Com mais de 300 livros publicados sobre o Rio Grande do
Norte, o editor Abimael Silva, proprietário do Sebo Vermelho, no centro
de Natal, tornou-se uma espécie de guardião da cultura de seu estado, e
uma referência para quem quer ir muito além das praias e dunas
Por: João Correia Filho na REDE BRASIL ATUAL
"O objetivo de um livro é fazer outro" Poucos lugares do
Sebo Vermelho são arrumados como a estante das edições do próprio selo
(Foto: João Correia Filho)
O local não é o que se pode chamar de ponto turístico. Uma pequena
porta de correr pintada de vermelho, com a tinta já descascada, um
amontoado de livros entre poeira, móveis e pilhas de papel. Mas se
engana quem não vê nesse estabelecimento, no centro histórico de Natal,
uma das maiores referências para conhecer a cultura potiguar e adentrar o
Rio Grande do Norte de norte a sul, praia e sertão, erudito e popular.
Criado em 1985, o Sebo Vermelho tornou-se muito mais que um sebo a
partir de 1990, quando seu proprietário, o ex-bancário Abimael Silva,
resolveu publicar o livro de um amigo sobre a história do cinema em
Natal. E foi assim, com Écran Natalense, de Anchieta Fernandes, que
Abimael começou sua saga editorial, que já chega à marca de mais de 300
livros lançados, dos mais variados temas, mas todos voltados para a
cultura potiguar.
“Anchieta não encontrava espaço para publicar esse brilhante ensaio,
sempre com negativas das editoras daqui. Decidi procurar Varela
Cavalcanti, então presidente do Sindicato dos Bancários, que sabia da
importância da obra. Comprei todo o material e ele topou fazer a
impressão. Imprimimos 300 exemplares e, felizmente, conseguimos vender
todos”, conta Abimael, que a partir daí passou a lançar outros títulos
por conta própria.
Livreiro por natureza
Antes
disso, trabalhara quatro anos no setor de conta corrente de um banco.
“Ficava o dia inteiro somando cheques, mas sempre pensando que queria
trabalhar numa livraria. Na primeira oportunidade, saí do banco e
resolvi começar meu próprio sebo”, diz Abimael. Na época, sua biblioteca
particular tinha mais de 700 livros, e 600 foram colocados à venda.
“Lamento a perda de alguns poucos que nunca mais encontrei em 26 anos de
sebo, como Cartas a Nora, de James Joyce, e alguns do Graciliano
Ramos.”
As publicações do Sebo Vermelho, depois de quase três décadas de
existência, apresentam um completo panorama da cultura do estado, além
de importantes resgates de livros. É o caso de Antologia Poética do Rio
Grande do Norte, publicado originalmente em 1922 e reeditado pelo selo
em 1993. Os Americanos em Natal, do historiador Lenine Pinto, é outro
destaque. Retrata a cidade durante a Segunda Guerra Mundial, quando se
tornou uma base dos Estados Unidos e sofreu forte influência da cultura
americana. Outra pérola, O Carteiro de Cascudinho, foi escrita por José
Helmut Cândido, o carteiro de Câmara Cascudo durante anos, que conta
suas experiências servindo um dos maiores intelectuais do Nordeste.
As tiragens do Sebo Vermelho costumam ser pequenas, no máximo 500
exemplares, e com distribuição extremamente complicada, já que é difícil
entrar no esquema das grandes livrarias, que dominam o mercado. “Até o
livro número 34, ainda tinha esperança de que isso pudesse render algum
dinheiro, mas hoje, para mim, o que importa é apenas que as edições se
paguem, pois o objetivo de um livro é fazer outro, e assim por diante”,
resume o editor. Ele lembra que um dos livros que mais venderam foi
História do Rio Grande do Norte, do pesquisador Ezequiel Vanderlei,
publicado originalmente em 1992. Foram 500 exemplares em seis meses.
É dessa forma que são lançados cerca de 30 títulos por ano, e o
editor pretende alcançar a marca de 500 livros editados até 2012. “O
mérito é todo do Rio Grande do Norte, que tem tudo isso para ser dito”,
argumenta Abimael, que garimpa preciosidades em viagens pelo interior e
em conversas com amigos. A triagem é feita pelo valor histórico e
editorial, que conta com a sensibilidade de quem conhece seu estado e
vive envolto por livros e intelectuais de peso. “Também aparecem várias
porcarias, como uma senhora que queria pagar a publicação do livro do
neto, de 5 anos, edição bilíngue, pelo selo. Obviamente, não aceitei.”
Vermelho?
Embora o caráter político-literário do trabalho de Abimael esteja
claro, o nome de seu sebo nada tem a ver com posições ideológicas. Ao
alugar um quiosque para montar sua banca, ele notou que todos eram azuis
ou pretos. Para destacá-lo, pintou tudo de vermelho. “Até o dia em que
chegou alguém e perguntou: ‘Aqui é o sebo vermelho?’ E o nome acabou
ficando. Mas minha mãe achou horrível, achava que tinha de se chamar
Sebo São José”, brinca Abimael. Hoje, o sebo não está mais instalado em
um quiosque de rua, mas na Avenida Rio Branco, bem no centro da cidade. E
mantém a cor como chamariz.
Ano após ano, a luta do sebista-editor foi se tornando também uma
bandeira política e social, à medida em que virava um verdadeiro
guardião da cultura do estado. Além de ser hoje o maior editor potiguar
(talvez do Nordeste, pelo número de títulos), tem acumulado uma série de
resgates cuja importância é negligenciada pelo poder público e pelas
editoras privadas. “Só querem saber do que vende em grandes tiragens. É
nisso que investem ainda mais. Quando houve o lançamento do livro do
Padre Marcelo aqui em Natal, venderam 5.000 exemplares num único dia,
graças a um aparato gigante de marketing”, alfineta o sebista. “Aqui,
nunca a prefeitura comprou ou indicou um único livro meu que fale do Rio
Grande do Norte. Já tentei, já mandei ofício, mas esse povo fica
esperando que a gente puxe o saco.”
Sem uma empresa distribuidora, os títulos do Sebo Vermelho são
vendidos, em sua grande maioria, no dia do lançamento e no boca a boca,
ou em algumas livrarias de Natal, nas quais Abimael leva pessoalmente
cada exemplar. “Quanto maior a livraria, maior o obstáculo”, reclama. No
sebo, os livros editados por ele são os que têm maior destaque,
expostos nas paredes da entrada, com um pouco mais de organização que os
demais. Segundo ele, um dos raros momentos de destaque do Sebo Vermelho
ocorreu quando foi entrevistado pelo apresentador Jô Soares. Na
ocasião, havia alcançado 100 livros editados e os poucos momentos
televisivos renderam visibilidade, embora isso não tenha mudado
substancialmente a venda de seus livros. “Foi bom pra chamar a atenção,
por exemplo, para o sertão do Rio Grande do Norte, que quase sempre é
deixado de lado”, diz Abimael.
Quando sobra tempo ou dinheiro, Abimael viaja para as duas capitais
próximas de Natal, Recife (a 285 quilômetros) e João Pessoa (a 190
quilômetros), sempre com o carro lotado de exemplares, que vai
entregando de livraria em livraria, numa verdadeira romaria literária.
Já no interior do Rio Grande do Norte, além da pesquisa de novos
títulos, realiza eventualmente lançamentos de obras que falem do sertão
ou de autores locais. É o caso de O Ataque de Lampião a Mossoró,
história em quadrinhos escrita por Emanoel Amaral e Alcides Sales.
Para este ano, um dos destaques entre os lançamentos é a reedição de
Indícios de uma Civilização Antiquíssima, de José de Azevedo Dantas.
Autodidata e pioneiro da antropologia brasileira, escreveu em 1925 um
verdadeiro tratado sobre as pinturas rupestres do sertão potiguar, mais
especificamente sobre a região do Seridó, no sul do estado, já na divisa
com a Paraíba.
Para quem quer conhecer o Rio Grande do Norte além dos livros, é bom
lembrar que se trata de uma região riquíssima, com belas paisagens,
cidades históricas e muitas pinturas rupestres, a maioria datada de 10
mil anos. Somente Carnaúba dos Dantas, a 200 quilômetros da capital,
onde viveu José Dantas, possui mais de 60 sítios arqueológicos para
serem visitados.
Outra predileção de Abimael são os livros de história e de
fotografias. Entre os mais importantes lançados por ele estão Uma Câmara
Vê Cascudo, com imagens raras do escritor, feitas no final dos anos
1970; e Natal Através dos Tempos, que retrata a cidade desde os anos
1940, ambos do fotógrafo potiguar Carlos Lyra, falecido em 2006.
Além de um lugar para comprar livros sobre o Rio Grande do Norte, o
Sebo Vermelho também se tornou, em seus 26 anos, um importante reduto de
intelectuais, a maioria em busca de boa literatura ou boas conversas,
que acontecem ali quase todos os dias.
No fundo da loja há uma pequena mesa de sinuca e uma geladeira, aos
sábados repleta de cervejas. O ponto de encontro virou tradição entre os
amigos que frequentam o sebo. Não faltam uma boa cachaça e a carne de
sol, “a melhor de Natal, que eu mesmo escolho”, faz questão de dizer
Abimael. Nesses churrascos, o papo rende e surgem ideias para novos
livros, além do incentivo dos amigos para que Abimael continue na dura
batalha a favor da cultura do Rio Grande do Norte, um estado que, se
você quiser conhecer a fundo, não pode deixar de incluir o Sebo Vermelho
em seu próximo roteiro.
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