quarta-feira, 24 de outubro de 2007



Direito ao silêncio

Frei Betto * Adital


Há demasiados ruídos à nossa volta. O coração sobressalta, os nervos afloram, a mente atordoa-se. É o televisor ligado quase o tempo todo, o fluxo incessante de imagens sugando-nos num carrossel de flashes. O rádio em monólogo inclemente, a música rítmica desprovida de melodia, o som alojado nos orifícios auditivos, o telefone trinando supostas urgências, o celular a invadir todos os espaços, suas musiquetas de chamada destoando em teatros, cinemas, templos, cerimônias e eventos, seus usuários nele dependurados pelas orelhas, publicitando em voz alta conversas privadas. De todos os lados sobem ruídos: da construção civil vizinha, do latido dos cães, dos carros na rua e das aeronaves que cortam o espaço, das motos estridentes, do anunciante desaforado em seu carro de som, do apito fabril disciplinando horários. Tantos ruídos causam tamanho prejuízo à saúde humana que o Exército usamericano criou, em sua sanha assassina, um arsenal de "projéteis sonoros", capazes de produzir som de 140 decibéis. Bastam 45 para impedir o sono. O rumor do tráfego na esquina de uma avenida central atinge 70 decibéis. Aos 85 produz-se uma lesão auditiva. Elevado para 120, o som provoca dor aguda nos ouvidos. Imagine-se, pois, o que significa essa tecnologia de tortura a 140 decibéis! Nosso silêncio não é quebrado apenas por ruídos auditivos. Agridem-nos também os visuais. Assim como o silêncio da zona rural ou de uma igreja nos impregna de paz, levei um choque ao visitar, anos atrás, Praga antes da queda do Muro de Berlim. Não havia outdoors. A cidade não se escondia atrás de anúncios. A poluição visual era zero, permitindo contemplar a beleza barroca da terra de Kafka. Nas cidades brasileiras, subjugadas pelo império do mercado, somos vorazmente engolidos pela proliferação de propagandas, exceto a capital paulista, agora em fase de despoluição visual por iniciativa da prefeitura. Sem silêncio, ficamos vulneráveis, expostos à voracidade do mercado, a subjetividade esgarçada, a epiderme eriçada em potencial violência. Contra esse estado de coisas, o professor Stuart Sim, da Universidade de Sunderland, na Inglaterra, acaba de lançar Manifesto pelo silêncio, contra a poluição do ruído. O autor enfatiza que a cacofonia de sons que nos envolve ameaça a saúde, provoca agressividade, hipertensão, estresse, problemas cardíacos. Todos os grandes bens infinitos da humanidade - arte, literatura, música, filosofia, tradições religiosas - exigiram, como matéria-prima, o silêncio. Sem ele perdemos a nossa capacidade de raciocinar, ouvir a voz interior, aprofundar a vida espiritual, amar além do jogo erótico meramente epidérmico. Quando um casal de noivos me procura, interessado em preparar-se para o matrimônio, costumo indagar se os dois são capazes de ficar juntos uma hora, em silêncio, sem que um se sinta incomodado. Caso contrário, duvido que estejam em condições de uma saudável vida a dois, pois o respeito ao silêncio do outro é um dos atributos da confiança amorosa. Assisti ao filme O grande silêncio, do diretor alemão P. Gröning, que nos convida a penetrar a vida de uma comunidade cartuxa nos Alpes franceses. Nenhuma palavra no decorrer de três horas de filme, exceto o canto gregoriano das liturgias monásticas e o bater do sino. Um convite à mais desafiadora viagem: ao mais profundo de si mesmo. Quem ousa, sabe que lá se desdobra um Outro que, por sua vez, espelha nossa verdadeira identidade. Viagem que tem como veículo privilegiado a meditação. Na fase inicial, é tão árduo quanto escalar montanha para quem não esta acostumado ao alpinismo. Porém, em certo momento, é como se u’a mão invisível nos elevasse, tornando a subida suave e agradável. Só então se descobre que, no imponderável do Mistério, não se sobe, se desce, mergulha-se em si mesmo para vir à tona, do outro lado de nosso ser, naquele Outro silenciosamente presente em nossas vidas e na tecitura do Universo. Aqui a palavra se cala e o silêncio se faz epifania. [Autor, em parceria com Leonardo Boff, de "Mística e Espiritualidade" (Garamond), entre outros livros].
* Frei dominicano. Escritor.

Equador avança contra os lucros das petroleiras

por jpereira

Medida anunciada pelo presidente Rafael Correa decreta que o Estado ficará com 99% dos lucros extras; hoje, recebe 50%

Medida anunciada pelo presidente Rafael Correa decreta que o Estado ficará com 99% dos lucros extras; hoje, recebe 50%


Claudia Jardim,

de Caracas (Venezuela)


Enquanto os principais países consumidores de petróleo e gás acirram a disputa para garantir o abastecimento de seu mercado, alguns governos da América Latina se impõem regras do jogo na contramão dos interesses das transnacionais e das grandes potências.


Dessa vez, foi o Equador. “Em nome da soberania nacional” – s eguindo os exemplos de Venezuela e Bolívia –, o presidente Rafael Correa determinou que o Estado deverá arrecadar 99% do lucro excedente obtido com a produção do petróleo. Antes, o percentual era dividido igualmente: 50% para o Estado; 50% para a empresa.


¡°O petróleo é de todos. Jamais voltaremos a perder nossa propriedade”, anunciou Correa, ao apresentar o decreto que estabelece um maior controle do Estado sobre os recursos petrolíferos. "O governo da Revolução Cidadã considera que é insuficiente que o Estado equatoriano receba 50% dos lucros extraordinários”, avaliou.


A proposta de assumir um maior controle dos recursos naturais faz parte de uma antiga reivindicação dos movimentos sociais equatorianos que foi capitalizada por Correa durante sua campanha eleitoral em 2006. O decreto atinge empresas como Petrobras (Brasil), Repsol-YPF (Espanha), Perenco (França), Andes Petroleum (China) e City Oriente (EUA).


Originalmente, os contratos estabeleciam um preço médio de 25 dólares por barril para um período de 20 anos, ficando o Estado excluído dos lucros extras pelo aumento da cotização do petróleo cru no mercado. Em 2006, os contratos foram modificados, dividindo em partes iguais os beneficios adicionais.


De acordo com o procurador da República do Equador, Xavier Garaicoa, as transnacionais não cumpriram com o pagamento de 50% dos lucros extras. Entre as empresas que atuam com irregularidades, está a estadunidense City Oriente. Apenas em 2006, a transnacional deixou de pagar ao Estado equatoriano cerca de 30 milhões de dólares, segundo informou Garaicoa ao canal de televisão Ecuavisa.


Com a nova medida, as transnacionais ficarão apenas com 1% dos excedentes. O governo equatoriano ainda não esclareceu qual será o preço estabelecido nos novos contratos. Até o fechamento desta edição o preço do petróleo OPEP estava estimado em 76 dólares por barril.


Nacionalismo petroleiro

A medida de Correa foi interpretada por alguns setores como um passo “radical” de parte do presidente equatoriano. A s companhias transnacionais que atuam no país foram convocadas a uma reunião para renegociar seus contratos e não compareceram. Alegaram que precisavam de mais tempo para consultar as matrizes.


Para o especialista em petróleo Carlos Mendonza, a medida equatoriana obedece a uma tendência mundial de parte dos Estados produtores de petróleo que não só tendem a assumir o controle dos recursos, como também a participar dos lucros, antes destinados exclusivamente às transnacionais. “Os países têm o direito de tirar vantagem de um recurso que lhes pertence e que, além disso, vai acabar. Trata-se de uma reivindicação nacionalista petroleiro”, avalia Mendoza.


O decreto firmado por Correa também tende a fortalecer a economia do país. Cerca de 35% dos dólares que entram no país vêm da venda do petróleo. C om a medida, cerca de 840 milhões de dólares anuais deverão ingressar diretamente para os cofres públicos.


O ministro equatoriano de Minas e Petróleo, Galo Chiriboga, explicou que os acordos devem mudar de figura jurídica. A partir de agora deixariam de ser um convênio de participação e assumiriam um caráter de prestação de serviços. Ou seja, o novo contrato proposto pelo governo equatoriano reforça que o Estado é o dono do petróleo. (Leia a cobertura completa na edição 242 do jornal Brasil de Fato)

O crime imperdoável

da dignidade


História de racismo na civilização ocidental


Eduardo Galeano


A democracia haitiana vem sendo duramente castigada. Recém-nascida nos dias de festa de 1991, foi assassinada por um golpe de Estado comandado pelo general Raoul Cedrás. Três anos mais tarde, ressuscitou. Após ter posto e deposto tantos ditadores militares, os Estados Unidos tiraram e recolocaram o presidente Jean-Bertrand Aristide, o primeiro governante eleito por voto popular em toda a história do país, que teve a insensata pretensão de querer um país menos injusto.

Para eliminar qualquer vestígio da participação estadunidense na ditadura sanguinária do general Cedrás, os marines retornaram ao seu país levando 160 mil páginas dos arquivos secretos. Aristide voltou acorrentado. Deram-lhe permissão para governar, mas lhe negaram o poder. Seu sucessor, René Préval, obteve quase 90% dos votos nas últimas eleições presidenciais, mas qualquer chefe de quarta categoria do Fundo Monetário Internacional ou do Banco Mundial tem mais poder no país do que o próprio presidente.

O veto pode mais que o voto. Veto às reformas: toda vez que Préval, ou algum dos seus ministros, pede empréstimos internacionais para dar pão aos famintos, palavras aos analfabetos ou terra aos lavradores, fica sem resposta. Ou, na melhor das hipóteses, obtém uma resposta em forma de ordem: "Recita a lição". No momento em que o governo haitiano se nega a entender que precisa se desfazer dos poucos serviços públicos que ainda restam – últimos míseros refúgios para um dos povos mais abandonados do mundo –, os professores o reprovam no exame.

"INCAPAZ DE SE GOVERNAR" – No ano passado, quatro deputados alemães visitaram o Haiti. Sentiram um profundo mal-estar, ficaram muito chocados ao ver tanta miséria. O embaixador da Alemanha em Porto Príncipe explicou a eles qual é o problema: "Tem gente demais neste país", disse. "A mulher haitiana sempre está a fim, e o homem haitiano sempre pode." E riu. Os deputados ficaram calados. Naquela mesma noite, um deles, Winfried Wolf, deu uma verificada nos números. E constatou que o Haiti, juntamente com El Salvador, é o país mais populoso das Américas..., tão populoso quanto a Alemanha: têm quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado.

Durante os dias em que esteve no Haiti, o deputado Wolf não se impressionou apenas com a miséria. Ficou também maravilhado com a beleza das pinturas populares. E chegou à conclusão de que o Haiti é superpovoado... de artistas.

Os Estados Unidos invadiram o país em 1915 e o governaram até 1934. Retiraram-se quando conseguiram realizar dois objetivos: resgatar as dívidas do City Bank e abolir o artigo constitucional que proibia a venda de plantações a estrangeiros. Na época, Robert Lansing, secretário de Estado, justificou a longa e feroz ocupação militar explicando que a raça negra é incapaz de governar a si mesma. Tem "uma tendência à vida selvagem e uma incapacidade física de civilizar-se".

"ESCRAVOS POR NATUREZA" – O Haiti tinha foi a pérola da Coroa francesa, a sua colônia mais rica: uma grande plantação de cana-de-açúcar, com mão-de-obra escrava. Na obra "O Espírito das leis", Montesquieu explicou, sem papas na língua: "O açúcar sairia muito caro, se na sua produção não trabalhassem os escravos. Escravos que são negros da cabeça aos pés e têm o nariz tão achatado que é quase impossível sentir pena deles. Resulta impensável que Deus, que é tão sábio, tenha posto uma alma, e sobretudo uma alma boa, em um corpo completamente negro".

Em troca, Deus havia colocado um chicote na mão do capataz. Os negros eram escravos e vadios por natureza, e a natureza, cúmplice da ordem social, era obra de Deus: o escravo devia servir ao patrão, e o patrão devia castigar o escravo, que não demonstrava o mínimo entusiasmo em cumprir o desígnio divino.

Karl Von Linneo, contemporâneo de Montesquieu, fez um retrato do negro com precisão científica: "Vagabundo, preguiçoso, negligente, indolente e de costumes devassos". Mais generosamente, outro contemporâneo, David Hume, comprovou que o negro "pode desenvolver certas habilidades humanas, como o papagaio que pronuncia algumas palavras".

LIBERDADE E SOLIDÃO – Em 1803, os negros do Haiti deram uma grande surra nas tropas de Napoleão Bonaparte, e a Europa jamais perdoou essa humilhação infligida à raça branca. O Haiti foi o primeiro país livre das Américas. Os Estados Unidos conquistaram a independência antes, mas meio milhão de escravos continuavam a trabalhar nas suas plantações de algodão e tabaco. Jefferson, que era proprietário de escravos, dizia que todos os homens são iguais, mas dizia também que os negros foram, são e serão inferiores.

A bandeira dos libertados foi hasteada sobre as ruínas. A terra haitiana fora devastada pela monocultura da cana-de-açúcar e pela guerra contra a França. Um terço da população tinha morrido em combate. Então teve início o bloqueio. A nação recém-nascida foi condenada à solidão.

Nem Simón Bolívar teve a coragem de assinar o reconhecimento diplomático. Graças ao apoio do Haiti, Bolívar pudera recomeçar a luta pela independência americana, depois que a Espanha já o tinha derrotado. O Haiti enviou sete navios, muitas armas e soldados, com a única condição de que Bolívar libertasse os escravos – uma idéia que não tinha passado pela cabeça do Libertador. Bolívar assumiu o compromisso, porém, após a vitória, quando já governava a Grã Colômbia, virou as costas para quem o tinha salvo. E, quando convocou as nações americanas ao Panamá, não convidou o Haiti.

Os Estados Unidos reconheceram o Haiti só sessenta anos depois, enquanto Etienne Serres, um gênio francês em anatomia, descobria que os negros são primitivos por causa da pouca distância que separa o seu umbigo do pênis. Na época, o Haiti já padecia nas mãos de sanguinárias ditaduras militares, que destinavam os famélicos recursos do país ao pagamento da dívida francesa: a Europa tinha obrigado o Haiti a pagar uma gigantesca indenização à França, como forma de pedir perdão pelo delito da dignidade.

A história da prepotência contra o Haiti, que nos dias de hoje assume dimensões de tragédia, é também uma história do racismo na civilização ocidental.
Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, é autor de várias obras sobre a América Latina. As veias abertas da América Latina é a mais conhecida e divulgada.
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