Miguel Urbano Rodrigues no Odiario.info
Miguel
Urbano Rodrigues evoca neste artigo a grande aventura dos povos turcos,
satanizada pelos historiadores do Ocidente.
Recorda a origem turca de povos tão diferentes como os hunos, os ávaros,
os seljucidas, os fundadores do Império indiano do Grão Mogol, os
búlgaros, os húngaros, os finlandeses e os estónios, e povos que hoje
falam línguas turcas, os usbeques, os cazaques, os kirguizes, os
turquemenos, os iakutos. Reflectindo sobre a Turquia, lembra que os
antigos Otomanos criaram uma grande cultura e que, na época de Solimão, o
Magnífico, o Império turco, então o maior do mundo, cobria uma área de 8
milhões de quilómetros quadrados com 60 milhões de habitantes.
Conheci Istambul quando me iniciava no ofício de escrever. Voltei agora, transcorridas quase seis décadas.
Foi um estranho reencontro.
A cidade, quando a descobri, tinha um milhão de habitantes; hoje tem
mais de 15 milhões e é uma das maiores megalopolis do planeta. Em 1953
camelos pachorrentos ainda deambulavam por ruelas enlameadas; hoje o
aeroporto da antiga Constantinopla é um dos mais movimentados da Europa.
Na juventude a Turquia aparecia-me como porta de um Oriente
misterioso. Tinha lido os Sete Pilares da Sabedoria de T. E. Lawrence e
muita coisa sobre as Cruzadas.
Como a maioria dos jovens da minha geração via na Turquia o país dos
turcos, que se ocidentalizara no governo de Ataturk após a desagregação
do Império Otomano.
A névoa da ignorância tardou a dissipar-se. Foi somente a partir dos
anos 70, em viagens pela Ásia Soviética, que, lentamente, principiei a
tomar conhecimento da grande aventura dos povos turcos e da sua
contribuição para o progresso da humanidade.
UMA SAGA ESQUECIDA
Em livros que então me ofereceram aprendi que o berço das tribos
turcas da antiguidade foi a taiga siberiana. Das montanhas da
Transbaikalia, do Orkhon e das margens do Selenga, os primeiros turcos
começaram, muito antes do início da Nossa Era, a descer para o Sul. Nas
suas lentas migrações, trocaram as florestas pelas estepes da actual
Mongólia, e aí essas tribos transformaram-se de sedentárias em nómadas
criadores de cavalos, bois, camelos e ovelhas.
Mais tarde, entraram pela China e destruíram e fundaram ali
impérios. Muitos séculos depois, correram para Ocidente e invadiram
províncias do Império Romano, semeando o terror por onde passavam.
Com o passar dos séculos, ao disseminarem-se pelo mundo, empurrados
por grandes fomes ou após guerras com vizinhos agressivos, os turcos
diferenciaram-se muito e os idiomas das primitivas sociedades tribais
evoluíram, distanciando-se.
Mas turcófonos eram os Hunos de Átila; os Heftalitas que invadiram a
China, a Índia e a Pérsia sassânida; os Ávaros que chegaram até à
Hungria; os Uigures, professores dos Mongóis e criadores de um alfabeto;
os primeiros Búlgaros; os Mamelucos Egípcios.
Turcófonos eram os Seljucidas vindos da Sogdiana (actual
Uzbequistão) que reconquistaram Jerusalém aos Cruzados e quase
expulsaram Bizâncio da Ásia Menor; os Kazhar, os Kiptchak, os
Ptechenegos que povoaram as estepes da Ucrânia e do Sul da Rússia, povos
dos quais descendem dezenas de milhões de russos. Os Polovtses, das
crónicas medievais russas, eram também nómadas turcos.
Turcófonos são os actuais Kazaks, Uzbeques, Kirguizes, Turquemenos, Azeris.
Turcofónas eram as tribos Karluk, da Sogdiana, que, aliadas aos árabes na cavalgada destes para Oriente, lutaram contra os chineses em Talas, uma batalha que no ano 751 travou definitivamente a avançada da China para o Ocidente.
Turcofónas eram as tribos Karluk, da Sogdiana, que, aliadas aos árabes na cavalgada destes para Oriente, lutaram contra os chineses em Talas, uma batalha que no ano 751 travou definitivamente a avançada da China para o Ocidente.
O finlandês e o estónio mergulham as raízes nos dialectos turcos falados pelos seus antepassados, vindos da Alta Ásia.
A historiografia europeia desconhece, com poucas excepções, a grande
aventura dos povos turcos ao longo de mais de dois milénios. A maioria
dos chamados «Mongóis da conquista» era turca. Mas poucos historiadores,
incluindo os árabes e iranianos, assinalam nas suas obras que mais de
dois terços dos exércitos dos filhos e netos de Gengis Khan falavam não o
mongol, mas línguas turcas com ele aparentadas.
A minha geração «aprendeu» no liceu que os turcos eram muçulmanos
fanáticos quando irromperam na Europa. Nos compêndios escolares do meu
tempo não era minimamente clara a diferença entre árabes e turcos.
Alguns professores aludiam a choques entre os portugueses e os turcos
nos mares da Índia, mas as referências eram superficiais, vagas.
Na Espanha, na Itália e em França o panorama não era muito
diferente. A derrota da armada otomana na batalha de Lepanto era
celebrada como uma grande vitória da Cristandade contra a barbárie.
Dos turcos foi durante séculos projectada a imagem de gente selvagem
e cruel, imagem que o cinema, já na nossa época, contribuiu para levar
às massas.
Voltaire, entre outros grandes escritores, apresentou Tamerlão como
demónio com figura humana, um flagelo da humanidade. A personagem desse
turco chagatai, o maior conquistador do século XIV, único vencedor dos
turcos Otomanos, inspirou gerações de dramaturgos, poetas e
historiadores que o amaldiçoaram. Foi satanizado em óperas famosas.
É inegável que Tamerlão cometeu crimes comparáveis aos das hordas de
Gengis Khan. Mas o autor das chacinas de Isfahan, Damasco e Delhi,
entre outras, o turco que ao perseguir as Hordas Mongóis através da
Rússia arrasou tudo o que encontrou pela frente, o emir devoto que
mandava construir pirâmides com as cabeças dos vencidos, não deixou na
História somente um rasto de violência irracional. Tamerlão atraiu a
Samarcanda os maiores artistas e sábios do Islão asiático e fez dela, na
época, a mais bela cidade do mundo muçulmano. Alguns dos seus
descendentes foram príncipes cultos, que promoveram o chamado
renascimento timurida que renovou a arquitectura, a poesia, a pintura, a
musica nos países por eles governados. Babur, seu trineto, fundou o
Império do Grão Mogol na Índia onde durante dois séculos floresceu uma
cultura que criou monumentos maravilhosos como o Tahj Mahal de Agra.
Outro efémero império turco que os historiadores somente recordam
como responsável por hecatombes inesquecíveis teve o seu pólo em Ghazni,
uma cidade, hoje em ruínas, situada no actual Afeganistão. Um sultão,
Mahmud, nas suas campanhas pelo Norte da Índia, actuou como um genocida.
Mas esse grande bárbaro foi uma personalidade contraditória. Ghazni,
cujo nome está hoje esquecido, emergiu em poucas décadas como a mais
prestigiada metrópole cultural do Islão oriental. Admite-se que a sua
população rondou o milhão de habitantes. No século XI, nos territórios
governados pelos Ghaznividas nasceram, viveram e criaram ciência,
cultura e beleza alguns dos mais famosos sábios e artistas do Islão,
entre os quais Al Biruni, etnólogo, astrónomo, matemático; Ferdauci, o
autor do poema épico Xá Naama (o livro dos reis), considerado o criador
do persa moderno; Sanai, um sufista que foi um precursor de Dante; Ibn
Sina, o Avicena, cujo tratado de Medicina foi referencia na Europa
durante cinco séculos.
Turco era o Xá Ismail, o primeiro dos Safévides, a dinastia de
mecenas durante a qual a arquitectura e a pintura persas atingiram o
apogeu, adquirindo prestígio mundial.
DO ÁRCTICO AO MEDITERRÂNEO
Não esqueci o choque recebido em l974 ao visitar a República da
Iakutia no grande Norte siberiano. Estava instalado num hotel
confortável, mas fora o termómetro descera a 45 graus negativos. Os
Iacutos, pelo aspecto físico, traziam-me à memória os inuit da
Groenlândia e falavam uma língua muito diferente do russo. Alguns não o
entendiam. Um jovem traduzia para o meu intérprete que vertia para o
português.
Perguntei que idioma era aquele?
Quando ouvi que se expressavam num dos muitos dialectos turcos da
Sibéria, a resposta lançou-me numa meditação inesperada sobre o longo
caminho percorrido por antepassados daquela gente, empurrada para o
Norte por outros povos turcófonos.
Perante o meu espanto, um professor russo que acompanhava a conversa
esclareceu que das terras geladas do Estreito de Behring, frente ao
Alasca, ao Adriático, numa faixa que atravessa a Ásia e a Europa,
continuam a viver comunidades turcófonas.
Uma das mais prodigiosas aventuras dos antigos turcos foi a das
tribos Oghuz que, saindo no século XII das margens orientais do Cáspio,
vieram em vagarosa caminhada fixar-se na Ásia Menor como vassalas dos
emires seljucidas que então lutavam contra o Império Bizantino. Do nome
do seu chefe, Othman, ficaram conhecidos como os Otomanos, fundadores de
um Império gigantesco. Ao longo de duzentos anos foram a primeira
potência militar do mundo.
Durante séculos, os primitivos turcos permaneceram fiéis à religião
animista que os acompanhou nas suas migrações, da taiga às estepes,
muito semelhante à dos Mongóis. Acreditavam num deus supremo, Tengri, o
céu azul, criador do universo e veneravam e temiam forças da Natureza.
Era uma religião tolerante aberta à compreensão das praticadas pelos
povos dos países conquistados ou vizinhos. A rápida absorção de
culturas muito mais elaboradas do que a das estepes levou os primitivos
turcos a assumir grandes religiões da antiguidade. Na China tornaram-se
budistas na época em que o budismo por algum tempo ali penetrou. No
oásis do Tarim (actual Sinkiang Uigur) aderiram ao maniqueísmo. Uma
pequena minoria adoptou o cristianismo nestoriano. Os Khazars da Rússia
converteram-se ao judaísmo. Mas foi no primeiro contacto com os árabes,
sobretudo na Sogdiana (actual Uzbequistão), que a avalancha das tribos
turcas na sua deslocação para ocidente fez a opção religiosa que viria a
ter uma grande influência no rumo da História.
Em meados do século VIII, o Califado Abássida exercia uma soberania
nominal sobre uma área enorme, da China ao Egipto, do Indo à Sicília. A
fase de expansão findara, iniciava-se a defensiva. Os árabes eram
poucos, os territórios imensos. As turbulentas tribos turcas
forneceram-lhe os soldados de que necessitava. Formidáveis guerreiros,
os turcos tornaram-se a coluna vertebral dos exércitos do Islão
asiático. E aconteceu o inevitável. O poder militar conquistou
rapidamente o poder político. Primeiro na Sogdiana, depois no actual
Afeganistão, no Irão, no Iraque, no norte islamizado da Índia surgiram
sultanatos turcos. Em Bagdad, o Califa, o chefe religioso, já era uma
figura pouco mais do que decorativa, quando os Seljucidas enfrentaram a
invasão dos Cruzados no século X.
ERAM POUCOS E DIFERENTES
ERAM POUCOS E DIFERENTES
Os turcófonos não constituem uma comunidade de povos etnicamente
homogénea. Os antigos Kirguizes da Alta Ásia eram louros e de pele
clara; a maioria dos Petchenegos, segundo as crónicas russas medievais,
tinham os olhos azuis e os cabelos claros; a fisionomia dos Kiptchak
também não era oriental. O príncipe Igor, herói lendário da Rússia
antiga, era um Polovtse e a sua língua materna o turco. O denominador
comum do mundo turco foi o idioma e não a raça.
Eram muitos os turcos da conquista? Não, eram poucos, tal como os
visigodos que se estabeleceram em Espanha e os Francos na Gália Romana. O
historiador Claude Cahen avalia em 300.000 no máximo o total dos
seljucidas que invadiram a Ásia Menor, procedentes do Irão, e ali se
fixaram. Muito menos numerosas eram as tribos otomanas que se instalaram
no planalto com a concordância dos Bizantinos.
No século XIII, os turcos constituíam apenas 10% da população da
Anatólia, não obstante o poder militar dos sultanatos existentes.
A mestiçagem foi um processo complexo. Os persas, com raras
excepções, não se fundiram com os turcos. Na Geórgia e na Arménia
ocorreu o mesmo: as populações locais não se misturaram com os invasores
turcos.
Foi nas regiões helenizadas do Império Bizantino que a turquização
das populações avançou embora lentamente. Mas no século XX, mais de um
terço dos habitantes da Ásia Menor eram gregos, kurdos, arménios. Não
exageram os historiadores que identificam na Turquia actual um
Estado-nação criado e viabilizado pela vontade de um homem.
O FURACÃO OTOMANO
Os otomanos, de pequena comunidade tribal estabelecida em terras
bizantinas transformaram-se rapidamente num Sultanato que alastrou pela
Ásia Menor e, ganhando força e prestígio, construíram os alicerces de um
grande Império. Em meados do século XIV já estavam solidamente
implantados no coração da Península Balcânica e infligiram sucessivas e
esmagadoras derrotas aos príncipes romenos, búlgaros, sérvios e
húngaros.
Quando em 1453 Mehmet II, o jovem sultão otomano, se apresentou com
um grande exército perante as muralhas de Constantinopla, a grande
cidade era tudo o que restava do Império Romano do Oriente.
As potências ocidentais não atenderam aos pungentes apelos de ajuda
chegados de Bizâncio. As querelas religiosas que tinham separado Roma do
Patriarcado Ortodoxo haviam gerado uma seara de ódios.
Durante mais de um milénio, a orgulhosa Bizâncio, filha de Roma e da
Grécia, resistira vitoriosamente às investidas de godos, celtas,
persas, árabes, búlgaros, russos. Mas os cavaleiros da IV Cruzada,
financiados por Veneza, tomaram a cidade por dentro, saquearam os seus
palácios igrejas e criaram um efémero império Latino.
Restaurado em 1261,o Império Bizantino sobreviveu por quase dois
séculos. Dizia-se que as muralhas de Constantinopla eram inexpugnáveis.
Mas cederam perante a avalancha otomana. No cerco, o sultão, para abrir
brechas nas muralhas, utilizou os maiores canhões até então fabricados.
Para os historiadores do Ocidente, a queda de Constantinopla foi um acontecimento trágico que assinalou o fim da Idade Média.
Na perspectiva dos muçulmanos, a tomada da cidadela dos cristãos
marcou o inicio da era de ouro do Império Otomano. Selim I derrotou os
persas, conquistou a Síria, a Palestina e o Egipto e somou o poder
religioso ao político, assumindo-se como herdeiro do Califado. Durante o
longo reinado do filho, Solimão I, o Magnífico, a expansão prosseguiu
num ritmo que alarmou as grandes monarquias cristãs. Os exércitos
otomanos ultrapassaram o Eufrates e o Tigre e as suas esquadras
enfrentaram os portugueses nos mares da Índia. A bandeira do crescente
foi hasteada em Tripoli, Tunis, Argel e Budapeste e o Mediterrâneo, até
ao Adriático, tornou-se um lago turco.
A basílica de Santa Sofia, transformada em mesquita, foi uma fonte
de inspiração para os arquitectos otomanos. Istambul no final do século
XVI tinha recuperado o antigo esplendor de Constantinopla e era a maior e
mais próspera capital da Europa com uma população que excedia 600.000
habitantes.
O Império tinha uma superfície de oito milhões de quilómetros
quadrados (16 vezes o tamanho da Espanha) e uma população superior a 60
milhões de habitantes.
Uma nova cultura surgiu de um sincretismo nascido da fusão difícil
da persa, da árabe e da bizantina. Na arquitectura, na pintura, na
cerâmica, na tapeçaria, os otomanos inovaram durante dois séculos. As
grandes mesquitas imperiais, como a Suleimanieh e a Sultanahmet, são
obras de arte maravilhosas, património da humanidade.
No século XVII principiou a decadência, lenta, mas irreversível.
Ao terminar a primeira guerra mundial, o Império Otomano, derrotado,
desapareceu. Os vencedores tomaram conta das Províncias Árabes e a
própria Turquia – berço e núcleo do Estado imperial multinacional –
ocupada, retalhada e invadida, esteve prestes a desaparecer.
Foi então que surgiu um daqueles raros homens que, em situações
excepcionais, alteram o caminhar dos povos. Mustafa Kemal, o Ataturk,
desafiou a lógica da História. Pela guerra e pela negociação garantiu a
continuidade da Turquia. Transformou em realidades concretas o
impossível aparente. Expulsou as tropas estrangeiras em quatro anos de
guerra, depôs o último sultão, aboliu o Califado, proclamou a República
laica, proibiu o vestuário tradicional, atribuiu à mulher a igualdade de
direitos, adoptou o calendário gregoriano e impôs a substituição do
alfabeto árabe pelo latino.
Poucas revoluções mudaram tão profundamente a vida de um povo num
espaço de tempo tão breve. Uma cultura milenária, asiática, oriental,
foi anatemizada e reprimida e incentivada a adesão a uma cultura
ocidental que durante séculos aparecera aos turcos otomanos como hostil.
A Turquia sobreviveu, mas a transição, traumática, dolorosa, deixou sequelas cujos efeitos continuam a manifestar-se.
Os turcos contemporâneos sabem que todas as civilizações quando
morrem não voltam. Mas as sementes ficam e a sua germinação é complexa e
imprevisível.
Voltarei ao tema em texto de reflexão sobre o meu reencontro com
Istambul, uma cidade fascinante, implantada num dos mais belos cenários
do mundo.
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