sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

As mulheres árabes de Israel não precisam sequer de se candidatar a um emprego

É a discriminação e não as especificidades culturais que mantém as famílias árabes na pobreza


por JONATHAN COOK
Em Nazaré

tradução: equipa Todos Por Gaza

Na semana passada, o Ministro das Finanças israelita foi acusado de tentar desviar as atenções das politicas discriminatórias que mantém muitas das famílias árabes do país na pobreza, colocando a culpa para os seus problemas económicos naquilo que descreveu como a “oposição da sociedade árabe ao trabalho feminino”.

Um relatório recente produzido pelo Instituto Nacional de Segurança mostra que metade das famílias árabes em Israel são consideradas pobres comparadas com 14 % das famílias judias.

Yuval Steinitz, Ministro das Finanças israelita, disse durante uma conferência sobre a discriminação no emprego, realizada este mês [novembro] que a falha das mulheres árabes em se tornarem parte da força de trabalho tinha um impacto negativo na economia de Israel. Só dezoito por cento das mulheres árabes estão empregadas, e dessas, apenas metade a tempo inteiro, enquanto que pelo menos 55 % das mulheres judias trabalha.
O ministro atribuiu a baixa taxa de emprego entre esta minoria a “obstáculos culturais, estruturas tradicionais e à crença que as mulheres árabes devem permanecer nas suas cidades de origem”, dizendo ainda que estas restrições são características de todas as sociedades árabes.
Contudo, há investigadores e associações de mulheres que sublinham que o numero de mulheres árabes em Israel é mais baixo do que em quase todos os outros países do mundo árabe, incluído aqueles onde os números do emprego feminino são uma mancha, como sucede na Arábia Saudita e Omã.
“A maior parte das mulheres árabes quer trabalhar, incluindo um grande número de licenciadas, mas o governo tem recusado abordar os vários e grandes obstáculos que lhe têm aparecido no caminho” disse Sawsan Shukhra, da associação Mulheres contra a Violência, uma associação com base em Nazaré.
Esta afirmação é confirmada por um inquérito realizado este mês e que revela que 83 % dos homens de negócios israelitas nas principais profissões (incluindo publicidade, direito, banca, contabilidade e media) admitiram ser contrários à ideia de contratar licenciados árabes, independentemente do seu sexo.

Yousef Jabareen, um urbanista da Universidade Técnica de Technion em Haifa, que realizou um dos maiores inquéritos sobre o emprego das mulheres árabes em Israel, disse que os problemas que estas enfrentam são únicos.
“Em Israel enfrentam uma dupla discriminação, por serem mulheres e por serem árabes” disse.
A média de emprego feminino no mundo árabe é cerca de 40&. Só em Gaza, na Cisjordânia e no Iraque (onde se vive em circunstâncias excepcionais, é que encontramos taxas de emprego entre as mulheres árabes mais baixas do que em Israel.

Jabareen acrescentou que uma série de factores funcionam como obstáculos para as mulheres árabes, entre os quais políticas discriminatórias aplicadas por sucessivos governos para prevenir que a minoria árabe de 1.3 milhões, que constitui cerca de um quinto da população do pais, usufruísse de qualquer tipo de desenvolvimento económico. Estas medidas incluem discriminação generalizada nas políticas de contratação quer no sector privado quer no público, um fracasso em construir zonas industriais e fábricas perto das comunidades árabes, falta de serviço público de apoio à maternidade, quando comparado com aquele que é providenciado às comunidades judias, falta de transportes nas áreas árabes que impedem as mulheres de se deslocar a lugares onde há trabalho e falta de cursos direccionados para as mulheres árabes.

De acordo com um estudo efectuado pela associação Mulheres contra a Violência, 40 por cento das mulheres árabes detentoras de um grau académico não conseguem arranjar emprego. Aquando da entrevista, Mr Jabareen disse que 78% das mulheres desempregadas culpam a falta de oportunidade de emprego pela sua situação.
Maali Abu Roumi, de 24 anos, da cidade de Tamra no norte de Israel, tem procurado emprego como técnica de trabalho social desde que acabou o curso há dois anos. Um relatório elaborado por Sikkuy, uma organização que promove a igualdade cívica em Israel, revelou este mês que a população árabe de Israel recebe cerca de menos 70% de ajuda governamental para serviços sociais do que a população judia, e que os técnicos de serviço social árabes (numa profissão mal paga e que atrai maioritariamente mulheres) tinham uma carga de trabalho superior em 50%.
Maali Abu Roumi disse também que, para além disso, escolas Arabes, ao contrário das escolas judias não podem empregar um trabalhador social porque não têm dinheiro, e que a minoria árabe de Israel não usufruía das instituições de assistência social fundadas por judeus de outros países que ofereciam trabalho a muitos técnicos sociais judeus. “ A maior parte dos judeus com quem estudei já encontraram emprego, enquanto que muito poucos dos árabes do meu curso o conseguiram” disse. “quando um trabalho aparece, é geralmente em part-time e há sempre dúzias de concorrentes”.
O Centro de Planificação Alternativa, uma organização árabe que estuda o uso da terra em Israel, informou que em 2007, apenas 3.5 por centro das zonas industriais do país estavam localizadas em comunidades árabes. A maior parte atraia apenas pequenos negócios como oficinas de reparação de carros ou de carpintaria, que oferecem poucas oportunidade às mulheres.
“O sector privado israelita está quase totalmente fechado ás mulheres árabes devido a práticas discriminatórias dos empregadores que preferem dar emprego a judeus”, disse Mr. Jabareen. Disse ainda que o governo falhou em dar o exemplo: entre os trabalhadores governamentais, menos de 2% são mulheres árabes, apesar de vários ministros pedirem o aumento de emprego para os árabes.

A Sra Sukha sublinha: “ O serviço público é um grande empregador, mas muitos desses trabalhos ficam no centro da cidade, em Tel-Aviv e em Jerusalém, muito longe do norte, onde vive a maioria dos cidadãos árabes.
Para além disso, a maior parte não pode viajar longas distâncias para encontrar trabalho devido à escassez no fornecimento de serviços de apoio às crianças. De 1600 centros de pré-escolar públicos existentes em todo o país só 25 estão junto das comunidades árabes. Shawshan Shukha também critica o ministério do comercio e da industria dizendo que apesar de este investir muito na educação das mulheres judias só 6% das mulheres árabes frequentam cursos, sobretudo os de costura e secretariado.

Jabareen disse que de acordo com este inquérito, 56% das mulheres árabes desempregadas queria trabalhar imediatamente. “Desde 1948 que os governos israelitas culpam as barreiras culturais impedindo as mulheres árabes trabalhar da sua pobreza, mas todas as investigações mostram que o argumento é absurdo” comentou. Há centenas de mulheres árabes que competem pelos trabalhos que aparecem no mercado”.

Acrescentou que os homens árabes também enfrentam discriminação, mas encontram trabalho porque preenchem a necessidade de trabalho pesado e manual que a maior parte dos judeus recusa fazer, e viajando ainda longas distâncias para os locais das obras.
“As mulheres nem sequer têm essa opção” ajuntou. “ Não podem fazer esse tipo de trabalho e precisam de ficar perto das suas comunidades porque têm responsabilidades nas suas casas”.

O urbanista disse ainda que em média as mulheres árabes em Israel têm mais anos de escolarização do que as dos países árabes vizinhos e do que no terceiro mundo. Há até mais mulheres árabes do que homens a estudar na universidade.
“Toda a investigação levada a cabo mostra que quanto mais educada é a população, mais fácil deveria ser encontrar emprego. O caso das mulheres árabes em Israel contraria estes dados. Constituem um caso único”.
Um estudo realizado pelo Banco de Israel e publicado no mês passado sugere razões adicionais para o nível de pobreza das famílias árabes. Mostra que os homens árabes são forçados a reformar-se por volta dos 40 anos, uma década antes dos trabalhadores judeus e dos trabalhadores europeus e americanos.
Os investigadores atribuem o desemprego dos homens árabes ao facto de que a maior parte executa apenas trabalhos físicos muito exigentes e também ao facto destes trabalhadores estarem a ser substituídos por trabalhadores oriundos do terceiro mundo, que recebem menos do que o salário mínimo.


Jonathan Cook é um escritor e jornalista que vive em Nazaré. O seu site é: www.jkcook.net.

(uma versão deste artigo foi originalmente publicada em The National)

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Medicina social cubana...

Médicos do povo para o povo

Emir Sader

Há 10 anos que se estão formando as primeiras gerações de médicos de origem pobre na América Latina. Não estão sendo formados pelas excelentes universidades publicas latinoamericanas, que têm os melhores cursos tradicionais de medicina do continente. Nem falar das universidades privadas.
Eles estão sendo formados pelas Escolas Latinoamericanas de Medicina, projeto iniciado há 10 anos em Cuba e que agora já conta com uma Escola similar na Venezuela e tem projeto de ampliar-se para países como Bolívia e Equador. São selecionados estudantes por cotas de movimentos sociais-originários do movimento camponês, do movimento negro, do movimento sindical, do movimento indígena e de outros movimentos sociais -, se tornam alunos do melhor curso de medicina social do mundo e retornam a seus países para praticar os conhecimentos adquiridos não na medicina privada, mas na medicina social, pública, nos lugares que os nossos países mais precisam, sem contar normalmente com os médicos formados nas universidades tradicionais.
Cuba transformou uma antiga instalação militar - a Academia Naval Granma - em uma universidade médica latinoamericana, para que milhares de jovens privados de estudar medicina nos seus países, possam ter acesso a esse curso em Cuba e retornem a seus países para atender necessidades que não são contempladas pela medicina tradicional.
Além da melhor medicina social que se pode dispor hoje no mundo, os alunos recebem formação histórica sobre o nosso continente, respeitando-se as convicções - políticas, religiosas - de cada aluno. "Médicos dispostos a trabalharem onde for preciso, nos mais remotos cantos do mundo, onde outros não estão dispostos a ir. Esse é o médico que vai ser formar nesta Escola" - dizia Fidel na inauguração da Escola.
A primeira turma se formou em 2005. Formar um médico nos EUA custa não menos de 300 mil dólares. Cuba está formando atualmente mais de 12 mil médicos para países do Terceiro Mundo, em uma contribuição inestimável para os povos desses países. Mesmo passando dificuldades econômicas nas duas ultimas décadas, Cuba não diminuiu nenhuma vaga na Escola
Latinoamericana de Medicina - como, aliás, nenhuma vaga nas escolas cubanas, nem nenhum leito em hospital.
Desde a formação da primeira turma, em 2005, graduaram-se médicos de 45 países e de cerca de 84 povos originários. Formaram-se 1496 médicos em 2005, 1419 em 2006, 1545 em 2007, 1500 em 2008, 1296 em 2009. Os três países que tiveram mais médicos formados na Escola são Honduras, com 569, Guatemala, com 556 e Haiti, com 543. Atualmente mais de 2 mil
alunos estudam na Escola. A procedência social deles é em sua maioria operários e camponeses. As religiões predominantes são a católica e a evangélica.
A Escola em Cuba - em uma cidade contigua a Havana - é integrada por 28 edificações numa área de mais de um milhão de metros quadrados, onde os estudantes recebem o curso pré-medico e os dois primeiros anos do curso de medicina, de ciências básicas. Depois os alunos recebem o "ciclo clínico" nas 13 universidades médicas existentes em Cuba. O corpo geral de professores é de mais de 12 mil.
O Brasil também já conta com cinco gerações de médicos, formados na melhor medicina social, sem que possam exercer a profissão, propiciada pela generosidade de Cuba. Os Colégios Médicos tem conseguido bloquear esse beneficio extraordinário para o povo brasileiro, alegando que o currículo em que se formara, não corresponde exatamente ao das universidades brasileiras - uma forma corporativa de defender seus privilégios.
As nossas universidades públicas costumam ter as vagas ocupadas por alunos que se preparam muito melhor que a grande maioria, por dispor de recursos econômicos que lhes possibilitam ter formação muito superior às dos outros. Assim, em geral tem origem na classe média alta e na burguesia, que desfrutam da melhor formação que as universidades públicas possuem, gratuitamente, sem que a isso corresponda a contrapartida de exercer medicina social, nas regiões em que o país mais necessita.
Essas instituições corporativas não devem se preocupar, as centenas de médicos formados na Escola Latinoamericana de Medicina não abrirão consultórios nos Jardins de São Paulo, na zona sul do Rio ou em outras regiões ricas das capitais brasileiras. Eles irão fazer a medicina social que o Brasil precisa, atendendo a demandas que não são atendidas pelos médicos formados nas melhores universidades públicas brasileiras, mas que derivam seus conhecimentos para atender a clientelas privadas, em condições de pagar consultas e tratamentos caros.
As negociações para o reconhecimento dos diplomas dos jovens médicos solidários formados em Cuba estão em desenvolvimento, com apoio do governo brasileiro, mas ainda não chegaram a uma solução que permita o aporte dessas primeiras gerações de médicos brasileiros de origem popular.

O zapatismo e o multiculturalismo...

Os zapatistas e a ética da diferença 

Guga Dorea - Correio da Cidadania



"Contaram os mais velhos dos mais velhos que povoaram essas terras que os deuses maiores, os que nasceram o mundo, não pensavam todos da mesma maneira. Ou seja, não tinham o mesmo pensamento, cada um tinha o seu próprio pensamento e entre eles se respeitavam e escutavam (...). Dizem os mais velhos dos velhos que por isso o mundo saiu com muitas cores e formas" ¹
 
Esse comunicado, que faz parte de um diálogo do subcomandante Marcos com o lendário Velho Antônio², lança um dos pilares básicos do que venho tratando em artigos publicados pelo Correio da Cidadania nesse ano de 2009. Afinal de contas, o que é ser igual e diferente na sociedade contemporânea? Vejamos então o que esse diálogo tem a nos dizer:
 
"O Velho Antônio me disse que perguntou aos velhos mais velhos como fizeram os deuses primeiros para entrar em um acordo e conversar, se eram tão diferentes os pensamentos que sentiam (....). E então os deuses ficaram calados porque perceberam que, quando cada um dizia ‘os outros’, estava falando de ‘outros’ diferentes. (...). Assim, o primeiro acordo realizado pelos deuses mais primeiros foi reconhecer a diferença e aceitar a existência do outro".
 
O que é então, nesse contexto, aceitar a diferença no outro? Segundo o que nos tem trazido o subcomandante, não se trata de homogeneizar as relações humanas e muito menos de se fechar em guetos instransponíveis no qual o outro passa a não existir mais. Não é, portanto, que todos tenham a mesma cor e forma.
 
Para reconhecer e respeitar a existência do outro, nesse sentido, é preciso realmente escutar e tornar esse outro visível a nossos olhos, não mais o reconhecendo apenas quando suas palavras soam iguais às que "eu" quero ouvir. Não é produzir identidades fechadas, ávidas por criar estigmas a todo instante, escutando o outro somente para reafirmar superioridades frente aos negativamente rotulados como "diferentes".
 
Daí o subcomandante Marcos falar que resistir à homogeneidade não é sinônimo de fazer oposição a ela, passando a lutar para criar uma nova hegemonia dominante. A contribuição dos zapatistas, a meu ver, é justamente a de positivar as diferenças, mas não negativizando os supostos "iguais", aqueles que as estigmatizaram.
 
Ao perceber, reconhecer e respeitar a diferença existente no outro, descobrimos o que tem de diferente em nós mesmos, não mais estabelecendo hierarquias valorativas entre pessoas. Todos são diferentes e assim devem permanecer, mas sempre se diferenciando internamente a partir do encontro com o outro. É como já nos disse Paulo Freire: o eu é sempre o outro.
 
Pensando ainda no que o chamado filósofo da diferença, Gilles Deleuze, nos trouxe, não é mais pensar a diferença no outro e sim no que emerge de diferente em mim diante do que esse outro me revela. É o que Deleuze e também Guattari chamaram de devir outro em mim. Para o Velho Antônio, é no princípio da escuta que realmente conhecemos o outro e consequentemente a nós mesmos:
 
"Depois desse primeiro acordo a discussão continuou, porque uma coisa é reconhecer que existem outros diferentes e outra muito distinta é respeitá-los. (...). Depois todos se calaram, cada um falou de sua diferença e cada outro dos deuses, que escutava, percebeu que, escutando e conhecendo as diferenças do outro, mais e melhor conhecia a si mesmo no que tinha de diferente".
 
Segundo o subcomandante Marcos, nesse diálogo imaginário (ou não), o Velho Antônio saiu do local em que conversavam sem que ele percebesse. Quando notou a sua ausência, disse ele:
 
"O mar já está dormindo e do toquinho de vela resta apenas uma mancha disforme de parafina. Em cima, o céu começa a diluir sua negritude na luz da manhã ...."
 
Não querendo promover aqui nenhuma análise literária de mais esse poético comunicado, talvez seja possível afirmar que o subcomandante prefigurou o que seria um encontro entre dois fenômenos aparentemente distintos: uma espécie de dialética entre a noite e o dia. Realizando um paralelo, pode significar que em um possível encontro, entre formas de ser não hierarquizadas, cada pessoa pode embarcar em sua própria diferença interna, transformando o pressuposto homogeneizante no qual o que prevalece, nos relacionamentos humanos, são interesses individuais e egocêntricos.
 
Como pensar então em relações entre diferenças a partir de contextos em que o outro é invisível? Os zapatistas nos mostram justamente o contrário. Eles dão visibilidade ao outro quando lutam e desejam "um mundo onde caibam todos os mundos". Essa é uma metáfora, invocada a todo instante por eles, em que a diversidade é exaltada, ressaltada, aceita e, sobretudo, reconhecida, podendo nos remeter ainda a um debate filosófico dos mais prementes: o que vem a ser, enfim, a natureza humana? Os seres humanos nascem iguais ou diferentes?
 
Não há uma resposta verdadeira e muito menos científica para este dilema. No entanto, podemos resgatar o sociólogo Edgar Morin: somos iguais como seres humanos e diferentes em nossas singularidades. Nesse contexto, os zapatistas não caem na armadilha de um multiculturalismo em que as diferenças se fecham em si mesmas, não mais reconhecendo o outro em sua diferença não hierarquizada.
 
Os zapatistas não querem homogeneizar e muito menos serem homogeneizados. Eles não buscam, enfim, uma identidade fechada, na qual a presença do outro não faz a menor diferença. O outro, dos zapatistas, não são apenas os indígenas e sim todos aqueles que, por motivos culturais e históricos, não quiseram ou não se adaptaram ao modelo de vida imposto pelo processo "civilizatório" moderno. Nesse sentido, retomando o Velho Antônio,
 
"É bom que haja outros que sejam diferentes e que é preciso escutá-los para conhecer a si mesmo".
 
Notas:
 
¹ Ver "A História dos Outros", in Di Felice, Massimo & Munôz, Cristobal, "A Revolução Invencível: subcomandante Marcos e o Exército Zapatista de Libertação Nacional – Cartas e Comunicados", ed. Boitempo, São Paulo, 1998.
 
² O Velho Antônio foi um indígena mexicano que, através desses diálogos com o subcomandante Marcos, comunicou e divulgou a tradição de seus antepassados. Muitos desses diálogos podem ser interpretações ou mesmo criações do sub, mas o fato é que eles existiram.
 
Guga Dorea é jornalista e cientista político, atualmente integrante do Instituto Futuro Educação e pesquisador colaborador do Projeto Xojobil.

Dependência Congolesa...

Como os credores decidem o destino do Congo

por Renaud Vivien e Damien Millet [*]
Reunião do Clube de Paris. Os 19 países credores que constituem o Clube de Paris [1] reuniram-se a 18 de Novembro para examinar o caso da República Democrática do Congo (RDC), após dois relatórios ligados à revisão do muito controverso contrato chinês. Este contrato, que hipoteca gigantescas quantidades de minerais em proveito da China em troca da construção de infraestruturas na RDC, pôde finalmente ser revisto no sentido desejado pelos prestamistas de fundos ocidentais representados pelo FMI [2] . A seguir a isto, o assunto parecia resolvido: o Clube de Paris iria conceder as garantias financeiras pedidas pelo FMI para concluir um novo programa de três anos com o governo congolês daqui até o fim de 2009 e apagar no princípio de 2010 um parte importante da dívida externa pública. Longe disso! O Clube de Paris decidiu, por sua vez, "castigar" a RDC exigindo a manutenção de dois contratos leoninos assinados com transnacionais ocidentais.

O Clube de Paris prova mais uma vez que é uma instância governada pelo Norte na qual os países do Sul não desempenham senão um papel de figurante. Nenhum membro do governo congolês foi convidado às discussões efectuadas em Bercy, no Ministério francês das Finanças, ou tem sede o Clube de Paris. Este clube define-se como uma "não-instituição", não tendo personalidade jurídica. A vantagem é clara: o Clube de Paris não incorre em nenhuma responsabilidade quanto aos seus actos e não pode portanto ser processado na justiça uma vez que oficialmente não existe!

Contudo, as suas decisões têm consequências pesadas para as populações do Terceiro Mundo pois é no seu seio que é decido, em concerto com o FMI e o Banco Mundial, se um país endividado do Sul "merece" um reescalonamento ou um alívio da dívida. Quando ele dá sinal verde, o país em causa, sempre isolado face a esta frente unida de credores, deve aplicar as medidas neoliberais ditadas pelos prestamistas de fundos, cujos interesses confundem-se com o sector privado.

Hillary Clinton no Congo. A 18 de Novembro último, a vítima foi a RDC uma vez que o Clube de Paris decidiu ir além da simples revisão do contrato chinês exigida pelo FMI ingerindo-se ainda mais nos seus contratos mineiros, domínio que entretanto tem a ver com a soberania permanente da RDC, conforme do direito internacional e o artigo 9 da sua Constituição.

Oficialmente, é o risco do aumento da dívida congolesa, ligado à garantia de Estado inicialmente prevista no contrato chinês, que havia justificado a ingerência do FMI nos assuntos internos congoleses.

Mas na realidade, a RDC, a exemplo de outros países africanos cheios de recursos naturais, é o teatro de uma competição encarniçada entre os países ocidentais e a China, cujo apetite não cessa de crescer ao ponto de ser hoje o terceiro parceiro comercial para a África, após os Estados Unidos e a França. O Clube de Paris é portanto o instrumento que os países ocidentais têm utilizado, nomeadamente o Canadá e os Estados Unidos, para exigir do governo congolês que ele volte atrás na sua decisão de rescindir o contrato que deu origem ao consórcio Kingamyambo Musonoi Tailings (KMT) e revise a convenção criando a Tenke Fungurume Mining (TFM), nas quais os Estados Unidos e o Canadá têm interesses importantes.

Os prestamistas de fundos ocidentais aplicam a política do "dois pesos, duas medidas" conforme se trate de um contrato concluído com a China ou com uma empresa ocidental. Os interesses do sector privado prevalecem sobre as considerações de legalidade e de desenvolvimento uma vez que o carácter fraudulento destas duas convenções foi relatado pela Comissão de "revisitação" dos contratos mineiros, estabelecida na RDC em 2007 [3] . Os Estados do Norte servem-se do Clube de Paris e das instituições financeiras internacionais, onde estão sobre-representados, como um cavalo de Tróia para açambarcar os recursos nacionais do Sul.

Foi o trio infernal — Clube de Paris, FMI, Banco Mundial — que a partir de 2002 organizou o branqueamento da dívida odiosa da RDC reestruturando os atrasados deixados pelo ditador Mobutu. Tratava-se na época de emprestar dinheiro ao governo para apurar as velhas dívidas do ditador, permitir ao governo de transição endividar-se de novo mas impondo-lhe políticas anti-sociais, nomeadamente um novo Código Mineiro muito favorável às transnacionais.

Em 2009, a dívida continua a asfixiar o povo congolês cujos direitos humanos fundamentais são espezinhados para assegurar o reembolso do serviço da dívida. Apesar dos efeitos de anúncio dos credores que prometiam uma anulação da dívida congolesa, esta eleva-se hoje a 12,3 mil milhões de dólares, ou seja, o equivalente à soma reclamada à RDC no momento da morte de Laurent Désiré Kabila em 2001... Ora, esta dívida é o arquétipo de uma dívida odiosa, nula em direito internacional pois ela foi contratada por uma ditadura, sem benefício para a população e com a cumplicidade dos credores. O governo congolês poderia portanto repudiá-la, o que lhe permitiria além disso não aceitar os diktats do Clube de Paris.

Para o CADTM, a chantagem do Clube de Paris não é uma surpresa: esta instância ilegítima é, desde a sua criação, ao mesmo tempo juiz e parte. Ela deve portanto pura e simplesmente ser abolida, assim como a dívida da RDC.

Nesse meio tempo, o governo congolês deve suspender unilateralmente o pagamento desta dívida, a exemplo do Equador em Novembro de 2008 e da Argentina que em 2001 havia decretado a mais importante suspensão de pagamento da dívida externa da História, mais de 80 mil milhões de dólares, tanto em relação aos credores privados como em relação ao Clube de Paris, e isto sem que tivesse lugar represálias.

A crise económica necessita actos fortes e imediatos contra a dívida e em proveito dos povos. Para assim fazer, os países do Sul teriam todo o interesse em constituir uma frente unida pelo não pagamento da dívida.


  [1] Instituição informal que se reuniu pela primeira vez em 1956, composta hoje por 19 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Japão, Noruega, Países Baixos, Reino Unido, Rússia, Suécia e Suíça. Para uma análise pormenorizada, ler Damien Millet e Eric Toussaint, 60 Questions, 60 Réponses sur la dette, le FMI et la Banque mondiale , CADTM-Syllepse, 2008, p 21.
[2] "L'ingérence sournoise du FMI et de la Banque mondiale en République démocratique du Congo " , por Renaud Vivien, Yvonne Ngoyi, Victor Nzuzi, Dani Ndombele, José Mukadi et Luc Mukendi, Réseau Voltaire, 8 octobre 2009.
[3] "Au terme de la revisitation, Contrats miniers : 23 maintenus, 14 résiliés, 2 à finaliser" , Groupe @venir CD, 16 novembre 2009.


[*] Dirigentes do Comité pour l’annulation de la dette du tiers-monde ( CADTM )

O original encontra-se em http://www.voltairenet.org/article163150.html e em
http://www.cadtm.org/Comment-les-pays-creanciers


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Texto de José Arbex Jr....

A César o que é de César


Por José Arbex Jr, na novaE


Quando comecei a ler o já famoso texto de César Benjamin: “Os filhos do Brasil”, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 27 de novembro, fiquei orgulhoso de ser da esquerda. E mais ainda: de ter compartilhado com o autor do texto alguns momentos emocionantes de nossa luta comum, como o final da marcha do MST para Brasília, em 1997, quando me encontrei pessoalmente com ele, pela primeira vez. Os parágrafos iniciais do texto são primorosos. Muito bem escritos, compõem uma narrativa densa, sedutora, que vai criando no leitor uma vontade de querer saber mais sobre uma história que nunca foi contada direito: a história da ditadura militar, dos porões, das torturas, das prisões, dos seres humanos condenados à ignomínia. Benjamin soube retratar com grande humanidade os seus companheiros temporários de cela. Resgatou-lhes a história, a identidade, a face profundamente humana.
Mas aí, veio a facada, o golpe inesperado, a decepção, a tristeza profunda. Benjamin relatou, no mesmo texto, uma conversa supostamente mantida com Luís Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 1994, durante a campanha à Presidência do Brasil. Lula teria “confessado”, então, entre amigos, que, na prisão, tentou seduzir, sem sucesso, um militante de uma organização de esquerda. Benjamin faz uma comparação entre o assédio descrito por Lula e o temor que ele mesmo, Benjamin, sentiu, quando preso, de ser “currado” por outros detentos.
Não entendi nada. Li de novo, reli, tentei buscar alguma ironia oculta, algo que justificasse, no plano do próprio texto, o absolutamente injustificável paralelo entre estupradores que pululam nas prisões brasileiras – em geral, seres humanos reduzidos a condições quase completamente animalescas pelo próprio sistema carcerário, e/ou por uma vida anterior mergulhada na mais profunda miséria econômica, ideológica e afetiva – e Lula, que não estuprou ninguém, mas que, supostamente, comentou ter sentido o desejo de manter relações sexuais com um companheiro de cela que não cedeu aos seus desejos. Não quis acreditar que alguém dotado com os recursos intelectuais de Benjamin, adquiridos ao longo de sua longa história de luta pela liberdade e pela dignidade humana, pudesse cair em um pântano tão sórdido e profundo. Mas não encontrei nada no texto de Benjamin que permitisse uma interpretação positiva. Ou melhor: encontrei “o” nada: o vazio absoluto; vazio de sentido, o vazio da total falta de perspectivas, o vazio de um rancor desmedido.
(Antes de prosseguir, esclareço logo: não sou e nunca fui “lulista”; não sou mais já fui petista; não simpatizo com a maioria das medidas de governo adotadas por Lula, e por isso sou totalmente favorável à crítica de esquerda ao seu governo. Mais precisamente, creio que Lula pode e deve ser criticado por aquilo que fez, mas acho muito estranho ele ser atacado por aquilo que NÃO praticou.)
Vamos agora considerar, por um segundo, que Lula realmente fez o que supostamente disse ter feito. Isto é, que em dado momento tentou seduzir – seduzir, note bem, não estuprar -- o colega de cela. E daí? O que se pode concluir disso? Qual seria, nesse caso, o crime de Lula? O exercício, o desejo da homossexualidade? Estaremos, então, diante de um texto homofóbico?
Ainda segundo o próprio Benjamin, como já observado, Lula teria comentado o caso numa roda de amigos. Estamos, então, diante de um gravíssimo precedente, aberto pelo próprio Benjamin. De hoje em diante, todos teremos que suspeitar dos nossos amigos, teremos que nos policiar para que nossas palavras não sejam, eventualmente, atiradas contra nós por algum “traíra”, algum “dedo duro”, algum “cagueta”, algum Judas, algum oportunista que resolva tirar proveito de uma situação de cumplicidade. Revivemos, então, a era da delação (Premiada? Que o prêmio, no caso, teria sido pago a Benjamin?), a era da intriga, da fofoca, da futrica, da artimanha, da safadeza. Que vergonha! (Isso tudo me faz lembrar a famosa oração de Marco Antônio, no brilhante texto de Shakespeare: “Poderoso César, terás então descido a tão baixo nível?”)
Benjamin utilizou a imprensa dos patrões para atacar um expoente do movimento de esquerda do Brasil. Claro, claro, claro: sempre se pode alegar que Lula não é de esquerda, como ele mesmo já disse e como eu, pessoalmente, avalio. Mas há um abismo entre considerações de caráter individual, feitas por indivíduos privados e isolados, ou mesmo por grupos e seitas, e a realidade política concreta, historicamente determinada pela luta de classes. No contexto brasileiro, em que as alternativas concretas ao governo Lula (e à sua imagem refratada Dilma Rousseff) são figuras sinistras como as de José Serra e Aécio Neves, Lula surge como um expoente à esquerda do espectro político, com algumas conseqüências importantes para a luta de classes na América Latina: por exemplo, a condução exemplar do governo brasileiro no caso de Honduras (embora feiamente chamuscada pelo desastre no Haiti), a recusa em avalizar o acordo das bases militares estadunidenses com a Colômbia e a denúncia permanente do bloqueio de Cuba. Para não mencionar o fato de que a figura de Lula, malgré lui même, inspira movimentos de resistência ao capital em todo o mundo. Disso não se conclui, automaticamente, que a esquerda deva, necessariamente, apoiar o governo Lula, ou mesmo apostar na eleição de Dilma. Ao contrário, deve aproveitar as contradições, os paradoxos e as ambigüidades para fortalecer o seu próprio campo. Mas Benjamin preferiu fortalecer as correntes representadas pelo jornal dos campos Elíseos.
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital. Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos jornais para os quais hoje escreve.
Todo o encanto produzido pelos primeiros parágrafos do texto de César Benjamin foi transformado em fel a partir do momento em que se instaurou a delação, o oportunismo, o absurdo. Lula não estuprou o seu companheiro de cela, mas Benjamin violentou, com alto grau de sadomasoquismo, a própria consciência e uma história repleta de glórias. Requiescate in pace

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

A revolução no país de um bilhão de habitantes

Povo adivasi responde com luta à campanha contra-revolucionária

Em 19 de novembro a imprensa indiana noticiou um contundente ataque atribuído aos combatentes do Exército Guerrilheiro Popular de Libertação – EGPL, dirigido pelo Partido Comunista da Índia (Maoísta), que descarrilou um trem em Orissa, estado localizado no golfo de Bengala. Uma explosão nos trilhos fez com que cinco vagões descarrilassem instantes após a sua partida da estação de Jaipur.

Essa ação do EGPL ocorreu apenas uma semana após uma greve geral deflagrada em resposta aos ataques do Estado reacionário indiano contra os adivasis (comunidades tribais) em Bengala Ocidental e o movimento naxalita encabeçado pelo PCI (Maoísta). Intelectuais e personalidades democráticas indianas denunciam campanha genocida perpetrada pelo velho Estado, denominada "caçada verde", que espalha o terror nas regiões de florestas e nas regiões agrárias da Índia.

Greve geral contra perseguição policial

Uma greve geral convocada pelo Comitê Popular Contra as Atrocidades Policiais paralisou diversas atividades no distrito de Jhargram, em Bengala Ocidental, região com predominante população adivasi e intenso trabalho dos naxalitas. O Bandh (como é chamada a greve geral pelos indianos) foi convocado em 11 de novembro, quando ativistas do Comitê foram atacados pelas forças policiais e os planos do governo central de enviar uma grande força paramilitar para as zonas de floresta.
Há exatamente um ano, uma grande mobilização adivasi se desdobrou em mais de um mês de enfrentamentos nessa mesma região que engloba os departamentos de Lalgarh, Jhargram, Belpahari, Binpur e zonas vizinhas do Midnapore Ocidental (ver AND 56)
A revolta das massas transbordou na forma de violentos protestos. O periódico indiano The Hindu e a agência BBC noticiaram paralisações armadas nos estados de Bihar, onde o movimento paralisou todos os mercados das zonas rurais; no Jharkhand, a circulação de caminhões e locomotivas, bem como a extração de carvão foram paradas; Chhattisgarh, Maharashtra, Andhra Pradesh e Bengala Ocidental foram fortemente atingidos pela mobilização.

Campanha contra-revolucionária

Após o início de uma campanha de difamação na imprensa, no dia 5 de outubro, a polícia do Bengala Ocidental prendeu, em Calcutá, Raja Sarkhel e Prasun Chatterjjee, conhecidos ativistas de Bengala Ocidental e importantes membros da Frente Democrática Revolucionária, acusando-os de "ligação com o PCI (Maoísta)".
A reação passou a praticar todo tipo de abuso abrigada pela "Lei de Prevenção de Atividades Ilícitas", de 2008, que autoriza a prisão arbitrária de pessoas por "associação", mesmo que não haja nenhuma acusação específica contra elas. Antes mesmo dessas prisões, em 26 de setembro, policiais que se apresentaram como jornalistas sequestraram Chhatradhar Mahato, conhecido líder do Comitê Popular Contra as Atrocidades Policiais em Lalgarh.

Vozes se levantam em defesa dos adivasis


Adivasis com arcos e flechas em apresentação cultural celebrando os 40 anos do levantamento de Naxalbari
Em meados de outubro, representantes da intelectualidade indiana e de outros países emitiram um "Comunicado contra a ofensiva militar do Governo da Índia nas regiões habitadas pelos adivasis" que foi encaminhado ao governo indiano.
Em seu comunicado, os intelectuais declaram estar "profundamente preocupados com os planos do governo indiano de lançar uma ofensiva militar sem precedentes do exército e das forças paramilitares nas regiões habitadas pelos adivasis nos estados do Andhra Pradesh, Chhattisgarh, Jharkhand, Maharashtra, Orissa e Bengala Ocidental."
O comunicado é assinado por destacados intelectuais indianos, entre eles a escritora e ativista dos direitos do povo Arundhati Roy, professores, artistas e defensores da luta dos adivasis e do povo indiano, bem como o conhecido professor Noam Chomsky, entre outros.
Esse conjunto de corajosos intelectuais encerrou seu comunicado declarando saberem que a ofensiva do Estado indiano é uma tentativa de esmagar a resistência popular de forma a facilitar a entrada e a operação de grandes grupos de empresas que visam exploração dos recursos naturais e dos habitantes dessas regiões.

"Caçada verde"

A "operação caçada verde" é uma campanha de contra-insurgência em escala sem precedentes na Índia que tenciona enviar um dispositivo de cem mil soldados e outras forças de repressão para as montanhas selváticas da Índia oriental e central para esmagar a rebelião dos adivasis e atacar as bases de apoio naxalitas.
Vários defensores do povo adivasi e personalidades indianas têm alertado para o desenrolar dos fatos, particularmente a escritora Arundhati Roy, que vem desenvolvendo uma intensa militância na defesa do povo indiano e denúncia das campanhas do velho Estado.
Ela ataca veementemente essa operação reacionária cujo fim é o que o governo chama de "solução Sri Lanka". Essa denominação, de acordo com Arundhati Roy, é inspirada na recente ofensiva do governo do Sri Lanka com ataques terrestres e aéreos deflagrados contra os Tigres Tamil. Essa ofensiva resultou no massacre de milhares de civis. Centenas de milhares de pessoas foram presas em campos de concentração, onde a maioria ainda encontra-se em condições degradantes. Após essa agressão, bases militares estão sendo construídas no coração Tâmil. Eis o modelo seguido pelo Estado indiano.
Surge a milícia popular

No dia 26 de outubro último, o jornal Times da Índia noticiou:

O Comitê Popular Contra as Atrocidades Policiais, fórum democrático de luta do povo indiano, se transformou em uma milícia popular, a Milícia Sidhu Kanu Gana .

O anúncio do assumimento dessa nova forma de organização veio após a tomada de 10 armas por militantes e a realização de ações armadas em Goaltore. A porta-voz do antigo Comitê Popular Contra as Atrocidades Policiais, Asit Mahato, explicou que a decisão para a substituição das formas de organização ocorreu após o enfrentamento de contínua tortura e ataques por parte do governo, daí partiu a decisão de pegar em armas para combater as forças do velho Estado.

Notícias da imprensa indiana relatam que aldeões realizam tomadas de armas de fogo em delegacias e as distribuem entre as massas. Desde a manhã do dia 26 de outubro as forças de repressão tem sido surpreendidas por ações da resistência nas aldeias como Teshkan, Makli e Hiraban-DH.

"Certamente venceremos o governo"

Traduzida do francês por Beatriz Torres
(Trechos da entrevista publicada pela revista Open, de 17 de outubro de 2009)
À primeira vista, Mupalla Laxman Rao, que em breve fará 60 anos, parece ser um professor, de fato, ele lecionava, no início de 1970, no distrito de Karimnagar, em Andrah Pradesh. Mas em 2009, este homem de voz suave, usando óculos, tornou-se o homem mais procurado por toda a polícia da Índia. Ele dirige uma das mais importantes guerras populares do mundo. É um homem comum chamado Ganapathi, segundo o dossiê do Ministério do Interior, um homem cujas ordens são cumpridas em 15 estados da União.
 
Lalgarh foi descrita como uma nova Naxalbari para o PCI(M). Por que esta sublevação teve tanta importância para você?
O levantamento das massas, em Lalgarh, sem dúvida alguma levou novas esperanças ao povo oprimido e a todo o campo revolucionário em Bengala Ocidental. Ele ocasionou um impacto grandiosamente positivo, não somente sobre as pessoas de Bengala Ocidental, como também sobre as pessoas do país inteiro. O levante revelou-se como um novo modelo para o movimento de massas no país. O povo de Lalgarh boicotou a recente eleição do legislativo, mostrando também sua ira e decepção contra todos os partidos reacionários. Em Lalgarh ocorreram outros fatos interessantes: uma grande participação das mulheres no movimento, um caráter autenticamente democrático e uma imensa mobilização dos Adivasis (membros de tribos, párias da sociedade indiana). Não há dúvida que é o ponto de união das forças revolucionárias democráticas de Bengala Ocidental.
 
Como os maoístas irão se unir a ele este movimento?
No que concerne ao papel do nosso Partido, temos trabalhado nos distritos de Paschim, Midnapur, Bankula e Perulia, região que depois dos anos de 1980 passou a ser chamada habitualmente de Jangalmahal. Nela temos combatido as forças feudais locais, a opressão e a exploração dos funcionários florestais, os usurpadores inescrupulosos, os capitalistas e os bandidos do Partido Comunista da Índia (Marxista) – no Poder do Estado de Bengala Ocidental – e os do Congresso Trinamool. Em particular, o PCI (Marxista) tornou-se o principal opressor e explorador dos Adivasis da região e tem utilizado seus bandidos de sinistra reputação, os Harmad Vahini, contra todos os que contrriam sua autoridade. Com o poder do Estado nas mãos e com a ajuda da polícia o PCI (Marxista) desenvolve um papel ainda mais nefasto que os feudais, os mais cruéis de todas outras regiões do país.
 
Qual é sua estratégia agora em Lalgarh depois da ofensiva massiva das forças do Estado?
Antes, gostaria que ficasse bem claro que nosso Partido vai contra-atacar e que se manterá firme ao lado do povo de Lalgarh, de toda a Jangalmahal e que terá uma estratégia conforme o mando e o interesse do povo. Nós iremos estender, por todas as partes, a luta contra o Estado e nos esforçaremos para levar toda a massa a abraçar a causa do povo. Combateremos a ofensiva do Estado mobilizando com mais empenho as massas contra a polícia, as milícias e os bandidos do PCI (Marxista).
 
Em sua opinião, seu partido tirou alguma lição em Lalgarh?
Sim. Sua revolta ultrapassou nossas expectativas. Realmente, foi a base do povo, com a ajuda dos elementos mais avançados, influenciada pelas idéias políticas revolucionárias, que desempenhou o papel determinante ao indicar as formas da luta. Ela constituiu sua própria organização, redigiu sua plataforma de reivindicações, inventou novas formas de luta e enfrentou a agressão da polícia e dos bandidos social-fascistas dos bandos da Harmad. Ao expandir a frente de combate ao máximo possível, adotando práticas adequadas, combinando o movimento militar/político de massa com a resistência popular armada e a ação do nosso Exército Guerrilheiro Popular de Libertação (EGPL) infligimos derrota na ofensiva massiva das forças do governo Central.
 
O Estado qualifica o PCI (Maoísta) uma organização terrorista. Quais são as consequências para seu Partido?
O governo da UPA (Aliança Progressiva Unida – que governa a Índia) iniciou seu último mandato anunciando que destruiria a "ameaça" maoísta e se propôs a despejar enormes somas de dinheiro nos estados com esta intenção. A causa imediata foi a pressão exercida pela burguesia compradora e burocrática e os imperialistas, em particular o imperialismo ianque, que querem saquear os recursos de nosso país sem qualquer entrave. Esses tubarões aspiram as abundantes riquezas naturais, minerais e florestais de uma vasta região que se estende desde Jangalmahal até o norte de Andrah Pradesh.
Uma outra razão importante da ofensiva atual das classes dirigentes é o medo do rápido crescimento do maoísmo e sua crescente influência sobre uma significativa parte da população da Índia. Os governos populares de Dandakaranya e os comitês populares revolucionários de Jharkand, em Orissa, e em setores de outros estados, tornaram-se modelos de desenvolvimento e de autênticas democracias.
 
Qual é o seu plano para resistir a essa grande ofensiva preparada pelo Estado indiano?
Os sucessivos governos centrais e de diferentes estados desenvolveram muitos planos neste sentido durante muitos anos. Mas eles não obtiveram nenhum sucesso importante apesar de seus atos de crueldade e morte de centenas de nossos quadros e de nossos dirigentes. Nosso Partido e nosso movimento continuam a se consolidar e a se estender geograficamente. Dos dois ou três estados iniciais agora estamos ativos em mais de 15, o que provoca pânico nas classes dirigentes. Sobretudo depois da fusão do antigo Centro Comunista Maoísta da Índia e do Partido Comunista da Índia (marxista-leninista) (Guerra Popular) em setembro de 2004 (a fusão da qual nasceu o PCI Maoísta), o governo da UPA deslanchou uma ofensiva geral e sem piedade contra o movimento maoísta. Mas nosso Partido continuou seu crescimento apesar de algumas perdas importantes. Particularmente, nestes três últimos anos nosso exército obteve muitas vitórias importantes.
Apoiado e com a participação das massas, nós nos confrontamos com sucessivos ataques do inimigo. Continuaremos a enfrentar a nova ofensiva do inimigo enaltecendo o nível desta resistência heróica e preparando a totalidade do Partido, o Exército de Libertação, os diversos partidos e organizações revolucionárias populares. Embora que o inimigo possa obter algum sucesso na fase inicial de sua ofensiva, certamente nós nos preveniremos e venceremos a ofensiva governamental graça à mobilização ativa das massas e a sustentação de todas as forças revolucionárias e democráticas de todo o país. Nenhum regime fascista ou qualquer ditador militar na História conseguiu suprimir com o uso da força bruta as lutas democráticas e justas do povo. Pelo contrário, na devida hora eles foram e sempre serão banidos pela maré montante da resistência popular. É o povo que faz a História, e ele se erguerá como um furacão, sob a direção de nosso Partido, para eliminar os vampiros reacionários sugadores de sangue, os dirigentes de nosso país.

O pampa detonado...

Barragem do Jaguari terá um custo 159% acima da previsão original, diz engenheiro

 
“A barragem do arroio Jaguari (em Lavras do Sul) custará muito mais do que foi anunciado pelo governo do estado. Isto faz com que seus enormes impactos ambientais, somados ao desperdício de dinheiro público, constituam-se em uma enorme afronta aos contribuintes, ao povo gaúcho, e aos proprietários que serão inundados por seu reservatório. Os custos serão aumentados por conta de problemas de estabilidade da fundação e pelo custo de um canal de adução que transportará a água aos seus usuários finais, irrigantes de arroz na maior parte”.
A avaliação é do engenheiro Antônio Eduardo Lana, em seu blog Notícias do Pampa. Formado em Engenharia Civil pela UFRJ, mestre em Hidrologia Aplicada pela UFRGS e Ph.D na área de planejamento e gestão de recursos hídricos pela Colorado State University (EUA), Lana diz que a inadequação do local em que está sendo implantada a barragem, devido a problemas de fundação era amplamente conhecida no meio técnico gaúcho.
O terreno é formado por rochas fraturadas, intercaladas com bolsões de areia. Por falta de sondagens mais detalhadas, que não foram realizadas para subsidiar a escolha do local e do projeto, constata-se agora o que era esperado: a consolidação desta fundação tem custo orçado em R$ 35 milhões. Isto decorre da necessidade de serem administradas injeções de concreto para consolidar as fraturas existentes nas rochas.Tudo pela incompetência dos promotores da obra, que não usaram das técnicas disponíveis, na urgência de “tocar o projeto de qualquer jeito”.
Como a barragem tem seu preço orçado em R$ 85 milhões, diz ainda o engenheiro, os R$ 35 milhões adicionais representam 41% do orçamento e, pela legislação, não podem ser cobertos por aditivo de preço ao contrato, com aporte de recursos da parte que verdadeiramente a financia: o governo federal. “A legislação limita a 25% os aditivos de preço, algo em torno de R$ 13 milhões. Caberá ao Estado buscar cerca de R$ 22 milhões de recursos próprios para investir na obra, caso o governo federal aceite aportar a parte adicional. Mais do que era previsto originalmente como contrapartida do Estado!”, acrescenta.
O engenheiro relata ainda que o Secretário Extraordinário de Irrigação e Usos Múltiplos da Água, anunciou em reunião recente no Comitê da Bacia do rio Santa Maria, que o canal revestido que deverá ser construído para levar a água da barragem às áreas de irrigação de arroz que serão beneficiadas, terá custo da ordem de R$ 100 milhões. Ou seja, maior que o custo inicialmente orçado da barragem. Ele questiona:
“Cabe perguntar se é lícito que o dinheiro dos contribuintes seja usado para implantação de um canal que vai aduzir água para um pequeno número de irrigantes, privatizando assim recursos públicos. Em um país e em um Estado verdadeiramente sério, este investimento deveria correr por conta dos seus beneficiários diretos. Contudo isto nunca ocorrerá por uma razão muito simples: o que o arroz irrigado gerará de receita não é suficiente nem para pagar os R$ 85 milhões da barragem, menos ainda os R$ 100 milhões do canal, e muito menos ambos os investimentos”.
E resume a conta do desperdício de recursos públicos - até agora
1. Custo originalmente anunciado da barragem do Jaguari: R$ 85 milhões;
2. Custo da consolidação das fundações: R$ 35 milhões;
3. Custo do canal: R$ 100 milhões;
4. Total estimado da obra, até agora: R$ 220 milhões

A Polícia Federal indiciou o secretário estadual de Irrigação, Rogério Porto, no inquérito que apura tentativa de fraude no processo de licitação para a construção das barragens de Jaguari e Taquarembó.
Foto: Antônio Paz/Palácio Piratini

Pobre Colômbia...

Uribe, rei da salsa

 Emir Sader

A Colômbia é um país anestesiado. Ou, pior, dependente de um mecanismo diabólico. Com a Operação Colômbia, os EUA exportaram maciçamente não apenas armas, tropas, aviões, mas também seu mecanismo clássico de buscar responsáveis pelos seus problemas nos outros.

No próprio tema das drogas, o país que detém o maior mercado consumidor do mundo e a sociedade que depende das drogas, acusa os países produtores como responsáveis de atender à sua milionária demanda. Ao mesmo tempo, nenhum grande traficante está preso nos EUA, em condições que o comércio de drogas movimenta cifras incalculáveis nesse país.

No caso da Colômbia, o uribismo é o mecanismo pelo qual se busca a culpa pelos problemas do país não na miséria, na desigualdade, na injustiça, na corrupção, no narcotráfico, nas políticas neoliberais, na violência, mas nas Farc, primeiro, na Venezuela, depois.

A senadora Piedad Córdoba, que tem uma notável atividade de busca de soluções políticas aos conflitos internos, tendo sido a responsável pela liberação de vários presos e segue empenhada nessa louvável ação, é diabolizada pelo governo e pela imprensa, ao invés de ter apoiada sua candidatura ao Prêmio Nobel da Paz – de que é merecedora, mesmo se não fosse em comparação com o presidente dos EUA, Obama, cujo governo, além da continuação da invasão e das guerras no Iraque e no Afeganistão, está instalando 8 bases militares na Colômbia, elevando a militarização do país.

Piedad Córdoba vive agredida pelo governo e pela imprensa, por vários setores da sociedade que não conseguem aceitar que há uma via política, pacífica, de negociação, para os problemas do país. O país se tornou uribedependente, viciado nos argumentos de que a violência só se combate com mais violência, de que os problemas da Colômbia estão na existência das Farc e em países vizinhos que ameaçariam o país. Mesmo com a instalação de bases militares norteamericanas no país, em que documento oficial dos EUA afirma que, pelo menos uma delas – a de Palanquero – servirá para operações militares sobre o conjunto da região -, fecham-se os olhos para a violação da soberania nacional e para o fato de que isso representa o perigo para a convivência pacífica na região.

Ameaçam não apenas a Venezuela, a Bolívia, o Equador, mas o Brasil, a Argentina, o Paraguai, o Uruguai e o Chile – todos os países que detêm riquezas cobiçadas pelos EUA e que desenvolvem políticas que não obedecem a Washington da maneira subserviente que o faz Colômbia.

Uribe sobrevive, apesar dos escândalos ligados à violência, ao paramilitarismo, ao narcotráfico, que seguem sendo revelados, porque submeteu o país à chantagem da “segurança democrática”, em que supostamente somente ele poderia garantir a paz no país. Como? Com mais violência, com a militarização da Colômbia, tornando-se uma base militar nortemaericana, fortalecendo ainda mais os paramilitares e os narcotraficantes.

Se Berlusconi foi eleito o rei do rock pela Rolling Stones italiana, Uribe merece ser eleito o rei da salsa. Pelo poder de representação que desenvolve, pelo ritmo frenético com leva a Colômbia no caminho da sua perdição, pelas formas farsantes com que atua, tornando-se um artista do incentivo à violência, ao ódio, um enganador. Não um governante, que defenda os interesses do país, que coloque em prática as políticas que façam com que a Colômbia deixe de ser um país em que a economia cresce, mas os índices sociais continuam piorando.

Uma Colômbia pacífica, que se concentre na ação contra os seus reais problemas, precisa de outro tipo de governo. Da mesma forma que a América Latina integrada, soberana, justa, solidária, precisa de uma Colômbia democrática, justa, pacífica, amiga e não inimiga dos seus vizinhos. Uma Colômbia de vallenato, cumbia, salsa, dançadas e cantadas pelo seu povo musical e hospitaleiro e não pela farsa de governantes que a mantêm no limite da guerra, para tentarem se perpetuar no poder.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Rumo a Confecom...


A boa hora da comunicação alternativa

Por Flávio Aguiar, da Carta Maior


Uma boa parte da mídia alternativa no Brasil se faz com organizações do tipo empresarial, ainda que, em geral, sejam pequenas ou médias empresas (ou cooperativas), por oposição às grandes corporações que dominam os mercados privados publicitários e/ou de concessão de verbas públicas. Está mais do que na hora de se buscar regras de financiamento que, para além das visões mercadológicas estreitas, garantam uma verdadeira pluralidade na construção da informação no Brasil.

Surge em boa hora a proposta de criação de uma Associação Brasileira de Empresários da Comunicação Alternativa. Ela vem maré montante da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), que se realizará de 14 a 17 de dezembro próximo, no Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília. A proposta é pertinente, inclusive, a partir do uso da palavra “Alternativa” para qualificar o empreendimento e, por tabela, seus empreendedores.

A expressão não vem sem controvérsia. Há quem a repudie, por várias razões. Primeiro, vamos a um pouco de história. A expressão “Imprensa alternativa” (então se falava muito pouco em “mídia”) ganhou ímpeto no Brasil dos anos 70 (1) . Ela surgiu de várias fontes (entre elas esse escriba), como uma resposta ao carinhoso apelido que o escritor João Antonio deu aos jornais, em geral pequenos, que se contrapunham à censura da ditadura militar e à auto-censura praticada no jornalismo convencional brasileiro: “imprensa nanica”.

O termo “nanica” não ofendia nem desqualificava. Pelo contrário, trazia à tona a metáfora de Davi contra Golias. Pitoresco, dava o sabor de um certo heroísmo, quixotesco ou não, à atividade dos grupos de jornalistas e intelectuais que se reuniam em cooperativas ou com outras formas de organização para se opor à hegemonia que a ditadura e a auto-proclamada “grande imprensa” construíam diariamente no campo da informação – não sem conflitos entre si, como atestam os casos de censura, por exemplo, ao Estadão e em outros episódios.

Mas se ele não desqualificava, tampouco qualificava muito. Não me refiro ao campo moral, mas sim ao conceitual. Deixava brechas importantes. Por exemplo: como qualificar o gigantesco empreendimento de Última Hora, de Samuel Wayner, de quem nos considerávamos herdeiros? Esse empreendimento nada tivera de “nanico”. Mas fora sim alternativo. Alternativo a quê? À busca de hegemonia pela então “grande imprensa” na sua luta (sanha, talvez) para derrubar Getúlio Vargas. O Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, era, na verdade, um “nanico” que só cresceu com o manto protetor de Roberto Marinho, com seu O Globo, e de outros órgãos da imprensa conservadora.

Assim, “na história brasileira os freqüentes alternativos seriam jornais [ou mídia, no sentido atual, mais amplo] que se oporiam ou se desviariam das tendências hegemônicas na imprensa convencional brasileira, que esta pretende [cartelizando-se] tornar hegemônicas no país” (2).

Além de ter profundidade histórica, a expressão “alternativa (o)” ganhou ampla aceitação acadêmica. O exemplo mais conspícuo disso é o clássico Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, de Bernardo Kucinski (3), tese de doutorado defendida pelo autor em 1991, na ECA/USP. Também deve-se citar que o termo “alternativa (o)” tem larga aceitação internacional, em várias línguas, na esteira do pensamento de Noam Chomsky, Edward S. Herman, Mike Gunderloy e outros, em contraposição ao que denominam, em inglês, a “mainstream mídia”, que, valendo-se do “propaganda model”, definido pelo primeiro, perseguiriam a construção de um “manufactured consent”.

Os que se opõem ao termo preferem, em geral, outras expressões, mas elas padecem de particularismo (como no caso de “mídia de esquerda”, “dos trabalhadores”, “popular”, etc.) ou vão ao encontro de palavras que os próprios próceres da mídia convencional (também chamada de corporativa ou conservadora) usam para se qualificar: “livre”, “independente”, por exemplo. Pode-se perguntar: “livre” ou “independente” do quê? Essas últimas expressões recendem a uma visão também convencional, aquela mesma que quer vender o peixe de que é possível um jornalismo “isento”, “neutro”, e outros pingentes da coroa liberal com que a mídia tradicional quer se cingir.

Quanto ao fato da proposta ser para a formação de uma associação de empresários, também isso vem em boa hora. É inegável que uma boa parte da mídia alternativa no Brasil se faz com organizações do tipo empresarial, ainda que, em geral, sejam pequenas ou médias empresas (ou cooperativas), por oposição às grandes corporações que dominam os mercados privados publicitários e/ou de concessão de verbas públicas, mediante publicidade ou outros meios (isenção de impostos, etc.). Está mais do que na hora de se buscar regras de financiamento que, para além das visões mercadológicas estreitas, garantam uma verdadeira pluralidade na construção da informação no Brasil, para que, ao invés do “manufactured consent” que a “grande mídia” quer impor cotidianamente, se dêem asas a possibilidade da dissensão, do contraditório, do múltiplo, em larga escala.

Esperemos que a iniciativa se concretize, já a partir da 1ª Confecom.

Notas
(1) V. Aguiar, Flávio – “Imprensa alternativa: Opinião, Movimento, Em Tempo”. Em Martins, Ana Luiza e De Luca, Tânia Regina (orgs.) – História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto, 2008.

(2) V. Aguiar, Flávio – op. cit., nota 1, p. 236.

(3) São Paulo: Edusp, 2003. 2a. ed.

(Envolverde/Carta Maior )

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Interesse chines pela Namibia...

China ajuda poderosos na Namíbia


Carlos Gorito - New York Times – Nova Iorque

 Assim como os pais em todos os lugares do mundo, mães e pais na Namíbia, uma nação empobrecida no sul da África [que faz fronteira com Angola e Zâmbia ao norte, Botsuana a leste e sul, e África do Sul ao sul, e cuja capital é Windhoek], se preocupam com os custos universitários e com as oportunidades disponíveis para seus filhos. O governo chinês tomou uma atitude para ajudar nesse sentido – a uns poucos, seletos e poderosos.
Nesse ano, o governo de Pequim já concedeu secretamente bolsas de estudo na China para os filhos de nove oficiais do alto escalão, incluindo a filha do presidente da Namíbia, Hifikepunye Pohamba. Dois jovens parentes do ex-presidente da Namíbia e patriarca nacional, Sam Nujoma, também receberam esse benefício.
A descoberta  dessas bolsas de estudo, reveladas primeiro por um contencioso jornal da Namíbia, desencadeou uma onda de fúria por parte de grupos da sociedade civil e de organizações de jovens locais. Num país onde cinco em cada seis formados no ensino médio não vão para a universidade, muitos consideraram inescrupuloso o fato de líderes do governo com altos salários aceitarem bolsas de estudo em universidades estrangeiras para seus filhos.
“Apenas pessoas em altos cargos do governo sabiam sobre as bolsas de estudo”, disse Norman Tjombe, diretor de um centro de assistência jurídica sem fins lucrativos. “Não foi dada nenhuma chance para o público em geral”.
A controvérsia reacendeu um tenso debate na Namíbia sobre as relações com o governo chinês, relações essas já sob análise dos promotores da Namíbia. Investigações lá e em outros países em desenvolvimento da África e da Ásia têm lançado uma nova luz sobre a maneira pela qual a China muitas vezes usa seu dinheiro de empréstimos e ajuda estrangeiros para criar alianças com elites locais e facilitar a aprovação de contratos de exclusividade.
Mesmo alguns dentro do partido governista da Namíbia, Swapo [sigla em inglês para Organização do Povo da África do Sudoeste, no poder desde 1990], estão se perguntando se a China está tentando comprar influência com as lideranças políticas locais para ganhar acesso às fontes de minério ou conquistar mercados para suas companhias bem relacionadas.
“Como é possível isso ter caído do céu como maná [alimento dado por Deus aos judeus direto do céu]?”, questionou Elijan Ngurare, secretário geral da liga jovem do Swapo, em uma entrevista por telefone. “é óbvio que eles devem querer algo.”
Para alguns especialistas em relações internacionais, a controvérsia das bolsas de estudo aponta o ponto cego na agressiva estratégia chinesa para cimentar alianças diplomáticas, conseguir os direitos sobre fontes de recursos naturais e fechar negócios no continente africano. Pelo menos na Namíbia, os oficiais do governo chinês parecem ter sido pegos de surpresa por um escrutínio público feito por uma vibrante sociedade civil.
O escândalo das bolsas de estudo foi revelado primeiramente pelo tablóide independente Informante, da capital Windhoek, como o orgulhoso lema: “você esconde, nós revelamos.” Não aconteceu assim na China, onde mesmo os mais agressivos meios de comunicação logo pararam de levantar questões desconfortáveis sobre as negociações dos altos oficiais ou de seus filhos.
Bates Gill, diretor do Instituto Internacional de Pesquisas para a Paz de Estocolmo [sigla em inglês SIPRI, organização que realiza pesquisas científicas em questões sobre conflitos e realiza ajuda de importância para a paz e segurança internacional], disse que a China estava habituada a relações obscurecidas e controladas com outros governos. “O envolvimento da China na África está indo mais longe e mais rápido do que sua habilidade de entender e saber o que está acontecendo lá”, disse Gill. Como resultado, “os constrangimentos serão inevitáveis.”
A lista na Namíbia está crescendo. Em julho, investigadores anticorrupção alegaram que uma estatal chinesa facilitou um negócio de 55,3 milhões de dólares [cerca de R$96 milhões] para vender ao governo da Namíbia detectores de metal com milhões de dólares em propina. A investigação é particularmente delicada porque até o ano passado, Hu Haifeng, filho do presidente [chinês] Hu Jintao, dirigia a companhia de materiais de segurança. Um oficial do Ministério do Comércio da China disse recentemente que seu país estava cooperando com as autoridades da Namíbia.
Outra investigação está centrada nas alegações de que uma companhia chinesa de armamentos forneceu 700 mil dólares [cerca de R$1,2 milhões] ao Tenente General Martin Shalli, comandante das forças armadas da Namíbia. O presidente da Namíbia suspendeu em julho o General Shalli de seu posto, que até agora não quis comentar o caso.
Bates Gill afirmou que tais alegações ameaçaram minar a impressionante campanha chinesa para ligar seu desenvolvimento ao da África. Acima de tudo, enquanto a China está fazendo “uma enorme e positiva contribuição ao desenvolvimento da África,” disse Gill, ela está desacostumada às dinâmicas de algumas democracias africanas.
No Fórum sobre Cooperação entre China e África este mês [novembro], o Primeiro-ministro chinês, Wen Jiabao, anunciou que a China dobraria o valor dos empréstimos oferecidos à África para 10 bilhões de dólares [cerca de R$17 bilhões] nos próximos três anos, aumentaria o número de bolsas de estudo e reduziria as tarifas sobre produtos importados das nações mais pobres.
Porém, ele pareceu frustrado quando foi perguntado se a China estava interessada somente nos recursos naturais da África. “Por que sempre há acusações contra a China?”, questionou Wen Jiabao numa entrevista coletiva concedida no dia 8 de novembro, no Cairo. “Esse é um ponto de vista da África ou particularmente o do Ocidente?”
Na Namíbia, cientistas políticos dizem que estão aumentando as inquietações sobre se oficiais estão negociando contratos teoricamente isentos de interesses com a China. “As pessoas estão pensando que a China está fazendo negócios secretos com o governo aqui, e elas estão tendo todo tipo de suspeitas,” disse Carola Engelbrecht, uma ativista.
Entre os que receberam as bolsas de estudo estão os filhos de alguns dos mais poderosos oficiais da Namíbia, incluindo o inspetor geral da polícia da Namíbia e o ministro da justiça, que é também o secretário geral do Swapo. Um grande beneficiário é o filho do ministro da Defesa, cuja agência compra armamentos da China. Um outro é o filho do ministro de Assuntos Internos e Imigração, cuja agência é responsável pela aprovação das autorizações de residência e trabalho para um exército de trabalhadores chineses cujas companhias ganharam contratos estatais ou privados para negócios com a Namíbia.
Outros três beneficiários são filhos de um ministro, um ministro-adjunto, e um oficial do terceiro escalão do Ministério de Minas e Energia. Em julho, o Ministério renovou a licença que dá a uma subsidiária de uma companhia estatal chinesa direitos exclusivos sobre o urânio e outros minerais em áreas com grande potencial de exploração.
A comissão nacional anticorrupção deu início a uma investigação preliminar sobre como as bolsas de estudo eram distribuídas. Oficiais do governo chinês reagiram de forma bem típica: três agências governamentais em Pequim não responderam questões por escrito.
Xia Lili, primeiro secretário da embaixada chinesa em Windhoek, afirmou que não tinha obrigação de responder perguntas. “Está encerrado,” ele disse.Porém, com as eleições nacionais marcadas para o final do mês, está claro que o assunto não está encerrado. Bill Lindeke, um cientista político do Instituto de Pesquisa sobre Políticas Públicas em Windhoek, afirmou que os oficiais da Namíbia poderiam ser forçados a pagar pela educação de seus filhos na China para acalmar a controvérsia.
Oficiais da embaixada chinesa inicialmente insistiram para que o Ministro da Educação fosse o responsável pelo processo de seleção. No entanto, o ministro Nangolo Mbumba disse em uma entrevista coletiva esse mês que seu ministério concedeu apenas 10 bolsas de estudo para estudantes carentes e que não tinha nada a ver com as outras concessões – algumas das quais aparentemente cobrem cinco anos de estudos.
O ministro ainda afirmou que a filha do presidente, Ndapanda Pohamba, que está atualmente estudando na Universidade de Cultura e Línguas de Pequim, “solicitou a bolsa de estudos por conta própria e só depois comunicou aos seus pais.”
A afirmação do ministro de que “não se pode subornar alguém com bolsas de estudos” desencadeou uma onda de indignação em uma nação cujas duas universidades podem atender apenas cerca de 2 mil dos 12 mil estudantes que se formam todo ano no ensino médio.
“Sr. Mbumba: qualquer coisa de valor que se aceite, ou ainda pior, que se peça, constitui propina caso se trate de um órgão público”, disse um cidadão em comentário postado no site do The Namibiam, um jornal diário de Windhoek.

Sharon LaFraniere


Tradução: Aline Oliveira

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Fotografia de Stephen Walli, retirada daqui