China: vale tudo por um doutorado
Carlos GoritoAsia Times – Hong Kong
Um fator muitas vezes ignorado no “milagre” do
desenvolvimento econômico chinês das últimas três décadas é o “milagre”
do enorme número de doutores formados no país.
Em breve, a China deve tomar o lugar do Japão como a segunda maior
economia do mundo – depois dos Estados Unidos – em termos do produto
interno bruto . Mas em 2008, já havia superado os EUA em número de
doutores – mesmo que os programas de graduação só tenham sido retomados
em 1978, depois do turbilhão da Revolução Cultural.
Ao contrário do orgulho nacional pelo sucesso econômico chinês, a
expansão dos programas de doutorado é vista com suspeita, devido a
alegações que a corrupção no sistema educacional tem comprometido
seriamente os padrões acadêmicos. De acordo com estatísticas publicadas
por Yang Yuliang, diretor da Comissão de Grau Acadêmico do Conselho de
Estado, do governo chinês, os primeiros programas de doutorado em 1978
tiveram apenas 18 candidatos, dos quais apenas seis receberam o diploma.
Contudo, programas de pós-graduação aumentaram exponencialmente com
a rápida expansão da educação terciária em 1999 – resultado da política
do governo de “industrializar” as universidades. O governo acreditava
que um maior número de matrículas geraria uma classe urbana bem
educada, que impulsionaria o consumo doméstico e reduziria a
dependência das exportações após a crise financeira asiática de 1997.
As matrículas em programas de doutorado cresceu cerca de 23.4% por
ano desde 1982. Em comparação, a média anual de crescimento das
matrículas em programas de mestrado no mesmo período foi de 15%. Até o
final de 2007, a China diplomou 240 mil doutores. Entretanto, o número
de professores qualificados necessários para supervisar tais programas
de doutorados não aumentou no mesmo ritmo, gerando o temor de que a
quantidade não está sendo acompanhada de qualidade.
De acordo com Yang, cada professor chinês apto tem que supervisar
uma média de 5,77 candidatos a doutores, muito maior do que o nível
internacional. Alguns de professores da província de Anhui escreveram
ao Ministério da Educação semana passada questionando por que o sistema
educacional do país não estava produzindo cientistas e acadêmicos
reconhecidos mundialmente. O problema também foi levantado por Qian
Xuesen, o pai da indústria astronáutica chinesa, antes de sua morte em
outubro.
Também há preocupação quanto à obscura relação entre universidades,
a classe empresarial e os altos funcionários do governo, muitos dos
quais estão matriculados em programas de doutorado. Professores dizem
que empresários e os altos funcionários se usam do dinheiro, poder ou
influência a fim de evitar fazer o trabalho necessário para obter seus
diplomas.
Fontes da Universidade de Southwest em Chongqing disseram que metade
dos oficiais do partido e do governo no município eram candidatos a um
doutorado na universidade. E Chongqing não é um caso isolado.Hoje em
dia é tão comum que oficiais tenham diplomas de doutorado que a mídia
se surpreendeu que Zhang Ping, o recém nomeado ministro responsável
pela Comissão Nacional de Desenvolvimento e Reforma – o principal órgão
de planejamento chinês – tenha apenas um diploma de uma escola técnica
de segundo grau. Mais tarde, no entanto, Zhang foi parabenizado por não
haver exagerado em seu histórico acadêmico.
A demanda por diplomas de doutorado cresceu também porque as
autoridades de Pequim costumam basear as decisões de promoções no
histórico educacional dos candidatos. Para muitos dos oficiais,
diplomas de educação superior são um meio de alcançar maior
reconhecimento.
Oficiais do governovêem as universidades como se fossem parte de sua
jurisdição. Em troca, a demanda dos oficiais por diplomas se tornou uma
oportunidade de negócios para as universidades. Muitas universidades
(até mesmo algumas estrangeiras) têm aberto matrículas em Pequim,
Xangai e Guangzhou, prometendo diplomas. Em alguns programas, os altos
funcionários podem receber os diplomas em casa, sem ter que prestar
exames.
Enquanto a maioria dos cidadãos comuns chineses trabalha duro para
alcançar seu diploma de doutorado, os poderosos tomam um atalho – do
exame de admissão à graduação. Exames de admissão são normalmente
organizados independentemente pelas universidades, e para atrair
estudantes com influência política algumas universidades oferecem a
admissão livre de exames.
Uma vez matriculados, os estudantes privilegiados não precisam levar
seu curso a sério; muitas vezes mandam seus assistentes para assistir
as aulas e prestar exames. O professor Cai Jiming da Universidade de
Tsinghua afirmou que “a maior parte dos diplomas concedidos aos altos
funcionários chineses são questionáveis”. Wang Yi, ex-presidente da
Comissão de Reguladora de Valores, que foi preso em fevereiro por
suspeita de haver aceitado subornos, é um exemplo. Seu curriculum vitae
o qualificava como doutor em Economia, mas seu mestrado foi em
História, e ele levou apenas dois anos para obter seu PhD.
O caso de Wang levou a uma resposta sarcástica do professor Ge
Jianxiong da Universidade de Fudan em Xangai, “É bem impressionante que
Wang tenha sido aceito em um competitivo programa de doutorado em
Economia. Ele não deve só ter um aprendizado rápido, mas também uma
alta capacidade de realizar múltiplas tarefas para concluir seu curso,
passar nos exames, acabar sua tese e apresentá-la em apenas dois anos”.
“Ele conseguiu fazer tudo isso enquanto trabalhava freneticamente no
governo. Se não é um gênio, ele deve ser muito brilhante,” adicionou o
professor. Ele solicitou uma investigação da obtenção do diploma de
doutorado de Wang, mas seu pedido foi recusado.
Observadores dizem que a obtenção de duvidosos diplomas por oficiais
não é só um desperdício de recursos educacionais escassos, como também
levou a uma crise de confiança no sistema educacional, prejudicando a
credibilidade dos doutores genuínos formados na China. Ainda assim,
algumas universidades chinesas dizem precisar obedecer aos desejos dos
oficiais do governo para garantir sua sobrevivência financeira.
O vice-reitor de uma universidade da cidade de Zhengzhou, que
preferiu permanecer anônimo, disse que a maioria das universidades
depende do financiamento governamental, especialmente para fundos de
pesquisa, projetos e planos de desenvolvimento institucional. Se uma
universidade ousasse recusar a admissão de um poderoso oficial, outra
universidade o aceitaria rapidamente. Oficiais podem considerar a
recusa como humilhação e buscar vingança.
Para os orientadores de doutorado de altos funcionários
governamentais, a relação entre estudante e professor pode ser uma
situação mutuamente vantajosa: permite que os orientadores tenham maior
acesso a projetos de pesquisa e recursos, enquanto eles podem usar a
influência dos seus poderosos estudantes para ganhar mais recursos.
A maioria das universidades da China são públicas, com seus reitores
designados pelo governo, assim como a alocação de seus recursos. Até
certo ponto, os próprios empregados da universidade são oficiais do
governo – muitas vezes transferidos de, ou para, um departamento do
governo, possuindo ligações com funcionários do governo de outros ramos.
Nas universidades, a influência e status de um empregado não
dependem de seu título acadêmico, mas sim do seu ranking
administrativo. Quanto maior o ranking, mais poder a pessoa tem. Assim,
funcionários da universidade normalmente almejam cargos administrativos
mais altos ao invés de títulos acadêmicos decentes.
Ironicamente, isso levou a uma situação em que oficiais do governo
fazem fila para conseguir seus diplomas acadêmicos, enquanto os
professores universitários competem por cargos administrativos mais
altos.
A corrupção acadêmica, em conjunto com a corrupção do funcionalismo
público, se tornou comum na China. Como resultado, universidades
chinesas lutam para produzir grandes acadêmicos, enquanto faltam
políticos sofisticados no governo. O famoso matemático e professor de
Harvard Shing-Tung Yau, num discurso na Universidade de Nankai,
criticou a corrupção acadêmica da China como “um estigma nacional”.
O descontentamento crescente com a corrupção acadêmica generalizada
e outros problemas na educação levaram o Premier Wen Jiabao a demitir o
ministro da educação Zhou Ji, que estava no cargo desde 2003.
Stephen Wong
Tradução: Raquel Tebaldi
Para acessar o texto original, clique aqui.
Fotografia de Andrew Lih, retirada daqui