segunda-feira, 10 de setembro de 2007

O Memorando Debray sobre a Palestina

A distância entre o que é dito (porque queremos ouvi-lo) e o que é feito (que nos repugna ver) pelos governos israelenses no local assume, para alguns, proporções de jogo duplo e, para outros, de esquizofrenia

Régis Debray

Em outubro de 2006, o então presidente da República Francesa, Jacques Chirac, encarregou o intelectual Régis Debray de “conduzir uma pesquisa de campo sobre a situação das diversas comunidades etno-religiosas do Oriente Médio”, recomendando que fosse “dirigida a todos os setores, sem exceção”. Foi dentro desse quadro, entre outras observações recolhidas na região, que o autor remeteu às autoridades francesas, no dia 15 de janeiro de 2007, este memorando sobre a Palestina e os riscos implicados na utilização de expressões retóricas, empregadas dentro de certa linguagem internacional estereotipada, atualmente em vigor. Embora seja conveniente, como nos lembrou o autor, levar em conta as regras estritas do gênero “memorando diplomático” (concisão e circunspeção), este documento, corroborado em seguida por relatórios públicos e oficiais (Banco Mundial, ONU etc), é uma importante interpretação do longo desvio a cujos resultados trágicos estamos assistindo.

“O processo diplomático não levou devidamente em conta as evoluções no terreno e suas conseqüências — Que evolução? — Para começar, a colonização ” (Dennis Ross, ex-mediador americano no Oriente Médio, questionado, em 2000, a respeito do erro cometido durante os acordos de Camp David, de 1978)

De 1994 a 2000, o número de colonos judeus nos territórios palestinos havia efetivamente dobrado. Desde os acordos de Oslo, de 1993, o número de israelenses que se instalou na Cisjordânia iguala o dos 25 anos anteriores. No momento em que evocamos mais uma vez uma conferência internacional, seria nefasto refazer o inventário da situação anterior ou da realidade atual. É inútil nomear uma nova comissão. Esse levantamento já foi feito bem mais de uma vez. Nenhum conflito no mundo foi tão bem documentado, mapeado e arquivado.

O OCHA (Office for the Coordination of Humanitarian Affairs), subordinado à ONU, mantém em dia mapas evolutivos e precisos dos territórios em disputa, com fotos, recenseamentos, gráficos etc. Seu exame leva em torno de uma hora, mas permite economizar as eternas declarações de boas intenções. O que esses mapas mostram? Que as bases físicas, econômicas e humanas de um “Estado palestino viável” estão em vias de desaparecimento, de forma que a “two state solution", o “divórcio justo e imparcial” (Amoz Oz), o território partilhado entre duas nações, um menor que o outro, desmilitarizado, porém soberano, viável e contínuo, parecem palavras vazias, a conjugar no futuro do pretérito. Poderíamos contestar que se tenha chegado ao ponto de não-retorno, argumentando que, se os israelenses ganharam a batalha territorial (apenas 22% do território palestino na época do mandato britânico ainda foge ao seu controle), os palestinos ganharão a batalha demográfica. Poderíamos opor a impressionante “resiliência” das populações locais ao calmo rolo compressor que, avançando lentamente, executa o Plano Allon, de 1968, e o “Plano Rodoviário 50”, de 1984.

Nem por isso se deixa de deduzir, dos “avanços na região”, que: 1. a barreira de segurança não pretende, como se crê, traçar uma fronteira — talvez ilegal (uma vez que engloba mais de 10% da Cisjordânia), mas que serve, pelo menos, se pensava, como demarcação internacional pontilhada; 2. é bem verdade (como afirmou Ehud Omert na rádio do Exército Israelense, no dia 20 de março de 2006) que as fronteiras estratégicas de Israel se encontram no rio Jordão (o vale inteiro foi declarado “zona proibida”) — a conquista paulatina da zona intermediária já permite, em alguns lugares, o contato entre as duas margens;

3. as novas estradas ditas “de contorno leste-oeste”, que sacrificam o antigo eixo norte-sul, desenham claramente o mapa de um território em vias de anexação, admitindo três ou quatro bantustões árabes (Jenin, Ramallah e Jericó) — enclaves congestionados, com recursos naturais fadados ao esgotamento, o que, portanto, determina, a termo, um êxodo mais ou menos intenso (uma boa parte das elites, particularmente as cristãs, já se expatriaram); 4. com a construção do muro, a “judaização” em curso de Jerusalém Leste e, principalmente, a recomposição do município, as reiteradas condenações da ONU, puramente formais, não têm nenhuma incidência sobre a continuidade do processo de apoderamento do conjunto da cidade [1]. A distância entre o que é dito, porque queremos ouvi-lo (retiradas localizadas, flexibilização na outorga de licenças, levantamento de uma barreira a cada vinte, moderação do tom), e o que é feito no local, e que nos repugna ver (a estruturação das colônias, a construção de pontes e túneis, o cerco de territórios palestinos, as expropriações de terras, a destruição de casas), assume, para alguns, proporções de jogo duplo e, para outros, de esquizofrenia. Como o velho “um dinam a mais, uma cabra a mais” ocorre longe das câmeras, sem repercussão e, melhor ainda, sem “diktat colonial” explícito, ninguém se ofende, supondo que chegue a se informar a respeito (o que é difícil, já que ninguém envelhece no local). “Judéia-Samaria” é o nome dado à Cisjordânia pelos mapas e manuais escolares israelenses, nos quais o desaparecimento da linha verde de 1967 é uma conquista legalizada, como acaba de decidir a Knesset (o parlamento israelense), recusando a proposta de uma ministra da educação trabalhista.

Mais do que um hiato episódico entre o de facto e o de jure, trata-se de um método e de uma tradição que remontam aos primeiros passos do Yichuv [2], a do fato consumado, e que sempre deram certo (o Estado estava lá antes de ser declarado e reconhecido como tal, em 1947, assim como o exército): um teatro de dois palcos, no qual um vê a repetição de palavras vagas, de uma imprecisão vantajosa (retirada, coexistência, Estado), mas onde as coisas sérias (implantações, estradas, túneis, lençóis aquáticos) acontecem paralelamente, no decisivo palco de operações a termo (sem publicidade).

Conhecendo as engrenagens da democracia de opinião, que precisa de esperanças e anúncios exultantes, como todos, aliás, os sucessivos governos israelenses (de esquerda e de direita) são zelosos em administrar-lhe sua dose trimestral de analgésicos (planos de retirada unilateral, desmantelamentos parciais, anúncios julgados “interessantes”, mas sempre condicionados e, portanto, sem continuidade). A mídia vive no dia-a-dia e não cultiva a memória. Quem se lembra que o “mapa do caminho” [3] estipulava “um acerto definitivo e global do conflito israelense-palestino até 2005”?

O ex-processo de Oslo, reconheçamos, não ficou apenas sem efeitos. Com a reocupação militar das zonas A e B [4] em abril de 2002, ele cumpre, digamos assim, suas proposições ao inverso.

Se acrescentarmos à fragmentação do território (que desconecta todo eventual comando central palestino de governos locais, e esses uns dos outros) a destruição física e metódica das instituições “nacionais”, da infra-estrutura e dos próprios quadros políticos pelo exército israelense (garantia de anarquia interna, de proliferação de gangues, de clãs e de acertos de contas, enfim, de um caos sem fim), constatamos claramente que o caminho percorrido não foi o da nation-building, mas o da desconstrução de toda governabilidade possível do outro lado do Muro. É o avesso lógico de uma anexação programada em médio prazo (30 anos) e que será confirmada no momento adequado “em vista da nova realidade local”.

Nestas condições, o recurso consensual, mas enfeitiçante, ao mapa do caminho (sinais promissores e janelas de oportunidades) parece pertencer mais ao domínio do método Coué do que à sábia preocupação com uma transformação constante e coerente das coisas. Esse mapa não é visível de Genebra, Paris ou Nova Iorque, mas se descortina a quem quer que retorne após alguns anos de ausência, rastreando um país militarmente quadriculado por todos os lados, no qual as “colônias” israelenses já não desenham formas sobre um fundo palestino, mas os grânulos palestinos, sim, constituem formas sobre um fundo hebreu solidamente estruturado; no qual as reservas de água são preemptivas; no qual nada separa a restrição temporária de circulação da proibição pura e simples.

Podemos, isto dito, nos reconfortar com a idéia de que: 1. Se a retirada das colônias foi possível em Gaza, poderá sê-lo amanhã na Cisjordânia. Significa esquecer que a retirada de 8 mil colonos aqui (com um jornalista para cada três colonos) veio acompanhada, nos meses seguintes, da instalação discreta de 20 mil colonos em outras áreas. Gaza não fazia parte da herança sagrada, ao passo que a “Judéia-Samaria” é sua espinha dorsal. E Sharon nunca escondeu que essa remoção marginal tinha como contrapartida o reforço da presença israelense para além da linha verde (438 mil colonos até agora, incluindo 192.910 em Jerusalém Oriental); 2. Com o desmantelamento de quatro pequenas colônias no norte (mil colonos) e a hipótese de um reagrupamento de colonos (60 mil) nos três blocos mais populosos — Maale Adumim, Ariel e Gush Etzion—, um espaço seria liberado. Seria esquecer que, com a continuação dos rosários de colonização, ao abrigo da barreira de segurança, a Cisjordânia está simplesmente dividida em duas. O Muro separa os palestinos uns dos outros, tanto quanto ou até mais do que os separa dos israelenses. No lugar do Estado palestino, anunciado e desejado por todos, perfila-se, em resumo, um território israelense ainda despercebido, com três municípios palestinos auto-regidos encravados.

Todas as partes têm interesse na manutenção das falsas aparências e fachadas internacionais [5]. Os israelenses, porque a história avança dissimulada. Os palestinos porque não se pode dizer a verdade a um povo ocupado, e que mantém a esperança, sem incitá-lo a se autodestruir; e porque personalidades, deputados e funcionários extraem, do que se tornou uma esperança estéril, sustento, titulação, dignidade e razão de ser. Os europeus, porque escolheram compensar sua conduta mediante uma ajuda financeira e humanitária considerável, que os exonera de sua passividade política e de sua cegueira voluntária. E os norte-americanos, mentalmente mais ligados ao Antigo Testamento do que ao Novo, porque seu laço existencial com Israel é do tipo filial e, portanto, acrítico. A ilusão autoprotetora e compartilhada resulta, assim, de uma coincidência de interesses opostos — aí é que está a ironia da história.

De imediato: essa situação é sustentável no longo prazo, digamos, até o final desse século? Pode-se duvidar, visto o tanto que sua obsessão securitária oculta de insegurança para Israel e de inconsciência das pesadas predisposições da região, particularmente demográfica, informática e religiosa [6]Um governo europeu, ou vários, não podia avisar aos nossos amigos israelenses: 1) que não somos todos idiotas; e 2) que, se há enganação, seus promotores não serão as primeiras vítimas, mas, infelizmente, as últimas?



[1] Nota da Redação: Ler Dominique Vidal e Philippe Rekacewicz, “A anexação de Jerusalém Oriental”, Le Monde Diplomatique - Brasil , fevereiro de 2007.

[2] Nota da Redação: Termo hebraico, utilizado pelo movimento sionista antes da criação do Estado de Israel, para designar os residentes e os novos imigrantes judeus da Palestina.

[3] Nota da Redação : O “mapa do caminho” foi adotado pelo “quarteto” (Organizações das Nações Unidas, Estados Unidos, União Européia e Federação Russa) no dia 30 de abril de 2003, como uma proposta para pôr fim ao conflito israelense-palestino.

[4] Os territórios palestinos compreendem a Cisjordânia, a Faixa de Gaza (45 km de comprimento e 10 km de largura) e Jerusalém Oriental. No final dos acordos de Oslo, os territórios foram divididos em três zonas: Zona A: abrangendo, a partir de 1994, Gaza assim como as cidade de Jericó, Jenin, Qalqilya, Ramallah, Tulkarem, Nablus e Belém (a cidade de Hebron foi objeto de um acordo distinto, em janeiro de 1997) — sobre a qual a Autoridade Palestina exerce jurisdição civil, incluindo o poder de polícia; Zona B: abrangendo as outras áreas da Cisjordânia — sobre a qual a Autoridade Palestina exerce competências civis, compartilhando a promoção da segurança interna com o exército israelense; Zona C: abrangendo as colônias israelenses implantadas na Cisjordânia, em Gaza (hoje desmanteladas) e em Jerusalém Oriental. Esta continua sob o controle do Estado judeu.

[5] Nota da Redação : Ler Alain Gresh, “Comment le monde a enterré la Palestine”, Le Monde diplomatique, julho de 2007.

[6] Nota da Redação : Ler, em especial, o relatório entregue ao secretário geral da Organização das Nações Unidas, no dia 5 de maio de 2007, por Alvaro de Soto, coordenador especial da ONU pelo processo de paz no Próximo Oriente. Texto integral em inglês disponível no site

O Decodificador

Há violações da propriedade privada que não causam qualquer comoção social apesar de serem graves, por exemplo, os salários em atraso. No caso dos transgênicos, o tratamento do direito de propriedade apresenta contradições flagrantes.

Freqüentemente, um pequeno acontecimento revela aspectos da vida coletiva que, apesar de importantes, permanecem submersos na consciência dos cidadãos e na opinião pública. A destruição de um campo de milho transgênico no Algarve (Portugal) é um desses acontecimentos. Através dele revelaram-se entre outras, as questões da legitimidade das lutas sociais, da propriedade privada, da influência dos interesses econômicos nas legislações nacionais, do papel do Estado nos conflitos sociais, da construção social da periculosidade de certos grupos sociais e da possível nocividade dos organismos geneticamente modificados (OGMs) para a saúde pública.

As lutas sociais são frequentemente compostas de acções legais e ilegais. Os atos fundacionais das democracias modernas foram, quase sem exceção, ilegais: greves e manifestações proibidas, lutas clandestinas, insurreições militares (como o 25 de Abril), atos que hoje consideramos terroristas (como os do "terrorista" Nelson Mandela). Em certos contextos, os ativistas podem escolher entre meios legais e ilegais (como no caso em questão), noutros, não têm outra opção que não a da ilegalidade.

A propriedade privada é um alvo difícil porque as concepções sociais a seu respeito são muito contraditórias e evoluem historicamente. Os primeiros impostos sobre o capital industrial não foram considerados pelos empresários como uma violação do direito de propriedade?

Enquanto, por um lado, a polinização cruzada faz com que culturas convencionais venham a ser contaminadas pelos OGMs, o que, sendo uma violação do direito de propriedade, não levanta nenhum clamor. Por outro lado, um agricultor canadense, vítima de polinização cruzada, foi obrigado a pagar uma indemnização à Monsanto, empresa de sementes, por ter violado o direito de propriedade desta (a patente) ao usar sementes que tinham sido contaminadas contra a sua vontade.

Estas contradições decorrem do fortíssimo lobby das grandes empresas de sementes, cinco ou seis a nível mundial, na legislação e nas políticas nacionais. Só essa pressão explica: que Portugal - durante um tempo visto como refúgio da agricultura biológica e orgânica da Europa – seja hoje um dos seis países a aceitar os transgênicos; que a legislação portuguesa seja tão enviesada a favor dos OGMs que quase parece ter sido redigida pelos advogados das empresas; que o ministro da triste figura faça, de um campo de milho, um campo de batalha a exigir imediata ajuda humanitária; que os técnicos do Estado apaguem, como ciência, os press releases da Monsanto e escamoteiem a questão principal: se os OGMs fazem mal às borboletas e outros animais inferiores porque não accionar o princípio da precaução?

Este lobby encontra no caldo de cultura conservador da opinião pública o contexto ideal para estigmatizar a oposição aos seus interesses. E assim os ativistas são transformados em "ecofascistas" ou "terroristas light".

PS: dedico esta coluna ao Eduardo Prado Coelho

* Publicado originalmente na revista Visão em 30 de Agosto de 2007


Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).