Maggie Marín
Jornalista da revista centenária cubana Bohemia
Tradução: ADITAL
O Uruguai está sumido em tensões sociais desde que, no passado dia
12, o Senado aprovou um ante projeto encaminhado para anular a Lei de
Caducidade que, desde 1986, evita julgar aos violadores dos direitos
humanos. A esses ânimos, somou-se uma polêmica sobre supostas
negociações, em 1998, entre ex-guerrilheiros tupamaros e militares para
partilhar responsabilidade pelos "fatos do passado”, eufemismo que tenta
ocultar o desaparecimento de mais de 200 militantes de esquerda, os
seqüestros, as torturas, as violações, o ocultamento de cadáveres, o
roubo de bebês e outros crimes de lesa humanidade cometidos por
militares e policiais durante a última ditadura de 1973 a 1985.
María
Macarena, aneta do poeta e escritor argentino Juan Gelman, arrancada
ainda bebê dos braços de sua mãe sequestrada e levado ao Uruguai, viveu
23 anos sob uma identidade que não era verdadeira. As vitórias até hoje
alcançadas, diz, são pequenas vitórias em uma luta de mais de 30 anos. A
jovem chamou aos legisladores a "garantir os direitos humanos da
população votando pela anulação da Lei de caducidade”.
O diário direitista El Observador que, recentemente, no dia 25,
projetou com intencionalidade essa autêntica bomba na atualidade,
admitiu que devia a notícia a militares retirados e viu como deixar
constância, tanto no papel quanto na Internet, de que aquele acordo
pretendia "selar o tema dos direitos humanos”. O que aconteceu, segundo o
pretendido pacto, foi consequência de "uma guerra” no país e que,
portanto, toda a sociedade deve assumir sua parte de responsabilidade
nela.
Eleuterio
Fernández Huidobro, senador da Frente Amplio e um dos chefes históricos
do Movimento Tupamaros, confirmou que os insurgentes conversaram com
militares; porém, que não
houve nenhum pacto, nem documento. "Nós falamos muito com os militares;
Mujica, eu e muitos mais; sempre com o objetivo de elevar o reclamo dos
companheiros desaparecidos e, especialmente, das crianças”, explicou. O
suposto pacto é, sem dúvida, uma jogada para pressionar ou condicionar o
voto dos congressistas.
Chegados a esse ponto, vale recordar que o Movimento de libertação
Nacional Tupamaros (MLN), fundado em 1962 sob o exemplo da Revolução
Cubana para comandar uma guerra justa e tomar o poder, criou e integra
desde 1971 a coalizão política de esquerda Frente Amplio (FA), que
alcançou a presidência da nação sul-americana em 2005. Entretanto,
igualmente desde a época do surgimento do FA, os militares que
participaram nas pretendidas negociações integram a logia Tenentes de
Artigas, de ideologia ultradireitista, ultranacionalista e
anticomunista.
É preciso anotar que esta não é a primeira vez que os ‘entorchados' e
seus acólitos tentam persuadir aos uruguaios de que é melhor para todos
virar a página e seguir adiante. Pelo contrário, aberto ou sutil, essa
mensagem tem sido uma constante, o que, em boa parte, explica a
dicotomia que o tema provoca. Porque, certamente, enquanto sobreviventes
das prisões e das torturas –junto com personalidades, organizações
sociais e humanitárias- reclamam justiça e acompanham resolutivamente o
processo para julgar aos repressores, sobre a lógica oposição castrense e
da direita em geral, persistem medos e incertezas na sociedade, como se
presume do fato de que o genuíno código de impunidade, a citada Lei de
caducidade, foi retificado por plebiscitos realizados em 1989 e em
outubro de 2010.
O
presidente José Mujica, ex-guerrilheiro, tem sido objeto de ataques
desde que negou que os tupamaros fizeram um pacto com os militares e
antecipou que não vetará o anteprojeto. Juízes e fiscais têm sido
ameaçados.
Nada menos do que José Mujica, ex-Tupamaro, e que, recentemente
cumpriu seu primeiro ano como presidente do Uruguai, com bons índices de
popularidade e aceitação, tem sido assinalado como um dos participantes
naquelas supostas conversas. "É um embuste”, assegurou Pepe sobre o
suposto pacto, com sua habitual tranquilidade, no mesmo dia em que o
escândalo foi divulgado.
Os ‘entorchados' não perderam tempo. Imediatamente, o coronel
retirado Carlos Silva, porta voz da mencionada logia artiguista, disse
reconhecer o documento. "Todos fizemos parte do que era a Guerra fria
naquele momento. Então, dissemos que íamos olhar para adiante, deixarmos
de causar problemas e trabalhar pelo bem da pátria, para começar de
novo”, agregou ao que claramente é outra mensagem a favor da amnésia
coletiva.
De modo que os ânimos estão quentes nessa república habitada por
seres proverbialmente agradáveis e muito civilizados. Especialmente,
porque o plano seguido pelos militares está impulsionado sobretudo pelo
medo. Na outra margem do Río de La Plata, na Argentina, a Lei de
Obediência Devida e a Lei de Ponto Final foram declaradas nulas desde
2003 e foram abertas causas contra os hierarcas das Juntas Militares,
contra oficiais, efetivos de corpos de segurança, ladrões de bebês e
repressores e torturadores de todo tipo.
Até hoje foram julgados mais de 200 e sentenciados 110 criminosos que
campearam durante a ditadura de 1976 a 1982. Nesse ano, outros nove
julgamentos se somam aos nove que já estavam em curso. A sociedade da
nação vizinha está, pois, no processo de ajustar a memória, a verdade e a
justiça. Se cura em saúde, como diz um sábio refrão, afrontando
valentemente o que, de fato, é um processo doloroso e traumático.
No Uruguai, à jornada histórica vivida no Senado quando aprovou o
anteprojeto que anula a Lei de impunidade- e que, ao sofrer modificações
deve voltar em breve a deputados, onde foi aprovado, em outubro de
2010, e reeditar os passos já cumpridos- temos que somar a decisão,
tomada no dia 24 de março, pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), que requer do Estado do Uruguai deixar sem efeito a Lei de
Caducidade.
Ações que, sem dúvida, insuflaram uma força muito particular à velha
luta da esquerda uruguaia para conseguir que os repressores sejam
levados a julgamento; porém, que são –não nos enganemos- algumas das
muitas portas que devem ser abertas para chegar a toda a verdade sobre o
que aconteceu com os desaparecidos no Uruguai e somente uma fase da
ofensiva para levar os torturadores ante a justiça.
No imediato, está a decisão que deve ser adotada em Deputados.
Projeto que, tal como já apontamos, foi sancionado no Senado. Por sorte,
em ambas câmaras o governante FA é majoritário, o que garante a
aprovação definitiva do estatuto. E justamente o FA, por certo uma
coalizão que atesoura uma autêntica história de lutas, pretende que a
aprovação na câmara baixa produza antes do dia 20 de maio quando no
Uruguai se recorda aos mortos e desaparecidos durante a ditadura.
Porém, não obstante se deve calcular que provavelmente continuem
surgindo pressões contra, em muitas outras modalidades. E nenhuma será
banal. Contudo, devemos confiar em que a impunidade seja derrotada
também na pátria de Artigas. Somente assim começarão a reinar a memória,
a verdade e a justiça.
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