Por um mundo organizado pelos trabalhadores
Foram
vários os movimentos de gestão direta dos produtores, como pode ser
observado na Comuna de Paris de 1871, tentativas de autogestão durante a
Guerra Civil Espanhola de 1934-39, casos mais isolados na Rússia
revolucionária e em vários outros momentos, mas sempre eventos muito
isolados. Foram lutas que, pela conjuntura histórica na qual estavam
inseridas, não tinham condições de obter êxito. Entretanto, todas elas
colocaram em primeiro plano a centralidade do trabalho no processo de
revolução social. Cada um destes eventos nos brinda com um exemplo de
que a classe trabalhadora é o verdadeiro agente social portador da
capacidade e possibilidade de construção de uma nova sociedade, de uma
sociedade livre, dado que estes produtores podem promover a apropriação
dos meios de produção com fins de superação da usurpação de seu trabalho
excedente por um agente social parasitário, o capitalista.
Da centralidade da política à centralidade do trabalho
Várias
teorias e doutrinas oriundas do marxismo, mas estranhas ao pensamento
de Karl Marx, deslocaram a centralidade do trabalho para a política e,
mais especificamente, para um agente social conservador, o Estado.
Talvez, não à toa a obra de Lênin é chamada O Estado e a Revolução, e
não “O Trabalho e a Revolução”. No lugar da centralidade do trabalho e
da socialização da produção e apropriação de excedentes (mais-valia)
estava a centralidade das nacionalizações das indústrias e terras
capitalistas, que, no caso soviético, redunda no controle de uma forte
burocracia estatal sobre os meios de produção, aí incluída a força de
trabalho, o que termina por não resolver positivamente o quadro da luta
de classes, isto é, a luta de interesses entre agentes sociais
antagônicos em que o excedente vai para a mão do explorador e o salário
para o proletário. O regime pós-revolucionário da União Soviética não
superou o quadro da exploração assalariada do trabalho, bem como nenhuma
das revoluções ocorridas no século XX o fez, o que não nos permite
falar na existência de um suposto “socialismo”, mas sim em regimes
pós-revolucionários que, em virtude de uma série de fatores, sucumbiram
ao burocratismo e ao terror para se manter. Isto não nega os avanços
obtidos, por exemplo, com a industrialização da Rússia e do Leste
Europeu, mas também afirma o caráter totalitário e terrorista da maior
contrarrevolução da história, conhecida como “estalinismo”.
Comunismo e auto-organização dos trabalhadores
A
categoria “comunismo”, utilizada por Karl Marx e Friedrich Engels na
defesa de uma ordem social dos trabalhadores livremente associados, está
intimamente relacionada com a centralidade do trabalho do ser social
humano. Por isso mesmo a ideia de que “a emancipação da classe
trabalhadora será obra da própria classe trabalhadora”. O protagonismo e
a auto-organização dos trabalhadores em processo de controle direto dos
meios de produção é um elemento essencial do processo revolucionário
socialista, isto é, a socialização da produção deve ser acompanhada
também do controle social sobre os meios de produção, circulação e
apropriação, pautado sempre nas necessidades sociais concretas. A
autogestão dos trabalhadores, portanto, deve ser direcionada às
necessidades sociais em geral, desde as mais básicas (alimentação,
moradia, infraestruturas, transporte, etc) às mais sofisticadas
(computadores, televisões, etc).
Por
outro lado, as concepções teóricas-práticas predominantes no seio do
movimento comunista durante todo o século XX, sejam autoproclamadas como
leninista, trotskista, estalinista, maoista etc., tiveram em sua quase
totalidade como eixo a centralidade do poder estatal para a promoção da
revolução social, o que orientou todo o movimento anticapitalista a se
constituir tendo em vista a tomada do poder do Estado para promover a
“ditadura do proletariado”. Deste modo, a própria categoria “ditadura do
proletariado” se desvirtua para uma “ditadura estatal sobre o
proletariado e em nome deste”. Ditadura do proletariado nada mais é que a
preponderância e imposição dos interesses históricos da classe
trabalhadora na sociedade, seja em locais de trabalho ou em comunas.
Lembremos que a categoria “ditadura” nos tempos de Marx possuía um
significado distinto daquele que adquiriu durante o século XX.
Entretanto, esta orientação, estranha ao comunismo revolucionário de
Marx, permanece em voga hoje no restolho do movimento comunista
internacional.
A
centralidade do trabalho recoloca também a centralidade da emancipação
dos trabalhadores, emancipação esta que configura-se como emancipação
geral da humanidade em relação à cisão e exploração classista. Ou seja, a
emancipação da classe trabalhadora é a plataforma geral de qualquer
proposta que pretenda a emancipação do gênero humano. Há, também, entre
anticomunistas e até mesmo em determinadas tendências do movimento
socialista concepções daninhas desta questão, que colocam a “ditadura do
proletariado” como a submissão de todas as classes aos trabalhadores e
seu mítico “Estado operário”.
Equívocos na orientação revolucionária
Esta
orientação rumo ao controle do aparato do Estado deixou de fora as
preocupações teóricas acerca do chamado “mundo do trabalho”, isto é, da
realidade histórica concreta com que se defronta cotidianamente a classe
trabalhadora. Tais questões são espinhosas e extremamente complexas,
assim como o é a nossa realidade histórica, pois refletem o fundamento
de nossa história e precisam ser sistematicamente trabalhadas, assim
como as várias configurações assumidas pelo capitalismo desde o século
XIX devem ser profundamente analisadas para compreendermos como se
organiza hoje a ordem do capital. Esta orientação equivocada, da qual
compartilham desde estalinistas até reformistas (que foram as duas
principais linhas políticas dos trabalhadores, dos partidos e lutas
sociais no século XX), provocou danos profundos no movimento comunista,
dado que os esforços de tais organizações estiveram voltados para a
disputa política institucional-parlamentar burguesa (e, portanto, se
adaptando às regras institucionais burguesas) ou em estratégias e
táticas com fins de tomada do poder político através do Estado. Esta
orientação, portanto, distorceu o sentido original da categoria marxista
de “revolução socialista”. Sob o estalinismo/marxismo vulgar,
“revolução socialista” passou a ser compreendido como governos dos
partidos comunistas nacionais, e não como a generalização do controle
dos trabalhadores sob democracia direta nas associações proletárias
(locais de trabalho, comunas, movimentos, partidos, etc.), a
expropriação da burguesia pela própria classe trabalhadora (e não pelo
Estado e suas burocracias), mas sim como a expropriação da burguesia em
nome da nação ou dos chamados “Estados operários”, que de operários só
tinham o nome. Nesta orientação estatista, tanto o estalinismo quanto o
reformismo socialdemocrata convergem, embora este último não defenda a
expropriação dos capitalistas.
Insuficiência do bolchevismo leninista e adversidades históricas
Lênin,
ao projetar um “partido de quadros” tinha em vista a transformação
revolucionária de um país de proporções continentais, que padecia com o
atraso histórico de suas forças produtivas (produtividade do trabalho),
com menos que 8% de operários, concentrados principalmente em Moscou e
São Petersburgo, em meio a relações de produção predominantemente
camponesas e sob a dominação política de um czarismo imperialista
empenhado em mobilizar seu povo para mais uma guerra, a Primeira Guerra
Mundial, enquanto este mesmo povo morria pela escassez de alimentos.
Diante
de uma conjuntura extremamente negativa e adversa aos revolucionários,
com um regime imperialista policialesco, perseguidor, assassino,
torturador, para não dizer dos expurgos e aprisionamentos promovidos na
Sibéria (Trotsky inclusive ali estivera preso), a ofensiva do movimento
revolucionário precisava ser certeira. Para tal sucesso, Lênin, que era
um estrategista político de altíssimo nível, coordenou a construção de
seu “partido de quadros”, os bolcheviques, desenhado para intervir
clandestinamente e publicamente na classe trabalhadora russa para que
pudesse direcioná-la à revolução socialista sem alianças nem
colaborações de classes com uma burguesia inexpressiva e quase
totalmente cooptada pelo regime do Czar. Deste modo, as concepções
reformistas/socialdemocratas derivadas de péssimas leituras de Marx,
etapistas e evolucionistas/gradualistas, de líderes como Bernstein e
Karl Kautsky, nada tinham a oferecer ao contexto histórico russo, o que
fica ainda mais em evidência com a bancarrota dos mencheviques e a
desilusão popular com o governo de transição de Março de 1917.
Os
bolcheviques souberam intervir na luta de classes em momentos
decisivos, como o foi quando da palavra de ordem “Pão, Paz e Terra”, que
sintetizava os anseios das massas laboriosas russas. Sua intervenção
correta foi determinante para a vitória popular que veio em Outubro de
1917, quando finalmente a classe trabalhadora, através de seus sovietes
(conselhos de trabalhadores municipais e regionais, que, por sua vez,
exerciam a política sob democracia direta, revogação de mandatos e
representações, etc) e sob orientação dos bolcheviques, lograram a
conquista do poder político e o controle sobre o Estado herdado do
regime czarista. A batalha fora ganha, entretanto havia uma guerra civil
instalada no país, contando com o apoio de todos os regimes
imperialistas do globo, e a causa comunista só poderia sobreviver
baseada na internacionalização da revolução social, principalmente para a
Alemanha e demais nações europeias, dada a impossibilidade da
construção de uma ordem socialista em um só país. Entretanto, aos
bolcheviques, antes mesmo de pensar em socialismo, era necessária a
superação do caos, da guerra e da fome. Nenhum dos problemas mais
sentidos pelo povo russo foi atendido plenamente, muitos deles inclusive
pioraram sob o governo bolchevique. Somente com o fim da Primeira
Guerra Mundial em 1918 e da Guerra Civil russa (meados de 1920) foi
possível inaugurar uma reconstrução nacional sob a base da Nova Economia
Política, a NEP, desta vez, com a ausência de Lênin, que adoeceu e
ficou afastado da liderança política, assumindo, em seu lugar
triunviratos
da velha guarda bolchevique, incluindo aí Josef Stálin. Ao fim de sua
vida, Lênin (que morrera em 1924) pôde evidenciar os perigos que a
revolução russa carregava: ao não lograr se internacionalizar, o partido
e o Estado russo eram terrenos férteis para o predomínio de burocracias
contrarrevolucionárias, hostis à auto-organização dos trabalhadores e
nacionalistas grão russas, corrompidas pelos privilégios econômicos e
políticos. O pesadelo de Lênin estava se realizando diante de si, e ele
não possuía forças vitais nem políticas para reverter este processo,
dado que Stálin à frente da secretaria geral do partido bolchevique,
então Partido Comunista Russo (bolchevique), não permitira nem mesmo que
o partido tivesse conhecimento sobre a existência das últimas
correspondências de Lênin, em que denunciava o burocratismo, o
nacionalismo grão russo e exigia a retirada imediata de Stálin de
qualquer quadro do partido. Era tarde. Rosa Luxemburgo, destacada
revolucionária alemã, muito antes havia criticado a concepção leninista
do partido bolchevique, alertando para as trágicas consequências que
poderiam ocorrer em função da ausência de controle das bases sobre a
direção política. A estrutura partidária leninista centralizava todo o
poder político em um grupo muito restrito e pouco representativo, mesmo
sendo eleito dentro do partido. A criação de facções também fora banida
do partido durante a política chamada de comunismo de guerra, executada
durante a guerra civil russa, abrindo caminho para a monoliticidade
burocrática.
A necessidade de novas estruturas organizativas
A
preocupação de Rosa Luxemburgo não era injustificada. A estrutura
organizativa bolchevique foi planejada para uma conjuntura histórica
específica, singular. A tentativa de generalização deste método de
organização é tão falha quanto a tentativa de generalização de
movimentos guerrilheiros. Além disso, há uma questão importante acerca
da hierarquia que não tem sido debatida. O fluxo de informações em
estruturas de hierarquias muito centralizadas permanece sob
conhecimento, isto é, poder, de um grupo muito restrito que acaba por
tomar decisões que afetam todo o movimento ali supostamente representado
e em nome deste mesmo movimento, o que significa dizer que, após a
delegação de poderes sem controles de revogação e transparência
informativa, os indivíduos e grupos que delegaram poder deixam-no
escapar de seu comando. Em outras palavras, podemos dizer que esta
representação na verdade cria um estranhamento profundo entre a base do
movimento e sua direção. Também significa que, se a base de um movimento
delega a apenas alguns de seus componentes o poder de direcionar todo o
movimento, então ele:
a)
cria condições e possibilidades concretas para a criação consciente ou
não de uma burocracia com interesses distintos, por vezes disparatados,
da base que a elegeu;
b)
dá a um determinado grupo de pessoas o poder de manipular informações
de acordo com a conveniência deste mesmo grupo, o que acontece em
qualquer burocracia;
c)
cria condições para que um equívoco ou uma traição política desta
burocracia comprometa sua base, o que significa comprometer o movimento
em sua totalidade, dado que a base não possui mecanismos para reverter
este processo, afora a pressão sob seus líderes, que por vezes é
insuficiente para alterar decisões, dado que estas são feitas
coletivamente, o que exige um esforço ainda mais complexo para as bases;
d)
personifica a política do movimento nos indivíduos que supostamente o
representam, tornando o embate no interior do movimento não em prol
deste ou daquele viés ideológico, mas contra pessoas e grupos.
A
estrutura bolchevique era fundamentalmente organizada com base no
formato de um comitê central eleito em congressos, com uma média de 25
líderes; seus quadros intermediários, que eram também líderes populares;
e uma imensa base, que precisava delegar representantes para
supostamente defender seus interesses nos congressos. Vale lembrar ainda
que as burocracias possuem origens bem concretas, com a separação entre
os agentes decisórios e os agentes que executam as decisões (muitas
vezes sem discutir ou questionar as determinações dos seus
“superiores”). Logo, qualquer movimento que se estruture sob bases
burocráticas muito centralistas estarão fadadas a esta profunda cisão de
interesses entre base e direção. O máximo de democracia que este tipo
de estrutura organizativa permite são frações que podem entrar em
disputa ideológica e política, mas sempre tendo de abrir mão de
bandeiras para acomodar interesses de outras frações para se manter no
controle do aparato. Esta é uma limitação histórica insuportável nos
dias atuais, e é insustentável como se vê na debandada e degeneração dos
partidos comunistas, e não deve ser admitida pelo movimento comunista
como uma estratégia organizativa viável.
O movimento deve ser a direção e a direção deve ser o movimento
É
necessário o próprio movimento se dar direcionamento, isto é, a base
ser direção de si mesma, sem a necessidade de delegação de poderes
supremos a seus membros. Os burocratas costumam odiar esta ideia porque a
auto-organização simplesmente é a afirmação da não necessidade da
divisão entre decisão e execução, entre legislação e realização. Ou
seja, se o conjunto de um movimento se auto-organiza não há a
necessidade de uma direção apartada da base. Isto não elimina a
necessidade de líderes, mas desde que estejam sob controle da base,
através de revogação e da transmissão de informações diretamente a ela,
sem interlocutores indiretos ou burocracias.
Não
se educam ativistas recém chegados à luta sem experimentá-los na luta,
sem dar-lhes a possibilidade de liderar ações, sem lhes dar a chance ao
erro e, muito menos, ao acerto. E sem o erro, não se aprende, e sem
aprender, sem o conhecimento, sem a (in)formação correta, não há ação
revolucionária. É por isto que organizações fortemente centralizadas
minam a capacidade criativa e revolucionária de suas bases, tornando-as
mera massa de manobra em prol de interesses que não são os seus
próprios, criando assim o ambiente propício para o oportunismo, para
traições políticas e a degeneração.
Metaforicamente, estamos em tempos de bombas nucleares e imperialismo hightech
enquanto o movimento comunista ainda dispõe de revólveres russos
enferrujados de 1917, isto é, de estruturas e métodos conservadores,
que, portanto, não dialogam com o atual tempo histórico.
A
questão metodológica não é central, mas sim os ganhos cognitivos e
históricos efetivos, que permitem saber sempre mais, inclusive
formulando estratégias metodológicas cada vez mais conscientes e
críticas. Ou seja, não é o modo de conhecer (ou, no caso, um modo de
agir) pré-determinado que deve ser buscado, seja em Marx, Trotsky ou
Lênin, mas sim obter um conhecimento profundo e abrangente acerca do
mundo, para, com base nele, discernir as ações de curto, médio e longo
prazo compatíveis com o objetivo da emancipação humana.
Constatando
isto, podemos afirmar que mais urgente que construir aparatos
partidários é construir um consistente movimento anticapitalista, e este
movimento anticapitalista precisa criar estruturas de luta para além do
centralismo burocrático. Os anticapitalistas (socialistas, anarquistas,
comunistas etc) precisam saber se serão porta-vozes de um passado já
distante ou do futuro promissor que só a luta pode construir.
Nenhum comentário:
Postar um comentário