescida, porém, da Argentina, Uruguai e Paraguai
− o que foi feito da população guarani do último país, certamente
inferior, o autor não revela!
O romance de Monteiro Lobato não pode ser qualificado de nazista e
genocidário apenas por ter precedido o sucesso daquele movimento,
vitorioso na Alemanha apenas em 1933, e o extermínio de judeus, ciganos,
doentes mentais, mal-formados etc., durante a 2ª Guerra Mundial.
Massacre multitudinário seletivo em nome da pureza e da seleção racial
que cunharia o sentido moderno do termo genocídio. Um dos interesses
dessa ficção macabra de Monteiro Lobato é precisamente o registro, no
Brasil, da larga propaganda racista e eugenista mundial, que precedeu a
vitória do nacional-socialismo na Alemanha, expressão particular, e não
construtora, dessa visão racista e classista de mundo.
Além de racista, Monteiro Lobato era também sexista. Para o gentil
criador da Emília, do Sítio do Pica-pau Amarelo, não é que a mulher seja
inferior, ela é apenas constitutivamente diferente, o que lhe determina
sua inferioridade nata! "Menos de uma pretensa inferioridade de cérebro
de que uma organização cerebral diversa da do homem e, portanto, inapta
a produzir o mesmo rendimento quando submetida ao mesmo regime de
educação".
A definição da "feminista" não deixa dúvidas sobre a visão do autor
sobre a necessária submissão voluntária da mulher ao homem que, diga-se
de passagem, conclui a revolta e a organização feminina branca
independente, que permitiram a chegada ao poder do presidente preto.
"(...) a feminista, a odiosa mulher-homem", que pensa "com idéias de
homens", usa "colarinho de homens", conseguindo apenas "não ser homem
nem mulher".
O presidente negro: o choque das raças apresenta-nos, com
singular falta de pudor, a visão racista e eugênica de mundo compartida,
em maior ou menor grau, por grandes parcelas da intelectualidade e das
chamadas classes dominantes no Brasil, nas primeiras décadas da
República.
Teorias da hierarquização racial que, apenas mediadas com maior
contenção, foram a base de interpretações referenciais na cultura
brasileira, como Os sertões: campanha de Canudos (1902), e Casa-grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal (1933),
de Gilberto Freyre. No Rio Grande do Sul, um dos expoentes dessas
visões raciais foi o historiador Moysés Vellinho, patrono do Arquivo
Histórico de Porto Alegre.
Mário Maestri é professor do Curso e do Programa de Pós-Graduação em História da UPF-RS.
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