Por Vanessa Ramos
A atualização da tabela
dos índices de produtividade voltou ao debate depois que a presidenta
eleita Dilma Rousseff (PT) prometeu rever os números durante o seu
mandato. Ela disse que a decisão será tomada na esfera técnica, com base
em um estudo da Embrapa.
O presidente da Farsul,
Carlos Sperotto, esperneou e disse que não concorda com a imposição de
índices de produtividade. Para ele, a prática “uma aberração” e “um
contrasenso”.
Para Sérgio Sauer,
professor da Universidade de Brasília de Planaltina e relator nacional
do Direito Humano a Terra, Território e Alimentação, da Plataforma
DhESCA Brasil, essa aberração foi criada pelos próprios latifundiários,
que impuseram a sua inclusão na Constituição de 1988.
“A bancada ruralista - e
seus aliados - são os responsáveis, pois colocaram no texto
constitucional, mas agora as entidades da classe patronal, e os próprios
ruralistas no Congresso, não querem aceitar a atualização”
Depois de 22 anos, os
latifundiários pressionam para bloquear qualquer atualização e cobram a
eliminação dos índices de produtividade.
“A origem destes índices,
ou seja, a retirada das terras produtivas da Reforma Agrária, não foi
uma pauta dos movimentos sociais. Ao contrário, foi colocada como um
mecanismo para bloquear as desapropriações”, afirma.
Sauer acredita que Dilma
terá dificuldades para fazer a atualização, por causa das alianças
feitas na campanha eleitoral. “A questão central é política, ou seja, a
atualização só será feita se houver uma decisão política do governo
federal”.
Abaixo, leia entrevista com Sérgio Sauer.
O que são os índices de produtividade?
Por pressão da bancada
ruralista, a Constituição de 1988, em seu art. 185, inciso II,
estabeleceu que "as terras produtivas" não são suscetíveis de
desapropriação para fins de Reforma Agrária. A lei no. 8.629, de 25 de
fevereiro de 1993, regulamentou este artigo (e os outros dois, artigos
184 e 186, que tratam da Reforma Agrária) da Constituição, definindo os
parâmetros para medir uma "propriedade produtiva".
Então, a assim chamada
"Lei Agrária" de 1993 estabeleceu, em seu art. 6º, que deve ser
considerada propriedade produtiva "aquela que, explorada econômica e
racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra
[GUT] e de eficiência na exploração [GEE]". Estes dois índices medem a
utilização - por exemplo, a lotação no caso da pecuária (cabeças por
hectares) - e a eficiência nesta lotação (se os recursos estão sendo
alocados de forma condizente).
A demanda por atualização
dos índices de produtividade é, portanto, a atualização do GUT e do
GEE, considerando os avanços produtivos e tecnológicos dos últimos 30
anos.
Por outro lado, é
fundamental lembrar a origem destes índices, ou seja, a retirada das
terras produtivas da Reforma Agrária não foi uma pauta dos movimentos
sociais. Ao contrário, foi colocada como um mecanismo para bloquear as
desapropriações, portanto, os índices de produtividade e sua atualização
nunca foram pauta dos movimentos sociais. Se a atualização é
importante, é por uma questão instrumental, mas não por uma demanda
social. Aliás, a sua existência restringiu todo o conteúdo da função
social - um mandado constitucional - da terra.
Qual a importância da atualização deles?
Em primeiro lugar, a
atualização está explícita na Lei no. 8.629, de 1993. De acordo com o
seu art. 11, "os parâmetros, índices e indicadores que informam o
conceito de produtividade serão ajustados, periodicamente, de modo a
levar em conta o progresso científico e tecnológico da agricultura e o
desenvolvimento regional".
Segundo, além de uma
ordem legal (derivada de um mandado constitucional), esta atualização
tornará o uso ou aproveitamento das terras coerente com todos os
investimentos públicos feitos para desenvolver o atual modelo
agropecuário.
Desde os anos 1960, os
diversos governos fizeram investimentos através de crédito subsidiado,
criação e manutenção de assistência técnica, da formação profissional e
universitária de técnicos, em pesquisa para o desenvolvimento de novas
variedades e adaptação às condições climáticas do país. A atualização
dos índices é uma resposta dos setores - proprietários de terras - que
foram beneficiados com tais investimentos.
Em terceiro lugar, esta
atualização geraria um estoque de terras - hoje mal aproveitadas -
passíveis de desapropriação para fins de Reforma Agrária. Em outras
palavras, cálculos de produtividade condizentes com os avanços
tecnológicos permitiriam um uso mais justo das terras que não estão
cumprindo um dos requisitos da função social, que é o uso racional
(produção).
É uma atualização
necessária. Eu diria mais: é obrigatória, diante dos incentivos
governamentais para a agricultura brasileira atingir os atuais patamares
de produção. No entanto, a atualização não surge em consequência de
demandas dos movimentos sociais. A bancada ruralista - e seus aliados -
são os responsáveis, pois colocaram no texto constitucional, mas agora
as entidades da classe patronal, e os próprios ruralistas no Congresso,
não querem aceitar a atualização.
Como será feita a atualização dos índices de produção?
De acordo com os termos
da lei, a responsabilidade de atualização periódica é dos Ministérios da
Agricultura e do Desenvolvimento Agrário. Esta responsabilidade deve
ser cumprida através da edição de uma portaria, ou seja, não se está
falando de nenhuma mudança na lei ou na Constituição. É um simples ato
administrativo, de responsabilidade dos dois ministérios.
É importante observar que
a lei diz apenas "atualização periódica", sem definir o intervalo
(quanto tempo é este "periódico") desta atualização. Na verdade, isto
não é estranho, porque o desenvolvimento tecnológico não é contínuo ou
constante, portanto, o espírito da lei foi deixar flexível para que o
governo (ministérios) possam avaliar quando isso se faz necessário.
No entanto, desde que foi
instituído, estes índices nunca foram atualizados. Diante disto, o já
falecido Dep. Adão Pretto (PT/RS) apresentou um projeto que estabelecia o
intervalo de cinco anos, ou seja, aprovado o projeto, os dois
ministérios proveriam uma atualização a cada cinco anos.
Qual é a base para a atualização dos índices?
Agora, a definição dos
novos índices deve ser feita a partir de estudos técnicos, considerando
uma série de fatores relacionadas aos ganhos de produtividade. Ou seja,
deve ser feito através de um levantamento sistemático da produção
nacional, regional e municipal, utilizando uma série de anos (várias
safras). Consideram vários anos (série de dados) é fundamental para
evitar distorções, ou seja, evita o uso de dados de uma supersafra
(índices muito elevados) ou de uma safra frustrada (índices muito
baixos).
Só para termos uma ideia,
dados do Ministério da Agricultura (um estudo chamado “Fontes e
Crescimento da Agricultura Brasileira”, divulgado em julho de 2009)
afirmam que, de 1975 a 2008, a taxa de crescimento da produção
agropecuária brasileira foi de 3,68% ao ano, sendo que este crescimento
foi de taxa anual de 5,59%, entre 2000 e 2008. É este tipo de dado que
deve ser considerado para atualizar os índices.
Para termos uma ideia das
razões técnico-produtivas da atualização, ainda segundo dados do MAPA,
produziam-se 10,8 quilos de carne bovina por hectare em 1975, sendo que
hoje são 38,6 quilos por hectare.
A produção de leite por
hectare foi multiplicada por 3,6 e a de carne e aves saltou de 372,7 mil
toneladas para 10,2 milhões no mesmo período. Isso deve ser levado em
conta quando o Incra vai medir se uma terra está ou não sendo utilizada
de forma racional; se é produtiva.
Segundo declaração de
Dilma, os índices serão atualizados de acordo com a Produção Agrícola
Municipal (PAM), obedecendo microregiões geográficas analisadas pelo
IBGE. Essa é a forma mais correta de se fazer a atualização?
O Brasil, ou melhor, o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), produz uma série
de dados sobre a produção agropecuária. Alguns defendem que uma base
municipal estaria mais próxima das realidades locais; outros defendem
série mais periódicas (dados que são levantados de forma mais
frequente).
No entanto, me parece que
a questão central não está neste debate - de cunho iminentemente
técnico - sobre qual base utilizar. É fundamental, no entanto, tomar
como base fontes e dados atualizados, portanto, dados e índices que
contemplem os ganhos de produtividade mais recentes (sempre lembrando
que muito destes ganhos continuam sendo baseados em avanços financiados
com recursos públicos).
Confesso que não fiz uma
análise mais detida das propostas. No entanto, além da crítica geral de
não atualização, a outra crítica recorrente é que o estudo feito - o
qual deve ser a base de uma provável portaria de atualização - também
está defasada em 10 anos.
Agora, neste debate ou
embate sobre os índices, a questão central é política, ou seja, a
atualização só será feita se houver uma decisão política do governo
federal. A pergunta é: está nos planos do governo Dilma atualizar os
índices? Não sei como responder essa pergunta, mas olhando as alianças
feitas na campanha eleitoral, o desenho do futuro governo não é nada
promissor.
O que muda para os Sem Terra se os índices forem atualizados de fato?
A expectativa é a geração
de um estoque de terras - que hoje são mal ou não são utilizadas - em
algumas regiões, onde "não há terras para desapropriar" como, por
exemplo, os estados economicamente mais dinâmicos. Isso só será verdade
se a base (dados, fontes e estudo) da atualização for condizente com os
ganhos mais recentes de produtividade. Se não, será mais uma medida sem
grandes efeitos práticos.
Por que os índices de produtividade não são atualizados desde 1985?
Essa é uma pergunta
importante e dois aspectos precisam ficar claros. Em primeiro lugar, os
índices - ou a noção de terra produtiva - foram colocados como uma
barreira para impedir a desapropriação de grandes áreas, de terras que
não cumprem a função social. Portanto, a não atualização é resultado de
manobras e pressões daqueles setores da sociedade que são contra
qualquer avanço nas políticas de Reforma Agrária.
Esses setores que, ao não
aproveitar racionalmente a terra, a utilizam para especulação. Ou seja,
são aqueles que ganham dinheiro, mas penalizam toda a sociedade porque
não produzem, mas geram renda para si com a especulação (imobiliária).
Em segundo lugar, o
quadro é ainda mais injusto, pois - é sempre bom lembrar - os índices já
estavam desatualizados quando foram instituídos. Instituídos nos anos
1990, mas a base de cálculo foram os dados do Censo Agropecuário de
1975, portanto, uma defasagem de mais de uma década de avanços
produtivos.
Quais foram e são as consequências da não atualização dos índices de produtividade até hoje?
É possível mencionar duas
consequências. Uma é o esgotamento do estoque de terras mal
utilizadas, passíveis de desapropriação e destinação para famílias sem
terra.
A segunda consequência é
que as ações governamentais de Reforma Agrária, ou seja, os projetos de
assentamentos, estão sendo feitos em regiões pouco dinâmicas
economicamente.
Ou seja, a maioria dos
projetos de assentamentos estão localizados em regiões isoladas,
resultando em sérios problemas para as famílias assentadas como, por
exemplo, falta de infraestrutura básica (energia, estrada, etc).
Geralmente são distantes do mercado consumidor, portanto, a produção dos
assentamentos não são capazes de gerar renda suficiente para melhorar
as condições de vida das famílias, entre outros problemas.
Qual as consequências da criação desses índices como critério para as desapropriações de terra?
Nesse debate sobre os
índices, é fundamental não perder de vista, primeiro, que o impedimento
de desapropriação de terras produtivas nunca foi a pauta dos movimentos
sociais.
Em segundo lugar, este
impedimento restringiu as ações governamentais à desapropriação de
terras improdutivas, o que significa um empobrecimento profundo do
conceito de função social.
Praticamente todas as
terras desapropriadas no Brasil são, única e exclusivamente, porque não
são produtivas, sendo que praticamente não há casos de desapropriação
porque os trabalhadores são mal tratados (outro critério da função
social, colocado na Constituição, mas que não surte qualquer efeito
prático).
Em terceiro lugar,
desapropriar terras improdutivas, em vários casos, resultaram na
destinação de terras impróprias para as famílias. Ou seja, o antigo dono
não investia porque não valia a pena (solo fracos, pedregoso, sem água e
tantos outras condições que tornaram o empreendimento sem resultado
econômico), sendo que agora as famílias assentadas vivem nestas terras.
Em outras palavras, foram
duplamente penalizadas, de sem-terras a terras sem condições de vida e
produção. O que quero dizer com isto? A produtividade não pode,
respeitando o espírito constitucional, ser o único critério para
destinar terras para Reforma Agrária no Brasil.
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