segunda-feira, 22 de novembro de 2010

A crítica para além do voto: ilusões perigosas

Israel Dutra  
Jornal Brasil de FatoAs eleições terminaram com o previsível: venceu Dilma, candidata da situação.  Dentro da esquerda, diferentes posturas nas eleições levarão a diferentes posturas ante o novo governo.
O MST é, sem lugar a dúvidas, um dos principais movimentos sociais no país. Sua combatividade, capacidade de articulação e presença nacional o colocam como um dos principais atores de qualquer mapa político e social. Em suma, o MST é um patrimônio para a esquerda brasileira.  Ao redor do MST, agrupam-se dinâmicos setores: Via campesina, movimentos rurais e comunitários, pastorais ecumênicas e ativistas da esquerda católica, bem como núcleos urbanos e juvenis , intelectuais com ativa participação acadêmica e universitária. O jornal Brasil de Fato é a expressão política da convergência destes setores. O jBF dá unidade política em sua linha editorial. No segundo turno das eleições presidenciais, foi através do jBF que a direção do MST anunciou a sua orientação política.
Neste caso, nossa crítica se direciona ao apoio à Dilma. Não se trata apenas do voto. Sabemos que um voto é tático. Não se questiona o voto Dilma, muitos setores, o fizeram, sem semear ilusões. A decisão do PSOL, aprovada pela  sua executiva, dialogava com esses setores, como se verifica em artigo de Pedro Fuentes, secretário de relações internacionais do PSOL: "A resolução reconhece que os governos de Dilma e Serra terão posturas contrárias aos trabalhadores e ao povo. Por esta razão, Plínio de Arruda Sampaio já declarou que votará nulo, e um grande setor do partido seguirá esse caminho. Mas, também compreende que os candidatos não expressam exatamente a mesma coisa, sobretudo em sua relação com os movimentos de massas. Por isso, levando em conta o diálogo estabelecido pelo PSOL com um setor de massas que ainda acredita em Dilma, foi resolvido o veto a Serra" . Uma coisa é votar. Outra, bem diferente, é depositar confiança no governo eleito.
O mais grave foram os motivos que levaram a esta postura explicitada pelo jBF. Tais motivos, somando-se a forma como se apresentou este apoio militante, geram um precedente complicado, uma sinalização perigosa.
Uma posição grave, que geraria a ruptura de um dos principais articulistas até então deste setor, o jornalista Arbex Jr. Em carta aberta, Arbex fez o seguinte diagnóstico:" A situação agora é qualitativamente nova. O jornal Brasil de Fato transformou-se num planfletão lulista, e isso marca - na minha opinião, obviamente - reflexo de um processo de desmantelamento histórico do MST e de ruptura de uma boa parte da esquerda com sua própria história e princípios éticos. Trata-se de uma debandada tão grande e imunda que permite, entre outras coisas, que lideranças da "esquerda" declarem sem ruborizar o seu apoio ao agronegócio, à aliança com os neocompanheiros José Sarney e Michel Temer e o acobertamento cúmplice e conivente de manobras sórdidas nos corredores palacianos."
A posição  do jBF é sustentada com base a um provérbio chinês. Segundo o Editorial do nº 398 "como ensina a velha sabedoria chinesa, quem não sabe contra quem luta, jamais poderá vencer". Eis a questão. Como enfrentar os desafios do novo governo? Contra quem e pelo que lutamos? Para orientar um roteiro de debate que encare tais problemas candentes, temos que identificar onde está o "núcleo" da posição do MST/Brasil de Fato. Tal postura, que pode acabar como correia de transmissão do Planalto, se sustentava em três pilares : a identificação de Serra com o fascismo, a polarização programática no segundo turno e a possibilidade de um "retrocesso".
Os riscos são altos. Por conta disso, a polêmica se faz mais do que necessária.
Três hipóteses equivocadas
O editorial do jBF apostou suas fichas nas três hipóteses.
Hipótese um: Serra é fascista. Durante todo o segundo turno, o jornal retratou, com alta dose de sensacionalismo, o candidato do PSDB como expressão orgânica do fascismo no Brasil. Chegando a afirmar[  Editorial n° 399] que a campanha de Serra orbitava no eixo da extrema direita, conduzido por "membros do comitê de campanha do candidato da aliança DEM-Tucanos- TFP-CCC-Integralistas-Monarquistas,."  Que Serra é de direita, apoiado em setores conservadores, isso é óbvio. É um exagero, porém, construir um sinal de igual entre o programa, o partido, a trajetória de Serra e a extrema direita. Se Serra fosse fascista, certamente, com 45% dos votos, representaria um perigo de golpe imediato para as instituições. Os "setores populares" deveriam, assim, encabeçar uma campanha para que Dilma pudesse assumir, constitucionalmente, o governo.  Nada mais falso. Utilizando iniciativas pontuais, de setores marginais do conservadorismo, declarações do vice Índio da Costa, o jBF engrossou a fileira dos órgãos lulistas que invertiam a realidade. Serra representa interesses da burguesia, sobretudo paulistana, e da grande mídia. Seu partido é o carro chefe da oposição de direita, mas, passa longe de uma caracterização de fascista. O fato de setores fundamentalistas religiosos e organizações mais à direita votarem Serra não transformam os tucanos num partido fascista. Dilma era apoiada pelo PP, de Bolsonaro e outros resquícios da ditadura. Seria leviano acusá-la de fascista por conta de seu pragmatismo. Levantar o cadáver do fascismo, como forma de promover a campanha Dilma nas camadas mais à esquerda foi um golpe baixo orquestrado pelo petismo, lamentavelmente tendo no jBF sua linha auxiliar.
Hipótese dois: a polarização, no segundo turno, levaria Dilma à esquerda. Segundo este raciocínio, a contragosto da direção do PT, a candidata iria se aproximar de seus "aliados verdadeiros", numa campanha muito mais politizada e "programática". O que se viu no mês de outubro  foi uma realidade distante da paisagem idealista pintada pelos articulistas do jornal. As duas principais pautas do segundo turno foram o aborto e o caso da "Bolinha de papel". Incrível. A grande polarização esperada se resumiu a estes dois elementos. Dilma se apressou em dissociar-se da luta pela descriminalização do aborto, frustrando expectativas em relação à causa feminista. Nem havia ganho a eleição, a primeira mulher presidente já sacrificava uma pauta histórica, que vem recebendo apoio em vários lugares do mundo. Noutro caso de incoerência, Dilma contestou as privatizações tucana s, mas, sequer tocou nas privatizações lulistas. Nenhuma palavra sobre a Vale do Rio Doce e sobre o limite da propriedade agrária, acreditem, as duas principais pautas que os setores referenciados no jBF construíram nos últimos dois anos. A suposta esquerdização de Dilma se esvaiu ao longo do segundo turno.
Hipótese três: no caso de uma vitória tucana, assistiríamos um retrocesso, nas relações com os movimentos sociais e no âmbito da política internacional. Este argumento era  o que, de fato, tinha mais sentido. A política externa brasileira teve méritos nos últimos anos. Contudo,  o discurso de que o Brasil iria mergulhar numa "noite política",  com o novo governo se alinhando diretamente a Colômbia é frágil.  O Chile transitou de um governo social-liberal para um governo conservador e não se verificou grandes sobressaltos. Em relação aos movimentos sociais e criminalização da pobreza, o que dizer dos governos Paes/Cabral com sua política de "choque de ordem".?
Ou ainda, como os camponeses do Pará enxergam o governo Ana Júlia, vanguarda na repressão aos movimentos sociais e populares?
Uma política externa mais independente, operada pelo governo Lula, não pode custar o apoio dos movimentos sociais a um projeto comprometido com o grande capital.
O que se pode esperar do novo governo?
A principal tarefa da esquerda socialista no presente momento é explicar para os milhões que votaram em Dilma com expectativas de melhorias em sua vida, o que pode esperar do novo governo. A propaganda governamental, a novidade de uma mulher assumir a presidência da república leva a uma euforia. O Brasil de Lula, o Brasil de Dilma, da copa de 2014 vai, finalmente, "andar para frente"?
Para responder a esta dúvida, precisamos olhar os aliados e propostas do governo. O bloco PT/PMDB/PSB e aliados governa  15 estados, com ampla maioria nas duas Câmaras. A popularidade de Lula é recorde.  O Brasil, aproveitando da crise econômica mundial, com uma política de expansão de mercados, optou por firmar seu perfil social-liberal. Ou seja, uma visão mais estatista, subordinando países menores da América Latina. Com essa operação, em estreita aliança com construtoras, empreiteiras e outros grandes capitalistas, o Estado brasileiro ajudou a "aquecer" a economia. O maior investimento em assistência social foi utilizado para credencia a imagem de "popular". Este modelo potencializou como nunca o lucro dos bancos, do agronegócio e dos setores produtivos e rentistas do capital. Para o jBF, Serra era o candidato dos "ricos" e Dilma, das "demandas populares". Pensando na agenda do novo governo, concluímos, tragicamente, que tal imagem é falsa. Apesar de celebrar uma derrota da "direita"- o que é verdade, do ponto de vista dos partidos tradicionais da oposição direitista, DEM e PSDB- teremos um receituário amargo.
O governo Dilma terá que lidar com temas como a Terceira reforma da previdência, fator previdenciário, reforma agrária, verbas para a educação pública, descriminalização do aborto, abertura dos arquivos da ditadura militar. Suas primeiras declarações caminham no sentido da continuidade do modelo lulista. Dizemos, este é o governo dos latifundiários, do agronegócio, e do grande capital. É o governo de confiança das confederações industriais, das burocracias sindicais. Este não é nosso governo.
A independência é uma questão central
CUT, UNE, Força Sindical já mostraram de que lado vão estar . Cabe ao MST pensar como se localizar. Quando Lula venceu a eleição de 2002, setores levantaram a consigna de "governo em disputa". Os acontecimentos posteriores, como a votação de reformas anti-povo, alianças pragmática, escândalos de corrupção, expulsão dos radicais do PT, ampliação à direita da coalizão de governo sepultaram esta tese. Será que ela vai reaparecer, mesmo que surrada?
Se Lula, com uma popularidade gigantesca não "ousou" realizar as reformas populares e enfrentar  o "pólo atrasado" do governo, porque Dilma o faria.
O jBF, que apresenta o balanço do segundo turno, segue identificando Dilma e o novo governo como algo mais avançado do que Lula:" A presidenta eleita assegurou, durante a campanha, que a reserva petrolífera do pré-sal pertence ao povo brasileiro e a riqueza gerada será utilizada para erradicar a miséria e em investimentos nas áreas sociais da saúde, educação e saneamento básico.(Editorial  do nº 401)".A melhor forma de acompanhar as expectativas que o movimento de massas tem em Dilma é mantendo a independência das organizações, como sindicatos, associações, diretórios, federações entre outros movimentos sociais.
O dirigente mais importante do MST, João Pedro Stédile afirmou que o próximo governo pode ir mais à esquerda, prolongando a tese da polarização do segundo turno. Stédile, antes cedo que tarde, vai encontrar uma encruzilhada: qual o preço político que está disposto a pagar para sustentar as medidas do governo Dilma?
O jBF  indica uma rota de apoio inicial à Dilma(Ed.401):"A presidenta Dilma Rousseff, cumprindo sua promessa eleitoral, terá uma oportunidade histórica para derrotar esses setores entreguistas das nossas riquezas e assegurar ao povo brasileiro o pagamento de uma dívida social que perdura há cinco séculos."
A questão da unidade
O período de experiência é sempre contraditório. Os tempos em política se encontram e desencontram. O antídoto para os desencontros é a unidade em torno da luta, concreta, sensível, imediata. E é a unidade que devemos propor entre os setores populares. Uma ampla unidade em torno de pontos concretos: por exemplo, existe uma forte pressão da burguesia e do Banco Mundial para a realização de uma nova reforma na previdência. A chamada terceira reforma poderá vir a cortar ainda mais direitos, bem como aumentar a idade mínima para a aposentadoria. Qual a política mais correta para enfrentar este problema?
O que farão os setores vinculados ao jBF, os deputados eleitos com votos nos assentamentos, dirigidos por setores do MST? A esquerda social, os jovens que impulsionam coletivos de apoio a reforma agrária, a vanguarda lutadora?
Para além da abstração, temos exemplos concretos do que está por vir. O exemplo da França, lutando contra a reforma previdenciária deve ser uma referência, independente do partido que governa. A classe trabalhadora francesa, em unidade com a juventude, está nos dando inúmeras lições.
Outros temas concretos vão levar a choques com o governo: a postura em relação ao agronegócio, a polêmica sobre a Usina de Belo Monte, o desmatamento da Amazônia.
De nossa parte, com modéstia, fazemos um chamado à unir forças na oposição de esquerda, ainda minoritária, mas com espaço para crescimento. Os eleitores de Marina Silva, das candidaturas da esquerda, mesmo aqueles que votaram em Dilma com toda desconfiança. São esses setores que podem vir a compor um bloco alternativo, na política e  na sociedade brasileira. Este desafio é do PSOL e do conjunto da esquerda. Não sucumbir. As pressões serão enormes. Nossas responsabilidades também. Para concluir no terreno do orientalismo, resgatado pelos camaradas do MST/Brasil de Fato podemos recordar outro provérbio chinês: "Há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida."

Israel Dutra é professor de sociologia e membro do Diretório Nacional do PSOL

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