Há quinze anos, depois do massacre de Eldorado dos Carajás,
no Pará, 690 famílias foram assentadas num latifúndio que tinha, então,
37 mil hectares. Muitos assentados eram analfabetos. Hoje, um dos
orgulhos do “17 de Abril” é a escola, que permite às novas gerações
romper com a história de exclusão das famílias. No terceiro retrato da
vida no assentamento, que visitou recentemente, a repórter Manuela Azenha,no VIOMUNDO, fala sobre educação:
Altamiro da Silva e sua esposa voltaram a estudar “depois de velhos”,
como ele mesmo diz. Vivem no assentamento 17 de abril. Altamiro veio de
Goiás para trabalhar no garimpo do sul do Pará, mas chegou tarde para a
extração manual, atividade já enfraquecida, então. Foi quando decidiu
entrar no Movimento dos Trabalhadores Sem Terra. Isso foi há 16 anos.
Ele e a esposa, ambos com mais de 40 anos de idade, estão
matriculados agora no ensino fundamental pelo EJA, o programa federal de
alfabetização voltado para jovens e adultos. “Essa camisa aqui é o
uniforme da escola. Está vendo o meu nome?”, mostra Altamiro.
A filha deles, Gislane, tem 18 anos. A primeira sala de aula em que
entrou foi na escola Oziel Alves Pereira, orgulho do assentamento, onde
estudou até o terceiro colegial. Os atuais professores do ensino
fundamental e muitos do ensino médio se formaram e hoje dão aulas na
Oziel.
Ela atende a mais de mil alunos em três turnos, do maternal ao
terceiro colegial. A escola leva o nome de um jovem militante que, já no
hospital, foi espancado até a morte, no dia do massacre de Eldorado dos
Carajás, em 1996.
Hoje, Gislane é professora e trabalha no programa estadual de
alfabetização “Sim, eu posso”, também voltado para jovens e adultos. O
programa tem 14 professores no assentamento, cada um com cerca de 10
alunos, número máximo por turma. As professoras dão aula em suas
próprias casas, mas se for preciso vão até onde os alunos vivem. Gislane
viu seis de seus alunos serem certificados este ano.
Ao longo de mais de uma década de militância, o pai dela, Altamiro,
ocupou inúmeros cargos dentro do movimento e hoje é fiscal da Associação
de Produção e Comercialização dos Trabalhadores Rurais do Assentamento
17 de Abril (ASPCTRA)
O lote de terra que ele ocupa é tido como exemplo de plantio orgânico
bem sucedido. Altamiro orgulha-se particularmente do cultivo de cacau,
que em 2010 rendeu duas toneladas e meia – mais do que qualquer outro
produtor do município.
Muitos dos assentados passam por um processo de formação do MST. Mas,
para Altamiro, foi na experiência cotidiana que aprendeu o que sabe:
“Já vi muita miséria. Aprendi simplesmente porque colono não pode errar,
se não a família toda sofre. É como na escola: quem tira nota baixa não
passa de ano”.
Altamiro gosta de se explicar fazendo comparações. Em relação à
terra, parece ser ela sua suprema companheira: “ É igual com mulher: no
começo você fica deslumbrado, mas depois que se acostuma com ela, já
quer trocar. Não pode ser assim, tem que tratar bem a terra, cuidar
dela, que a relação dura para sempre”. Quando perguntado se aplica
agrotóxicos em seu lote, responde com ternura: “Imagina, você ter uma
planta bem linda e alegre, depois você vai jogar veneno nela?”
Segundo Luis Lima, presidente da ASPCTRA, a escola adota o método
Paulo Freire, que associa a aprendizagem às questões concretas do
cotidiano. Os programas para adultos são sempre divididos em módulos: o
estudante passa 45 dias na escola e, em seguida, 60 dias no trabalho
prático do campo, para que não se desligue de sua realidade.
Diversas citações de Freire estão pintadas nas paredes da Oziel Alves Pereira.
A escola é reconhecida como uma das melhores da região. É uma
construção espaçosa e arejada, de 12 salas de aula equipadas com
ar-condicionado, auditório para 100 pessoas, laboratório de química,
salas de informática, de vídeo e biblioteca. Os equipamentos doados ao
laboratório de química ainda estão encaixotados, já que os professores
do próprio assentamento ainda não estão capacitados para utilizá-los:
“Já pedimos à Universidade Federal do Pará (UFPA) que mande alguém para
dar assistência aos professores. Tem produto químico que já está até
vencido”, explica a coordenadora Risângela Almeida.
O objetivo da escola é montar um programa pedagógico que contemple a
realidade do campo. Na biblioteca estão guardados dezenas de livros
didáticos que foram doados pela Secretaria Estadual de Educação mas que,
segundo a coordenadora, são inadequados para qualquer escola fora do
Sudeste: “Os jovens estão saindo do campo para trabalhar em qualquer
subemprego na Vale do Rio Doce. Queremos formá-los para que criem
vínculos com o campo e com sua história”.
Risângela vivia em Brasília quando foi visitar a irmã no assentamento
e decidiu que queria viver ali. “No começo é difícil, mas depois a
gente vai pegando amor pelas coisas daqui, pelas pessoas. É assim que
tem de ser”. Ela já tinha prestado o vestibular várias vezes quando
conseguiu entrar no curso de Letras da UFPA através de um convênio entre
a universidade e o MST. Durante o dia assistia às aulas e, à tarde,
voltava para o assentamento.
Risângela reclama da falta de autonomia em relação à Secretaria de
Educação, que é quem financiou a construção da escola. Os trinta
professores são selecionados pelo município de Eldorado dos Carajás:
“Conseguimos ao menos que a Secretaria desse prioridade a professores do
assentamento. Não queremos gente de fora”.
A coordenadora ressalta a importância do currículo de português.
Acredita que os alunos devam aprender a ler e a escrever com fluência
antes de estudarem a gramática: “Temos de dar o que eles realmente
precisam. Discutimos e interpretamos muitos textos na sala de aula”. Uma
vez por ano, é organizada a “Noite com poesias”. Na quadra da escola,
todos os alunos, do maternal ao colegial, declamam poesias de autoria
própria ou de poetas consagrados, como Cecília Meirelles, Vinícius de
Morais e até Charles Trocate, militante do MST e autor de três livros de
poesia.
Um exemplo sempre citado no assentamento é o de Leonildo, que entrou
na escola sem saber ler ou escrever. Agora, com mais de sessenta anos,
está na oitava série. Durante a semana de atividades para relembrar o
massacre de 17 de abril, ele subiu no palanque da praça central do
assentamento para declamar um poema em formato de cordel que ele mesmo
escreveu.
Charles Trocate entrou no MST aos 16 anos de idade. Passou nove meses
em um programa de estudos. “É aí que se consolidaram em mim
preocupações mais gerais, o hábito da leitura, a profunda fé no trabalho
coletivo e as primeiras formulações poéticas”, conta.
Hoje ele é da coordenação nacional do movimento. Um poeta
reconhecido: “Falam que meus poemas são difíceis, mas eu não sei
escrever de outro jeito. Com 16 anos entrei para a escola do movimento e
ficava lendo Marx, Gramsci… Imagina só o jeito que eu saía falando das
aulas!”, explica. A poesia do uruguaio Mario Benedetti foi uma de suas
primeiras leituras. “O poeta se constrói ao construir. Não fica
satisfeito até conseguir criar uma grande metáfora. Lia [Walt] Whitman,
que me ensinou o poema-conceito; Drummond, que é a base da nossa
educação sentimental; Maiakovski, que fala do trabalho na arte”. Tanto
aprecia Maiakovski que está aprendendo russo para traduzir um de seus
poemas para o português.
Expulso da escola depois de um ano, Charles nunca mais retornou ao
sistema de ensino convencional. Quando menino, trabalhou no garimpo por
dois anos. Como não era permitida a entrada de mulheres, nem de bebida,
os garimpeiros iam à chamada “Cidade do Trinta”, atual Curianópolis,
onde Charles passou a vender cuscuz às prostitutas na porta de boates.
Trabalhou de bananeiro a engraxate. Foi alfabetizado pela irmã mais
velha, que o ensinava a ler placas: “A gente morava na beira do rio,
então descíamos para lavar as placas e aprender as letras. Até hoje
tenho mania de ler todas as placas que vejo”.
Charles já publicou três livros de poesia pela editora Expressão
Popular. No ano passado, foi convidado para fazer parte do Academia de
Letras do Sul e Sudeste paraense: “Houve quem se opôs à minha aceitação
porque sou do MST”.
Apreciador e estudioso de música, ele também coordena um grupo
composto por jovens assentados e inspira-se em compositores consagrados:
“Minha mãe colocou o disco do Bob Dylan para tocar quando eu tinha dois
anos de idade. Desde então, sou marxista e poeta”, conta aos risos.
Atualmente, está escrevendo um texto sobre a relação entre a arte e o
movimento político: “Não acredito em arte camponesa porque não acredito
na arte operária. Arte é catarse, emancipa o homem e não pode estar
presa a uma classe social”, defende Charles.
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