domingo, 22 de maio de 2011

Elementos para a reconstrução do anticapitalismo revolucionário






Lucas Morais
Lucas Morais no Diário Liberdade

Por um mundo organizado pelos trabalhadores

Foram vários os movimentos de gestão direta dos produtores, como pode ser observado na Comuna de Paris de 1871, tentativas de autogestão durante a Guerra Civil Espanhola de 1934-39, casos mais isolados na Rússia revolucionária e em vários outros momentos, mas sempre eventos muito isolados. Foram lutas que, pela conjuntura histórica na qual estavam inseridas, não tinham condições de obter êxito. Entretanto, todas elas colocaram em primeiro plano a centralidade do trabalho no processo de revolução social. Cada um destes eventos nos brinda com um exemplo de que a classe trabalhadora é o verdadeiro agente social portador da capacidade e possibilidade de construção de uma nova sociedade, de uma sociedade livre, dado que estes produtores podem promover a apropriação dos meios de produção com fins de superação da usurpação de seu trabalho excedente por um agente social parasitário, o capitalista.

Da centralidade da política à centralidade do trabalho

Várias teorias e doutrinas oriundas do marxismo, mas estranhas ao pensamento de Karl Marx, deslocaram a centralidade do trabalho para a política e, mais especificamente, para um agente social conservador, o Estado. Talvez, não à toa a obra de Lênin é chamada O Estado e a Revolução, e não “O Trabalho e a Revolução”. No lugar da centralidade do trabalho e da socialização da produção e apropriação de excedentes (mais-valia) estava a centralidade das nacionalizações das indústrias e terras capitalistas, que, no caso soviético, redunda no controle de uma forte burocracia estatal sobre os meios de produção, aí incluída a força de trabalho, o que termina por não resolver positivamente o quadro da luta de classes, isto é, a luta de interesses entre agentes sociais antagônicos em que o excedente vai para a mão do explorador e o salário para o proletário. O regime pós-revolucionário da União Soviética não superou o quadro da exploração assalariada do trabalho, bem como nenhuma das revoluções ocorridas no século XX o fez, o que não nos permite falar na existência de um suposto “socialismo”, mas sim em regimes pós-revolucionários que, em virtude de uma série de fatores, sucumbiram ao burocratismo e ao terror para se manter. Isto não nega os avanços obtidos, por exemplo, com a industrialização da Rússia e do Leste Europeu, mas também afirma o caráter totalitário e terrorista da maior contrarrevolução da história, conhecida como “estalinismo”.

Comunismo e auto-organização dos trabalhadores

A categoria “comunismo”, utilizada por Karl Marx e Friedrich Engels na defesa de uma ordem social dos trabalhadores livremente associados, está intimamente relacionada com a centralidade do trabalho do ser social humano. Por isso mesmo a ideia de que “a emancipação da classe trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora”. O protagonismo e a auto-organização dos trabalhadores em processo de controle direto dos meios de produção é um elemento essencial do processo revolucionário socialista, isto é, a socialização da produção deve ser acompanhada também do controle social sobre os meios de produção, circulação e apropriação, pautado sempre nas necessidades sociais concretas. A autogestão dos trabalhadores, portanto, deve ser direcionada às necessidades sociais em geral, desde as mais básicas (alimentação, moradia, infraestruturas, transporte, etc) às mais sofisticadas (computadores, televisões, etc).
Por outro lado, as concepções teóricas-práticas predominantes no seio do movimento comunista durante todo o século XX, sejam autoproclamadas como leninista, trotskista, estalinista, maoista etc., tiveram em sua quase totalidade como eixo a centralidade do poder estatal para a promoção da revolução social, o que orientou todo o movimento anticapitalista a se constituir tendo em vista a tomada do poder do Estado para promover a “ditadura do proletariado”. Deste modo, a própria categoria “ditadura do proletariado” se desvirtua para uma “ditadura estatal sobre o proletariado e em nome deste”. Ditadura do proletariado nada mais é que a preponderância e imposição dos interesses históricos da classe trabalhadora na sociedade, seja em locais de trabalho ou em comunas. Lembremos que a categoria “ditadura” nos tempos de Marx possuía um significado distinto daquele que adquiriu durante o século XX. Entretanto, esta orientação, estranha ao comunismo revolucionário de Marx, permanece em voga hoje no restolho do movimento comunista internacional.
A centralidade do trabalho recoloca também a centralidade da emancipação dos trabalhadores, emancipação esta que configura-se como emancipação geral da humanidade em relação à cisão e exploração classista. Ou seja, a emancipação da classe trabalhadora é a plataforma geral de qualquer proposta que pretenda a emancipação do gênero humano. Há, também, entre anticomunistas e até mesmo em determinadas tendências do movimento socialista concepções daninhas desta questão, que colocam a “ditadura do proletariado” como a submissão de todas as classes aos trabalhadores e seu mítico “Estado operário”.

Equívocos na orientação revolucionária

Esta orientação rumo ao controle do aparato do Estado deixou de fora as preocupações teóricas acerca do chamado “mundo do trabalho”, isto é, da realidade histórica concreta com que se defronta cotidianamente a classe trabalhadora. Tais questões são espinhosas e extremamente complexas, assim como o é a nossa realidade histórica, pois refletem o fundamento de nossa história e precisam ser sistematicamente trabalhadas, assim como as várias configurações assumidas pelo capitalismo desde o século XIX devem ser profundamente analisadas para compreendermos como se organiza hoje a ordem do capital. Esta orientação equivocada, da qual compartilham desde estalinistas até reformistas (que foram as duas principais linhas políticas dos trabalhadores, dos partidos e lutas sociais no século XX), provocou danos profundos no movimento comunista, dado que os esforços de tais organizações estiveram voltados para a disputa política institucional-parlamentar burguesa (e, portanto, se adaptando às regras institucionais burguesas) ou em estratégias e táticas com fins de tomada do poder político através do Estado. Esta orientação, portanto, distorceu o sentido original da categoria marxista de “revolução socialista”. Sob o estalinismo/marxismo vulgar, “revolução socialista” passou a ser compreendido como governos dos partidos comunistas nacionais, e não como a generalização do controle dos trabalhadores sob democracia direta nas associações proletárias (locais de trabalho, comunas, movimentos, partidos, etc.), a expropriação da burguesia pela própria classe trabalhadora (e não pelo Estado e suas burocracias), mas sim como a expropriação da burguesia em nome da nação ou dos chamados “Estados operários”, que de operários só tinham o nome. Nesta orientação estatista, tanto o estalinismo quanto o reformismo socialdemocrata convergem, embora este último não defenda a expropriação dos capitalistas.

Insuficiência do bolchevismo leninista e adversidades históricas

Lênin, ao projetar um “partido de quadros” tinha em vista a transformação revolucionária de um país de proporções continentais, que padecia com o atraso histórico de suas forças produtivas (produtividade do trabalho), com menos que 8% de operários, concentrados principalmente em Moscou e São Petersburgo, em meio a relações de produção predominantemente camponesas e sob a dominação política de um czarismo imperialista empenhado em mobilizar seu povo para mais uma guerra, a Primeira Guerra Mundial, enquanto este mesmo povo morria pela escassez de alimentos.
Diante de uma conjuntura extremamente negativa e adversa aos revolucionários, com um regime imperialista policialesco, perseguidor, assassino, torturador, para não dizer dos expurgos e aprisionamentos promovidos na Sibéria (Trotsky inclusive ali estivera preso), a ofensiva do movimento revolucionário precisava ser certeira. Para tal sucesso, Lênin, que era um estrategista político de altíssimo nível, coordenou a construção de seu “partido de quadros”, os bolcheviques, desenhado para intervir clandestinamente e publicamente na classe trabalhadora russa para que pudesse direcioná-la à revolução socialista sem alianças nem colaborações de classes com uma burguesia inexpressiva e quase totalmente cooptada pelo regime do Czar. Deste modo, as concepções reformistas/socialdemocratas derivadas de péssimas leituras de Marx, etapistas e evolucionistas/gradualistas, de líderes como Bernstein e Karl Kautsky, nada tinham a oferecer ao contexto histórico russo, o que fica ainda mais em evidência com a bancarrota dos mencheviques e a desilusão popular com o governo de transição de Março de 1917.
Os bolcheviques souberam intervir na luta de classes em momentos decisivos, como o foi quando da palavra de ordem “Pão, Paz e Terra”, que sintetizava os anseios das massas laboriosas russas. Sua intervenção correta foi determinante para a vitória popular que veio em Outubro de 1917, quando finalmente a classe trabalhadora, através de seus sovietes (conselhos de trabalhadores municipais e regionais, que, por sua vez, exerciam a política sob democracia direta, revogação de mandatos e representações, etc) e sob orientação dos bolcheviques, lograram a conquista do poder político e o controle sobre o Estado herdado do regime czarista. A batalha fora ganha, entretanto havia uma guerra civil instalada no país, contando com o apoio de todos os regimes imperialistas do globo, e a causa comunista só poderia sobreviver baseada na internacionalização da revolução social, principalmente para a Alemanha e demais nações europeias, dada a impossibilidade da construção de uma ordem socialista em um só país. Entretanto, aos bolcheviques, antes mesmo de pensar em socialismo, era necessária a superação do caos, da guerra e da fome. Nenhum dos problemas mais sentidos pelo povo russo foi atendido plenamente, muitos deles inclusive pioraram sob o governo bolchevique. Somente com o fim da Primeira Guerra Mundial em 1918 e da Guerra Civil russa (meados de 1920) foi possível inaugurar uma reconstrução nacional sob a base da Nova Economia Política, a NEP, desta vez, com a ausência de Lênin, que adoeceu e ficou afastado da liderança política, assumindo, em seu lugar triunviratos da velha guarda bolchevique, incluindo aí Josef Stálin. Ao fim de sua vida, Lênin (que morrera em 1924) pôde evidenciar os perigos que a revolução russa carregava: ao não lograr se internacionalizar, o partido e o Estado russo eram terrenos férteis para o predomínio de burocracias contrarrevolucionárias, hostis à auto-organização dos trabalhadores e nacionalistas grão russas, corrompidas pelos privilégios econômicos e políticos. O pesadelo de Lênin estava se realizando diante de si, e ele não possuía forças vitais nem políticas para reverter este processo, dado que Stálin à frente da secretaria geral do partido bolchevique, então Partido Comunista Russo (bolchevique), não permitira nem mesmo que o partido tivesse conhecimento sobre a existência das últimas correspondências de Lênin, em que denunciava o burocratismo, o nacionalismo grão russo e exigia a retirada imediata de Stálin de qualquer quadro do partido. Era tarde. Rosa Luxemburgo, destacada revolucionária alemã, muito antes havia criticado a concepção leninista do partido bolchevique, alertando para as trágicas consequências que poderiam ocorrer em função da ausência de controle das bases sobre a direção política. A estrutura partidária leninista centralizava todo o poder político em um grupo muito restrito e pouco representativo, mesmo sendo eleito dentro do partido. A criação de facções também fora banida do partido durante a política chamada de comunismo de guerra, executada durante a guerra civil russa, abrindo caminho para a monoliticidade burocrática.

A necessidade de novas estruturas organizativas

A preocupação de Rosa Luxemburgo não era injustificada. A estrutura organizativa bolchevique foi planejada para uma conjuntura histórica específica, singular. A tentativa de generalização deste método de organização é tão falha quanto a tentativa de generalização de movimentos guerrilheiros. Além disso, há uma questão importante acerca da hierarquia que não tem sido debatida. O fluxo de informações em estruturas de hierarquias muito centralizadas permanece sob conhecimento, isto é, poder, de um grupo muito restrito que acaba por tomar decisões que afetam todo o movimento ali supostamente representado e em nome deste mesmo movimento, o que significa dizer que, após a delegação de poderes sem controles de revogação e transparência informativa, os indivíduos e grupos que delegaram poder deixam-no escapar de seu comando. Em outras palavras, podemos dizer que esta representação na verdade cria um estranhamento profundo entre a base do movimento e sua direção. Também significa que, se a base de um movimento delega a apenas alguns de seus componentes o poder de direcionar todo o movimento, então ele:
a) cria condições e possibilidades concretas para a criação consciente ou não de uma burocracia com interesses distintos, por vezes disparatados, da base que a elegeu;
b) dá a um determinado grupo de pessoas o poder de manipular informações de acordo com a conveniência deste mesmo grupo, o que acontece em qualquer burocracia;
c) cria condições para que um equívoco ou uma traição política desta burocracia comprometa sua base, o que significa comprometer o movimento em sua totalidade, dado que a base não possui mecanismos para reverter este processo, afora a pressão sob seus líderes, que por vezes é insuficiente para alterar decisões, dado que estas são feitas coletivamente, o que exige um esforço ainda mais complexo para as bases;
d) personifica a política do movimento nos indivíduos que supostamente o representam, tornando o embate no interior do movimento não em prol deste ou daquele viés ideológico, mas contra pessoas e grupos.
A estrutura bolchevique era fundamentalmente organizada com base no formato de um comitê central eleito em congressos, com uma média de 25 líderes; seus quadros intermediários, que eram também líderes populares; e uma imensa base, que precisava delegar representantes para supostamente defender seus interesses nos congressos. Vale lembrar ainda que as burocracias possuem origens bem concretas, com a separação entre os agentes decisórios e os agentes que executam as decisões (muitas vezes sem discutir ou questionar as determinações dos seus “superiores”). Logo, qualquer movimento que se estruture sob bases burocráticas muito centralistas estarão fadadas a esta profunda cisão de interesses entre base e direção. O máximo de democracia que este tipo de estrutura organizativa permite são frações que podem entrar em disputa ideológica e política, mas sempre tendo de abrir mão de bandeiras para acomodar interesses de outras frações para se manter no controle do aparato. Esta é uma limitação histórica insuportável nos dias atuais, e é insustentável como se vê na debandada e degeneração dos partidos comunistas, e não deve ser admitida pelo movimento comunista como uma estratégia organizativa viável.

O movimento deve ser a direção e a direção deve ser o movimento

É necessário o próprio movimento se dar direcionamento, isto é, a base ser direção de si mesma, sem a necessidade de delegação de poderes supremos a seus membros. Os burocratas costumam odiar esta ideia porque a auto-organização simplesmente é a afirmação da não necessidade da divisão entre decisão e execução, entre legislação e realização. Ou seja, se o conjunto de um movimento se auto-organiza não há a necessidade de uma direção apartada da base. Isto não elimina a necessidade de líderes, mas desde que estejam sob controle da base, através de revogação e da transmissão de informações diretamente a ela, sem interlocutores indiretos ou burocracias.
Não se educam ativistas recém chegados à luta sem experimentá-los na luta, sem dar-lhes a possibilidade de liderar ações, sem lhes dar a chance ao erro e, muito menos, ao acerto. E sem o erro, não se aprende, e sem aprender, sem o conhecimento, sem a (in)formação correta, não há ação revolucionária. É por isto que organizações fortemente centralizadas minam a capacidade criativa e revolucionária de suas bases, tornando-as mera massa de manobra em prol de interesses que não são os seus próprios, criando assim o ambiente propício para o oportunismo, para traições políticas e a degeneração.
Metaforicamente, estamos em tempos de bombas nucleares e imperialismo hightech enquanto o movimento comunista ainda dispõe de revólveres russos enferrujados de 1917, isto é, de estruturas e métodos conservadores, que, portanto, não dialogam com o atual tempo histórico.
A questão metodológica não é central, mas sim os ganhos cognitivos e históricos efetivos, que permitem saber sempre mais, inclusive formulando estratégias metodológicas cada vez mais conscientes e críticas. Ou seja, não é o modo de conhecer (ou, no caso, um modo de agir) pré-determinado que deve ser buscado, seja em Marx, Trotsky ou Lênin, mas sim obter um conhecimento profundo e abrangente acerca do mundo, para, com base nele, discernir as ações de curto, médio e longo prazo compatíveis com o objetivo da emancipação humana.
Constatando isto, podemos afirmar que mais urgente que construir aparatos partidários é construir um consistente movimento anticapitalista, e este movimento anticapitalista precisa criar estruturas de luta para além do centralismo burocrático. Os anticapitalistas (socialistas, anarquistas, comunistas etc) precisam saber se serão porta-vozes de um passado já distante ou do futuro promissor que só a luta pode construir.


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