quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Compra de eleições por parte das empresas corporativas....

A apropriação da democracia dos EUA pelas empresas
Noam ChomskyCom a decisão do Supremo Tribunal dos EUA de 21 de Janeiro deste ano, os gestores das empresas podem passar a comprar eleições directamente. Por Noam Chomsky

O dia 21 de Janeiro de 2010 irá permanecer como um dia sombrio na história da democracia dos EUA e do seu declínio.
Nesse dia, o Supremo Tribunal dos EUA decidiu que o governo não poderá impedir as empresas de fazer gastos políticos nas eleições - uma decisão que afecta profundamente a política governamental, quer interna quer externa.
A decisão marca ainda mais a apropriação pelas empresas do sistema político dos EUA. Para os editores do The New York Times, a decisão "atinge o coração da democracia" tendo "aberto caminho para as empresas usarem as suas vastas tesourarias para dominar as eleições e pressionar os políticos eleitos a cumprir as suas ordens."
O Tribunal estava dividido, 5-4, com os quatro juízes reaccionários (erradamente designados "conservadores") a receber o apoio do Juiz Anthony M. Kennedy. O Presidente do Supremo, John G. Roberts Jr., escolheu um caso que poderia ter sido facilmente resolvido em esferas mais baixas e manobrou o tribunal, usando-o para impor uma decisão de grande alcance, que derruba um século de precedentes restringindo as contribuições das empresas para campanhas federais.
Agora, os gestores das empresas podem efectivamente comprar eleições directamente, ultrapassando meios indirectos mais complexos. É bem sabido que as contribuições das empresas, embrulhadas por vezes em formas complexas, podem inclinar a balança nas eleições, conduzindo dessa forma a política. O tribunal acabou de atribuir muito mais poder ao pequeno sector da população que domina a economia.
A "teoria do investimento político" do economista político Thomas Ferguson é um prognóstico bastante eficaz da política do governo durante um longo período. A teoria interpreta as eleições como ocasiões em que segmentos do poder do sector privado se unem para investir no controlo do Estado.
A decisão de 21 de Janeiro apenas reforça os meios para minar o funcionamento da democracia.
O contexto é esclarecedor. No seu voto de vencido, o juiz John Paul Stevens reconheceu que "há muito que sustentamos a ideia de que as empresas estão cobertas pela Primeira Emenda" - a garantia constitucional da liberdade de expressão, que incluiria o apoio aos candidatos políticos.
No início do século XX, os teóricos de Direito e os tribunais implementaram a decisão do tribunal de 1886 pela qual as empresas - "estas entidades legais colectivistas" - têm os mesmos direitos que as pessoas de carne e osso.
Este ataque ao liberalismo clássico foi duramente condenado por uma espécie de conservadores em extinção. Christopher G. Tiedeman descreveu o princípio como "uma ameaça à liberdade do indivíduo e à estabilidade dos Estados norte-americanos enquanto governos populares."
Morton Horwitz escreve na sua história do Direito que o conceito de personalidade empresarial evoluiu paralelamente à mudança do poder dos accionistas para os gestores, e finalmente para a doutrina em que "os poderes do conselho de administração são idênticos aos poderes da empresa." Anos mais tarde, os direitos das empresas foram expandidos muito além das pessoas, nomeadamente pelos mal designados "acordos de livre comércio." Segundo esses acordos, por exemplo, se a General Motors instalar uma fábrica no México, pode exigir que seja tratada como qualquer negócio mexicano ("tratamento nacional") - ao contrário de um mexicano de carne e osso que procure "tratamento nacional" em Nova York, ou mesmo os direitos humanos mínimos.
Há um século atrás, Woodrow Wilson, na altura um académico, descreveu uma América na qual "grupos comparativamente pequenos de homens," gestores empresariais, "detêm um poder e controlo sobre a riqueza e as operações de negócios do país," tornando-se "rivais do próprio governo."
Na verdade, estes "pequenos grupos" tornaram-se cada vez mais os donos do governo. O tribunal de Roberts deu-lhes um alcance ainda maior.
A decisão de 21 de Janeiro chegou três dias depois de uma outra vitória para a riqueza e o poder: a eleição do candidato republicano Scott Brown para substituir o falecido senador Edward M. Kennedy, o "leão liberal" de Massachusetts. A eleição de Brown foi descrita como uma "vaga populista" contra as elites liberais que lideram o governo.
Os dados da votação revelam uma história bastante diferente.
Elevados índices de participação nos subúrbios ricos, e baixos nas áreas urbanas maioritariamente democratas, ajudaram a eleger Brown. "Cinquenta e cinco por cento dos eleitores republicanos afirmaram estar 'bastante interessados' na eleição", informou a sondagem do Wall St. Journal/NBC, "comparado com os 38% dos democratas."
Assim, os resultados foram de facto um acto de revolta contra as políticas do presidente Obama: para os ricos, ele não estava a fazer o suficiente para enriquecê-los ainda mais, enquanto que para os sectores mais pobres estava a fazer demasiado para atingir esse fim.
A irritação popular é bastante compreensível, dado que os bancos estão a prosperar, graças às ajudas do governo, enquanto o desemprego aumentou para 10%.
No sector industrial, uma em cada seis pessoas está desempregada - um desemprego ao nível da Grande Depressão. Com a financiarização crescente da economia e o esvaziamento da indústria produtiva, as perspectivas são sombrias para a recuperação dos empregos perdidos.
Brown apresentou-se a si mesmo como o 41º voto contra o sistema de saúde - ou seja, o voto que poderia minar a maioria do Senado dos EUA.
É verdade que o programa de cuidados de saúde de Obama foi um factor importante na eleição de Massachusetts. Os títulos dos jornais estão correctos quando se lê que a população está a voltar-se contra o programa.
As sondagens explicam porquê: o projecto de lei não vai suficientemente longe. A sondagem do Wall St. Journal/NBC demonstra que a maioria dos eleitores desaprova a forma como tanto os republicanos quanto Obama têm lidado com a reforma do sistema de saúde.
Estes números estão de acordo com as recentes sondagens nacionais. A opção do sistema público foi apoiada por 56% dos entrevistados, e a adesão ao Medicare aos 55 anos de idade foi apoiada por 64%; ambos os programas foram abandonados.
Oitenta e cinco por cento acreditam que o governo deveria ter o direito de negociar o preço dos medicamentos, como acontece noutros países; Obama garantiu à indústria farmacêutica que não irá seguir em frente com essa opção.
Largas maiorias são a favor da redução de custos, o que faz todo o sentido: os custos per capita dos EUA para o sistema de saúde são cerca do dobro relativamente a outros países industrializados, e os resultados da saúde estão a regredir.
Mas a redução de custos não pode ser levada a cabo seriamente quando as indústrias farmacêuticas são agraciadas, e o sistema de saúde está nas mãos das seguradoras privadas praticamente desreguladas - um sistema peculiar bastante caro aos E.U.A.
A decisão de 21 de Janeiro levanta novas barreiras significativas para ultrapassar a grave crise no sistema de saúde, ou para lidar com questões críticas como as ameaçadoras crises ambiental e energética. O hiato entre a opinião pública e a política pública avizinha-se crescente. E o prejuízo para a democracia norte-americana dificilmente pode ser sobrevalorizado.

Publicado em Znet
 
Traduzido por: Sara Vicente

Blowback: o legado da CIA no Irã, Afeganistão e Paquistão




O mínimo que se pode dizer é que no Irã, Afeganistão e Paquistão os EUA colhem hoje o que a CIA plantou com a colaboração de gente como o deputado Charlie Wilson. Osama Bin Laden foi treinado pela CIA para atacar os russos; gostou e atacou depois o World Trade Center em Nova York. E as bombas atômicas do Paquistão (real) e do Irã (hipotética) devem-se, ao menos em parte, à igual cortesia da CIA. A situação atual destes três países reflete o passado irresponsável da espionagem dos EUA. O artigo é de Argemiro Ferreira.

A imagem do herói no cavalo branco a salvar a mocinha das garras do vilão, seja este assaltante de banco ou índio em defesa de suas terras invadidas, é recorrente na ficção de Hollywood. O deputado Charlie Wilson morreu, aos 76 anos, no dia 10 de fevereiro, certo de que era herói na vida real. Motivo: no Congresso injetou bilhões de dólares para financiar os que lutavam contra os russos no Afeganistão.

Ao morrer do coração Wilson já estava aposentado. Mas ele representou o Texas por 14 mandatos sucessivos na Câmara. Um livro (“Charlie Wilson’s War - The Extraordinary Story of the Largest Covert Operation in History”, de George Crile) e um filme (“Charlie Wilson’s War”, de Mike Nichols, com Tom Hanks no papel-título) o retrataram como herói.

A semana marcou ainda o 31° aniversário da revolução dos aiatolás do Irã, ocorrida apenas alguns meses antes da invasão do Afeganistão. Os iranianos derrubaram o regime do xá Reza Pahlevi, instalado em 1953 graças a golpe planejado pela mesma CIA que usou as verbas secretas do deputado Wilson para recrutar e armar os radicais islâmicos do lado paquistanês da fronteira com o Afeganistão.

O mínimo que se pode dizer é que no Irã, Afeganistão e Paquistão os EUA colhem hoje o que a CIA plantou com a colaboração de gente como o deputado Wilson. Osama Bin Laden foi treinado pela CIA para atacar os russos; gostou e atacou depois o World Trade Center em Nova York. E as bombas atômicas do Paquistão (real) e do Irã (hipotética) devem-se, ao menos em parte, à igual cortesia da CIA.

A lambança atual no Afeganistão (largamente nas mãos dos radicais islâmicos usados pela CIA a partir de 1979), no Paquistão (onde a CIA instalou acampamentos para os ataques aos russos no país vizinho e encorajou o sonho paquistanês da bomba nuclear islâmica) e no Irã (que se nega hoje a abandonar o enriquecimento de urânio) reflete o passado irresponsável da espionagem dos EUA.

No Irã o golpe da CIA instalou o xá no lugar do premier nacionalista Mohamed Mossadegh, anulou a nacionalização do petróleo e com faustosa coroação em 1967 impôs a ficção do “trono de 2.500 anos”. As corporações anglo-americanas ganharam mais um quarto de século para explorar o petróleo do Irã, já que a CIA ainda concebeu a tenebrosa Savak, serviço secreto celebrizado pelas câmaras de tortura.

Ainda naquela década de 1950 o Irã foi premiado pelo governo do presidente Eisenhower com relações muito especiais - que incluiram “acordo de cooperação nuclear para fins pacíficos”, deixando o país com alguma base para, em seguida à revolução dos aiatolás, assustar os EUA com a disposição de ampliar o programa nuclear e rumar para o enriquecimento de urânio.

Para o Irã submisso de Reza Pahlevi, nada era bom demais: além de favorecer o desenvolvimento nuclear, Washington ainda dotou o país de armas sofisticadas e modernizou a máquina da repressão - tudo pago com a receita do petróleo, que regalou nos EUA as indústrias bélica, aeronáutica, nuclear e de segurança. Só que hoje, tomado pelos rebeldes radicalizados nas câmaras de tortura, o Irã é outro.

De tal forma o Irã do xá era criatura da CIA que, no final de 1973, o presidente Nixon concluiu que ninguém melhor para ser embaixador em Teerã do que o próprio diretor da central de espionagem, Richard Helms - “dada a intimidade dele com o xá”, explicou. Como se fosse o posto final de uma carreira de sucesso na CIA, dirigida por Helms durante quase sete anos, antes dos três que passou no Irã.

Com a contribuição do deputado Charlie Wilson, anticomunista meio fanático, o capítulo Afeganistão-Paquistão foi ainda mais vivo, excitante e insólito - ou “colorful”, para usar adjetivo talvez mais apropriado à conduta do parlamentar excêntrico que quando não estava “salvando o mundo” da suposta “ameaça vermelha” dedicava-se ao consumo de álcool e drogas com prostitutas de luxo.

Ele ficou obviamente encantado com os relatos do livro e do filme que o tornaram celebridade. Seu papel pode ter sido singular pelo conhecimento de sutilezas do processo legislativo na Câmara, onde integrava a comissão de verbas (appropriations) e sua subcomissão sobre operações no exterior - além de cultivar contatos na comissão que supervisiona a espionagem.

Não só estava familiarizado com mecanismos e artifícios para ocultar a destinação de recursos. Também revelara-se mestre na troca de favores com colegas interessados em abocanhar verbas para projetos de seus distritos eleitorais. Certos especialistas acham que hoje teria mais dificuldades: o processo legislativo sofreu reformas depois, reduzindo - em nome da transparência - a prática do sigilo.

O fato é que Wilson começou por canalizar uma verba de US$ 5 milhões para os radicais do Afeganistão. E, no fim da década de 1980, aqueles recursos elevavam-se a nada menos de US$ 750 milhões por ano. Pode ter sido ajudado por pertencer ao partido da oposição (Democrata) numa década dominada por governos republicanos (Reagan e Bush I) obstinados em estender ainda mais as ações militares dos EUA pelo mundo.

No Afeganistão e Paquistão, sabe-se hoje, a lambança foi bipartidária - devido a uma armadilha do governo do presidente democrata Jimmy Carter. Seu assessor de segurança nacional na Casa Branca, Zbigniew Brzezinski, confessaria 20 anos depois ter atraído a URSS para a idéia de invadir o Afeganistão. A invasão veio a 24 de dezembro de 1979, após seis meses de ajuda crescente da CIA aos rebeldes radicais.

Em entrevista à revista francesa “Nouvel Observateur”, em 1998, Brzezinski vangloriou-se de seu papel: “Carter assinou a 3 de julho de 1979 a primeira diretiva (à CIA) para a ajuda secreta aos opositores do regime pro-soviético de Kabul. Naquele dia eu tinha enviado nota ao presidente na qual expliquei que, na minha opinião, tal ajuda americana iria levar a uma intervenção militar soviética”.

Quando o jornalista perguntou se a ação clandestina dos EUA tivera a intenção de provocar a invasão russa, Brzezinski amenizou: “Não provocamos os russos para que invadissem, mas ampliamos conscientemente a probabilidade de que isso viesse a ocorrer”. No dia em que os russos cruzaram a fronteira, disse, escreveu de novo a Carter: “Agora temos a oportunidade de dar aos soviéticos o Vietnã deles”.

Brzezinski contestou, assim, a tese republicana que atribui a Reagan a glória pelo fim da URSS. “Durante quase 10 anos a URSS amargou guerra insuportável - um conflito que trouxe a desmoralização e, afinal, a dissolução do império soviético”, alegou. Mas o exagero é comparável ao do mérito republicano. O desfecho, após meio século, deveu-se aos dois partidos e muita gente mais - inclusive os que erraram na própria URSS.

As avaliações atuais tentam ignorar os efeitos negativos das ações da espionagem. Ao financiar, treinar e armar (até com mísseis Stinger, capazes de destruir aviões em vôo) os radicais que batizou de “combatentes da liberdade” a CIA extremou as ambições deles. Hoje ela os repudia como “terroristas”, indiferente ao fato de que aprenderam na CIA a pensar o impensável - como atacar o coração do império americano.

Com os russos fora do Afeganistão os EUA deixaram o país para os radicais que a CIA diplomou em terrorismo. Com armas como o Stinger, os talibãs tomaram o poder e ficaram até 2001. Bin Laden, saudita de nascimento, ainda dirige de lá a rede al-Qaeda, que opera no mundo a partir do território afegão. E a CIA ainda tenta “recomprar” Stinger mas nem sabe quantos distribuiu - a estimativa vai de 500 a 2.000.

O deputado Wilson, ao invés de herói, foi cúmplice das trapalhadas. Livro e filme dizem que atuava com assistência da CIA. A culpa dos EUA e sua agência ia mais longe na relação promíscua com o general-ditador paquistanês Zia-ul-Haq, que em troca do apoio à operação na fronteira afegã obteve luz verde e deu carta branca ao construtor da bomba atômica islâmica, o cientista Abdul Qadeer Khan.

No desdobramento, a receita da bomba-A do Paquistão foi parar no Irã, Coréia do Norte, Líbia e talvez outros. Assim, além de fazer a “guerra (sem fronteiras) ao terrorismo” e lutar no Afeganistão contra os que antes chamava de “combatentes da liberdade”, os EUA hoje têm de vigiar o Dr. Khan, o serviço secreto (ISI) do Paquistão, os progressos nucleares do Irã e da Coréia do Norte e sabe-se-lá-mais-o-que.

A própria CIA adotou a expressão “blowback” para designar os efeitos opostos ao que pretendia em cada uma de suas operações clandestinas. A palavra apareceu pela primeira vez em relatório secreto de 1954 sobre o golpe da CIA no Irã. O “blowback” da derrubada de Mossadegh foi a tirania de 25 anos e a revolução (antiamericana) dos aiatolás. Já no Afeganistão os ataques do 11/9 nos EUA tendem a ficar como exemplo maior.

Blog de Argemiro Ferreira


Fotos: Deputado Charlie Wilson em 1987, entre os radicais islâmicos do Afeganistão.