O que é adultério
Os
homens ainda traem mais que as mulheres, mas as estatísticas estão
caminhando para uma situação igualitária de maneira rápida. Além disso,
o número de pessoas que traem também cresce de modo contínuo e veloz.
Não tardará o dia em que todos nós, ao menos uma vez, não só será corno
(ou corna), mas saberá disso de modo bem claro. E isso não em situações
de namoro ou casamentos pouco sugestivos, mas mesmo em casamentos
promissores ou efetivamente duradouros.
Não é o caso aqui de falar de motivos
para o adultério. A literatura diz melhor sobre isso que a filosofia. O
que me interessa aqui é a própria situação de adultério, ou seja, o que
a caracteriza se a olhamos não pelo que seria o vulgar, mas pela
descrição tentada a partir da filosofia.
A traição é o rompimento de uma
confiança que se imagina ser mútua. Na situação pré-moderna a traição
entre amigos era mais condenada que a traição entre cônjuges. A
modernidade – e todo o seu fundamento profundamente romântico –
inaugurou a equiparação entre essas formas de traição e, de certo modo,
até mesmo a ampliação da condenação no segundo caso. A adoção da união
“por amor”, e não por qualquer outro motivo, fabricou essa nova
situação.
O
casamento “por amor” implica no consenso inicial pactuado na intimidade
e, portanto, às relações sexuais e institucionais da união soma-se a
própria cláusula da amizade. De um modo geral, nos meios
caracteristicamente urbanos, a união atual que é a procurada é a que
funde dois requisitos: satisfatórias relações sexuais e amizade. Sendo
assim, toda a carga emotiva da amizade entra, agora, em um espaço que,
em princípio, seria só do sexo e de resquícios de tradições das
obrigações matrimoniais do passado. Na lírica de Rita Lee, amor sem
sexo é amizade, no pentagrama da vida urbana contemporânea, amor para o
casamento é exatamente, então, a amizade com sexo. Desse modo, a
traição ganha força dupla – ela rompe não laços que podem ser formais,
mas elos da confiança mútua – a amizade – que fixava o horizonte que se
prometia comum. Por isso, nos tempos contemporâneos, justamente em uma
época que os mais distraídos pensam que “uma traição amorosa não conta
mais nada”, ela conta muito. Quem trai não ofende a honra do outro e,
sim, se tudo é descoberto ou contado, magoa os sentimentos do outro e
fere seu orgulho próprio de modo inaudito. Caso uma constelação celeste
desfavorável se insinue, há então situações de confronto espetaculares
e trágicas.
O
que se passa na traição que não temos coragem de contar, talvez nem
para nós mesmos, diz respeito a uma completa complexidade de
sentimentos. Muitos não se dão conta dos detalhes dos sentimentos ou
porque que se observam pouco ou, inversamente, porque se observam muito
e ficam chocados com suas reações psicológicas.
A primeira coisa que o cônjuge traído
imagina diz respeito ao momento de intimidade que o parceiro ou a
parceira viveu com o terceiro elemento. Tudo se passa como se o cônjuge
traído fosse levado para a cama de um terceiro elemento a contragosto.
O traído sente-se invadido, devassado, exposto. Seu sentimento é o de
que é ele que foi levado ao sexo – e de modo desagradável, pois com o estranho.
Assim, não é de se achar esquisito que a mesma fantasia do “sexo com o
estranho”, que deixa muitos homens e mulheres excitados, reapareça no
momento exato em que os casais brigam por conta de traições Assim, não
raro, em meio a fantásticas discussões, repentinamente eles se
reconciliam, fazem sexo e, após isso, se não voltam a brigar logo em
seguida, se engalfinham em bate-bocas e desforras no dia seguinte, ou
em maquinações piores. O momento do sexo, no dia anterior, não foi uma
reconciliação em toda a extensão da palavra, mas apenas uma situação
opaca, criada pela fantasia latente do sexo com o estranho. O estranho,
nesse caso, pode funcionar como um fantasma bem específico na
imaginação dos dois envolvidos, inclusive cumprindo um papel
homossexual, num sentido amplo da palavra.
Casais em meio a uma briga podem fazer
sexo, sendo que o traído, nesta hora, imagina o parceiro fazendo sexo
com o terceiro elemento – isso parece algo não homossexual, mas, em
certo sentido, há sim um componente homoerótico aí envolvido. Há aí a
competição, a luta imaginária entre rivais. É claro que as relações de
sadismo e masoquismo emergem neste contexto, quase que invariavelmente.
Sodomizo minha mulher porque quero, agora que sei que ela pode ter
feito sexo com outro, puni-la e/ou mostrar para ela que sou mais homem
que o outro. Sodomizo minha mulher porque sempre quis agir assim, mas
nunca a vi como mulher sexualizada – objetificada – o suficiente para
tal. Então, como ela se mostra ou se fez desejosa de outro, eu avanço o
sinal que eu mesmo havia colocado (eis aí o meu erro) de não tratá-la
de modo não objetificado. Essa sodomização pode ser simplesmente o
coito anal ou mesmo o coito vaginal com alguns tapas etc., nada além.
Mas, ao mesmo tempo em que meu sadismo se amplia, mantenho meu
sofrimento latente na medida em que o outro que esteve no meu lugar,
também esteve ali presente, na minha fantasia quase que impossível de
deter. Esse outro fez da minha mulher o que quis, com o consentimento
dela. Sofro com isso e o ato sexual perdura meu sofrimento, necessário
agora para o meu prazer real – o masoquismo – e, enfim, também para a
minha mulher. A mulher, nesta hora, percebe que despertou o marido para
algo que ela queria e sabia que queria, ou que, talvez, nem soubesse
tanto que queria. Mutatis mutandis tudo isso vale inversamente, para a mulher.
Alguns casais seguem em frente após
isso. Há quem diga: foram cicatrizadas as feridas. Não! Ou ao menos não
no sentido de que os prazeres envolvidos no despertar do sadismo e do
masoquismo desapareceram. Caso as feridas tenham sido cicatrizadas, as
chances de ocorrer novamente são grandes. Pois a ferida misturada ao
sexo pode ser um ingrediente necessário para aquele casal. Há
mulheres que percebem isso e, amando de fato seus maridos, sugerem que
os traíram para que a fantasia do jogo sado-masoquista possa estar
presente, tênue ou não, no decorrer do casamento. Esquecem-se elas que
talvez nem precisassem de tal coisa, pois seus homens, na calada da
noite no sexo com elas, sempre estiveram fantasiando, imaginando
situações em que elas os corneavam. Isso é muito mais comum do que
podemos obter por mensurações estatísticas feitas por psicólogos
amadores.
Os homens tendem menos a criar
situações, reais ou fictícias, de que estão traindo suas mulheres. Uma
boa parte dos homens acha que é melhor “andar na linha”, visivelmente
ou realmente, pois podem machucar suas mulheres (ou perder o controle
delas por falta de legitimidade moral nas relações de poder que montam
um casamento). Há, ainda, uma grande culpa do homem em relação à
mulher, pelo fato dele exercer, ainda que não individualmente, uma
supremacia social. Mas, logo agirão assim também, ou seja, podendo
insinuar uma pequena traição, pois em uma sociedade como a
contemporânea os papéis masculinos e femininos, caracterizados antes
por “psicologias”, vão desaparecendo em função de um comportamento
semelhante e unificado.
Muitos que observam casais que viveram
situações de traição imaginam que os divórcios não saíram porque os
casais foram hipócritas e, se odiando eternamente, viveram juntos por
“pressões sociais”. Às vezes essa verdade que não se conta é, no fundo,
apenas uma mentira. Ou seja, a pressão social contou menos do que
imaginamos. O grande filósofo alemão, Heidegger, que inclusive chegou
por um momento a ter simpatias com o nazismo, viveu uma paixão com uma
aluna bem mais jovem, a judia Hanna Arendt que, depois, se tornou
também uma filósofa famosa. Heidegger nunca se divorciou. Depois, já
sem os encontros com Arendt, ele manteve outros casos extraconjugais
com alunas, cada vez mais distantes de sua idade. Sua mulher sempre
esteve ali, ciente, consciente, vigilante e compreensiva. Sim,
compreensiva, mas dona da situação. Arendt a odiou a vida toda.
Todavia, sabe-se que a mulher de Heidegger confessou a ele que amou o
médico do casal. As cartas mostram que Heidegger soube disso, inclusive
soube (ou sempre soube) que um de seus filhos era, em verdade, filho do
médico. Heidegger nunca deixou de amar o filho e jamais se separou da
mulher. Eles tinham todo um conjunto de segredos de polichinelo para
compartilhar. Olhando de fora, pode-se dizer: o grande filósofo nunca
foi nada além de um babaca. Não teve coragem de deixar a família para
viver o grande amor com a deliciosa e inteligente judia. Mas, será esta
a verdade? Ou, a quatro paredes, este casal, o filósofo e sua esposa,
não tiveram uma vida sexual das melhores, um amor aparentemente burguês
e, no fundo, além do amor burguês? Caso tenha sido isto, talvez o
mecanismo sado-masoquista, a que aludi acima, tenha estado presente na
cama deles, segurando eternamente o casamento. Nunca saberemos a
verdade. Por isso mesmo, a história é boa. E dá o que pensar.
A situação do adultério é evitável.
Muitos que se sabem poligâmicos podem optar pela monogamia. Os que não
se tomam como poligâmicos têm mais dificuldade em serem monogâmicos por
opção. Mas, como já disse, não é esta a questão aqui. A questão aqui
era só a de descrever a situação de adultério. Ou seja, o que queria
era poder dizer: o que ocorre no adultério é isso – e foi o
que eu disse. Ou quase, porque o que falei está longe de ser um padrão.
Vamos continuar acreditando que não nos comportamos de modo padronizado
e, assim, cada um que vier a ler este meu texto poderá, ainda,
conversar comigo e dizer “Ah, Paulo, o que falou, não tem nada a ver –
ao menos comigo”. Ou seja, poderá ainda conversar comigo.
Paulo Ghiraldelli Jr é
filósofo e escritor e está lançando entre dezembro de 2009 e janeiro de
2010 dois áudio books, “O que é marxismo?” e “Nietzsche apaixonado”
(Universidade Falada) e um livro A aventura da filosofia (Manole)