quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O dilema da esquerda brasileira

Editorial do Correio da Cidadania




Todo fato político de primeira grandeza é sempre o desfecho natural de um longo processo. Nessa condição, constitui um resultado pré-determinado, independentemente de circunstâncias fortuitas ou da ação política dos atores que nele intervém.

Sem dúvida, é sempre possível que surjam acidentes capazes de impedir ou mudar momentaneamente o desfecho natural de um processo em curso.

O episódio da morte de Vargas, em 1954, poderia ser visto como negação da tese aqui exposta, pois, como se sabe, a notícia do suicídio do presidente fez os tanques de guerra, já nas ruas para depô-lo, retornarem rapidamente aos quartéis, temerosos da reação popular, e que a UDN, líder da conspiração golpista, visse a vitória esvair-se entre seus dedos no curso daquele mesmo 24 de agosto de 1954.

Mas se a análise desse episódio for além do meramente factual e entrar no exame do processo que o mesmo integra verá que o gesto de Vargas apenas atrasou o resultado que se obteria com sua deposição. Em outras palavras: em 24 de agosto de 1954, o desfecho do processo adiado com o suicídio de Vargas já estava traçado inexoravelmente. Com Juscelino Kubitschek, eleito alguns meses depois, o processo de industrialização prosseguiu sob o comando do capital estrangeiro e não, como queria Vargas, sob o comando do Estado brasileiro.

Por que a esquerda não pôde evitar esse desfecho, apesar de o gesto de Vargas tê-la colocado momentaneamente na ofensiva? Porque, desde a reabertura democrática de 1945, não foi capaz de fazer uma leitura correta da conjuntura, não estudou suficientemente a dialética da industrialização brasileira, não formou militantes e dirigentes em número suficiente - enfim, não se preparou com a indispensável antecedência para um confronto que a própria teoria dizia ser inevitável.

O mesmo se diga do fato-golpe de 1964 e de outros dois grandes processos que se lhe seguiram: o retorno dos civis à presidência da República (1974-1985) e a liberalização da economia brasileira (1985-2002).

O primeiro processo terminou com a substituição de uma facção da burguesia por outra facção da mesma burguesia no exercício do poder do Estado. Nada do que a esquerda pudesse ter feito após o "acórdão" entre as duas facções em disputa no interior da burguesia (centro e direita) teria o efeito de alterar o resultado.

Aliás, a tentativa petista de manter a massa na rua e radicalizar a campanha das "Diretas-Já" terminou com o fracassado comício na praça do Pacaembu, em São Paulo, que não reuniu mais do que umas cinco mil pessoas. O acidente da morte de Tancredo não teria igualmente alterado o resultado, mesmo que o empossado tivesse sido, como se cogitou na época, o Ulysses Guimarães, pois, com ele ou com Sarney, o conteúdo político da Aliança Democrática estava selado.

Se Lula tivesse vencido a eleição para a presidência, em 1989 (o que não aconteceu por uma diferença de menos de 2%), o processo de liberalização da economia (1985-2002) poderia ter sido interrompido por algum tempo (embora não se possa ter nenhuma certeza disso), mas não a impediria, porque Lula e o PT não tinham recursos de poder suficientes para evitar o desfecho de um processo impulsionado por uma força muito superior à deles: o imperialismo e a burguesia brasileira unidos no propósito de alterar a posição da economia brasileira no sistema capitalista.

A melhor prova disso é a vitória de Lula em 2002, cujo resultado consistiu unicamente em pôr em prática a mesma política de seu antecessor. Se quisesse mudar, Lula seria deposto, e isto apenas atrasaria um resultado que, em 1989, já estava determinado.

Esta análise é crucial para definir os objetivos dos partidos de esquerda em 2010. Nem que, contra toda e qualquer expectativa, der a maior "zebra" na eleição presidencial, a vitória de um candidato da esquerda não terá o condão de alterar o processo de reversão neocolonial posto em marcha com o neoliberalismo e concretizado com a vitória de Collor em 1989. A maioria de votos e o apoio da massa popular que o governo de esquerda teria – como tinha Allende e não foi suficiente para manter-se no poder, nos anos setenta – não seriam força suficiente para alterar o curso de um processo comandado pelos setores que detêm hegemonicamente todo o instrumental requerido para o exercício do poder (a burguesia brasileira e o imperialismo). Nesse sentido, a vitória de Lula em 1989, com um programa anti-capitalista, interromperia por um tempo (e poderia até mesmo dar origem a um outro processo que provavelmente até nem seria revolucionário, como se viu na "Concertación" chilena), mas não alteraria uma trajetória nacional inexorável.

Portanto, o objetivo de qualquer candidatura de esquerda à presidência da República, em 2010, só terá sentido se objetivar o reinício, expurgado de seus defeitos, de um processo que vem se desenvolvendo muito lenta e sincopadamente, desde os anos trinta: o processo de amadurecimento da luta de classes no Brasil – processo este que se encontra, neste momento, provavelmente no seu nível mais baixo.

O erro a ser expurgado consiste em acreditar ser possível reformar o capitalismo brasileiro e dar-lhe uma cara mais humana – erro este que acompanha a esquerda desde os anos quarenta e que a tem impedido de expressar realmente (e não ilusoriamente) a luta concreta (embora difusa, dispersa, confusa e contraditória) que o proletariado brasileiro vem travando contra a dominação burguesa.

Não é fácil mostrar essa realidade a uma massa popular alienada, pouco instruída, presa nas malhas da "cultura do favor"; menos ainda, formular uma estratégia de longo prazo da qual derive diretamente uma tática coerente (coisa que não aconteceu até hoje) de execução.

No quadro básico da dependência externa do país, inalterado desde sua independência política, a nova divisão do trabalho criou uma situação inteiramente inédita para o Brasil – inédita e paradoxal.

Por um lado, a substituição do modelo industrial por um modelo primário-exportador aprofunda a dependência e provoca, além de permanente instabilidade econômica, um forte movimento de regressão neocolonial, que se expressa, maiormente, no plano da cultura das elites e do povo; por outro lado, a evidente viabilidade do modelo primário-exportador (tanto pelo lado da demanda externa como das potencialidades de oferta da economia nacional) traduz-se na possibilidade de um ritmo de crescimento econômico, insuficiente para assegurar a justiça social, porém suficiente para incorporar crescentemente alguns setores da massa num nível de consumo baixo, mas superior ao que estavam acostumados. O resultado óbvio desse processo é a legitimação do modelo e do regime.

A instabilidade econômica constitui, sem dúvida, uma característica inerente ao modelo posto em prática, mas não afetará sua legitimidade, enquanto não houver uma força de esquerda coerente e suficientemente forte para capitalizar politicamente os momentos de oscilação.

Todo paradoxo consiste, em essência, numa perplexidade diante do choque gerado pela presença de duas verdades incompatíveis entre si: é verdade que o país caminha para um desastre social e ecológico de proporções monumentais; mas é igualmente verdade que, após ter conseguido gerar sua dívida externa, depois de 25 anos de marginalização do sistema financeiro, está de volta a uma prosperidade, que, embora medíocre e inferior à de outros países emergentes, permite o simulacro de um processo de incorporação da população na economia de massas, e, conseqüentemente, lhe confere um certo grau de legitimação.

Rendendo-se à evidência deste paradoxo – e procurando conhecer a fundo a realidade dos dois processos contraditórios e simultâneos –, possivelmente a esquerda encontrará formas de atuar no interior de ambos e, desse modo, articular suas ações com uma estratégia revolucionária.

O problema que precisa ser imediatamente resolvido para dar início a este processo de renascimento consiste em montar uma campanha capaz de fazer um discurso inteligível, senão para toda a massa (o que é impossível), pelo menos para uma pequena parte dela, a fim de galgar um patamar de diálogo social que lhe permita estruturar-se, no curso das próximas décadas, como uma força política real.

Para não esquecer as lutas passadas...


11 de setembro de 1973
Chile: Os mil dias da Unidade Popular (1970-1973)

Augusto Buonicore

A vitória de Allende

Em janeiro de 1970 a Unidade Popular ainda não tinha decidido quem seria o seu candidato à presidência da República. Existia certa resistência ao nome do socialista Salvador Allende que havia sido derrotado por três vezes consecutivas. Enquanto se desenvolviam as negociações, o Partido Comunista lançou o seu próprio candidato: o poeta Pablo Neruda. No entanto, a situação exigia a unidade das forças de esquerda e, finalmente, chegou-se a um acordo em torno do nome do candidato socialista.

A Unidade Popular (UP) foi composta pelos partidos socialista, comunista, radical, social-democrata, Movimento de Ação Popular Unitário (Mapu) e Ação Popular. As duas principais forças eram a socialista e a comunista. O Partido Socialista podia ser considerado a extrema-esquerda da Internacional Socialista. Muitos de seus dirigentes se diziam marxista-leninistas e defendiam Cuba socialista. O Partido Comunista do Chile, por sua vez, era o maior partido da esquerda e, nas últimas eleições, tinha conseguido aproximadamente 17% dos votos e eleito 21 deputados e 5 senadores.

A campanha da UP ganhou o país e mobilizou centenas de milhares de trabalhadores. Todos pressentiam que chegara a hora da esquerda chilena. Mais de 400 mil pessoas se reuniram no último comício realizado na capital. Em 4 de setembro de 1970 Allende venceu por uma margem bastante apertada. Ele obteve 36,6% dos votos, Jorge Alessandri do Partido Nacional (direita) 34,8% e Radomiro Tomic da Democracia Cristã 27%. Uma multidão tomou as ruas de Santiago.

Contudo, a guerra ainda não havia sido ganha. Como nenhum dos candidatos obteve maioria absoluta dos votos cabia ao Congresso Nacional, no qual a UP era minoria, confirmar o candidato vencedor. Começou, assim, uma intensa pressão da burguesia sobre os parlamentares democrata-cristãos para que não aceitassem o resultado das urnas.

A CIA trama contra a posse de Allende

Num discurso pronunciado em 14 de setembro de 1970, o secretário de Estado estadunidense Henry Kissinger afirmou: "É muito fácil prever que a vitória de Allende possibilitará o estabelecimento de um governo comunista. Nesse caso, não se trata de um governo desse tipo numa ilha sem tradição e nem impacto na América Latina (...). A evolução da política chilena é muito séria para os interesses da segurança nacional dos Estados Unidos".

Em 21 de setembro a CIA enviou um telegrama aos seus agentes em Santiago: "O propósito da operação é evitar que Allende assuma o poder. O suborno do Parlamento foi descartado. O objetivo é a solução militar". Um relatório da embaixada norte-americana enviado à Kissinger afirmava: "o general Schneider tem que ser neutralizado, tirado da frente se por preciso". O comandante-em-chefe do Exército, general René Schneider, era um legalista e se opunha aos projetos golpistas da direita militar. Por isto, segundo a CIA, ele precisava ser eliminado.

No começo de outubro outra mensagem chegou à capital chilena: "Criar um clima de golpe mediante propaganda, desinformação e atividades terroristas destinadas a provocar a esquerda para ter um pretexto para um golpe". Alguns dias depois um agente da CIA em Santiago informou sua sede em Washington que o "general Viaux propôs seqüestrar os generais Schneider e Prats dentro das próximas 48 horas". A resposta foi: "Informar a esses oficiais golpistas que o governo dos EUA lhes dará apoio total no golpe." Os americanos não só sabiam do plano terrorista de matar o comandante do Exército chileno como o apoiavam. O próprio adido militar dos Estados Unidos entregou três metralhadoras aos oficiais golpistas, liderados por Viaux e Valenzuela, que assassinariam o general Schneider no dia 25 de outubro.

O fato ocorreu poucas horas antes da votação no Congresso que deveria homologar o nome de Allende. A CIA exultou: "24 horas da reunião do Parlamento, um clima de golpe existe no Chile (...) o atentado contra o general Schneider produziu conseqüências muito próximas das previstas no plano de Valenzuela (...). Em conseqüência, a posição dos conspiradores foi reforçada". Ledo engano.

O país ficou consternado e o resultado acabou sendo desfavorável às forças de direita. A ala democrática da Democracia Cristã venceu e, em 24 de outubro, o congresso acabou reconhecendo a vitória de Allende. Em troca exigiu a aprovação do Estatuto de Garantias Constitucionais pelo qual o novo governo socialista ficava proibido de mexer nos meios de comunicação privados, na educação e nas Forças Armadas. Um acordo que o novo governo cumpriu religiosamente nos seus mil dias conturbados.

O primeiro ministério refletiu a nova correlação de forças existente no Chile. Dele participavam cinco ministros socialistas, três comunistas, três radicais, um do MAPU, um da AP e um da esquerda independente. A esquerda havia conquistado o governo e não o poder. Os poderes legislativo e judiciário continuavam firmes nas mãos de representantes da burguesia. A subestimação deste dado da realidade criou perigosas ilusões no seio das forças socialistas chilenas.

As medidas econômicas e sociais do governo Allende

Uma das principais bandeiras da UP foi a nacionalização das minas de cobre. O cobre representava cerca de 80% das exportações chilenas e estava nas mãos de três grandes monopólios estrangeiros: a Anaconda, a Kennecott Cooper e a Serro.

A lei de nacionalização foi aprovada em 11 de julho de 1971 com o voto unânime do congresso nacional - nem a direita entreguista teve coragem de votar contra um anseio tão profundo da nação chilena. O governo também nacionalizou as indústrias do ferro e do salitre. Interveio na Companhia de Telefones do Chile, que era filial da poderosa ITT norte-americana e estatizou o sistema bancário, nele se incluía o City Bank. As nacionalizações feriram profundamente os interesses privados das companhias estadunidenses.

Após a estatização dos bancos o governo orientou o crédito para os pequenos e médios produtores e para projetos de desenvolvimento industrial e social. Houve uma significativa redução dos juros. Reativou-se o setor de construção civil, adotando uma ousada política de construção de casas populares.

Foram estabelecidas relações diplomáticas e comerciais com Cuba, China, Vietnã e Coréia do Norte. Realizou-se uma reforma agrária abrangente que resultou na quase extinção do latifúndio improdutivo. Neste período expropriaram-se cinco milhões de hectares em benefício de mais de 40 mil famílias.

As medidas econômicas e sociais adotadas levaram a que no primeiro ano de governo a produção industrial aumentasse em 12% e o PIB crescesse 8,3%, índice inédito até então. Reduziu o nível de desemprego e ocorreu um processo rápido de recuperação salarial. A participação dos assalariados na renda nacional subiu de 53% para 61%. A CUT foi legalizada e passou de 700 mil para 1 milhão de filiados.

Todas as crianças chilenas passaram a ter o direito a meio litro de leite por dia. O governo Allende ampliou drasticamente os serviços médicos e escolares. Estas medidas levaram a uma redução significativa da mortalidade infantil e dos níveis de analfabetismo. A previdência foi estendida para 330 mil pequenos comerciantes e feirantes e 130 mil pequenos industriais, artesãos, desportistas profissionais etc.

Em abril de 1971, a UP teve mais uma estrondosa vitória nas eleições municipais. Ela conseguiu 50,2% dos votos enquanto a DC atingiu 27% e o PN apenas 20%. A votação refletiu a rápida mudança de espírito das massas populares - um deslocamento para esquerda - e reforçou a tese sobre a possibilidade de um "via chilena para o socialismo". Esta se daria pela articulação do avanço institucional da esquerda, através das eleições, e a mobilização e organização das massas populares.

A ofensiva conservadora contra o governo popular

Desde a posse de Allende o imperialismo norte-americano, em conluio com setores da grande burguesia, implementou um plano metódico de destruição da economia chilena. De repente, os créditos externos desapareceram, houve uma corrida aos bancos e os capitais foram enviados ilegalmente para o exterior.

No mês de outubro de 1972 eclodiu a greve dos caminhoneiros que foi seguida por uma greve no comércio, nos transportes urbanos, nos hospitais particulares etc. Era uma greve insurrecional da burguesia. Neste período mais de trezentas mil cabeças de gado foram contrabandeadas e dez milhões de litros de leite atirados nos rios para que não chegassem nas mesas das crianças pobres. A terra não foi semeada e a produção de alimentos caiu catastroficamente.

Em pouco tempo começou a faltar alimentos nas grandes cidades. Proliferou o mercado negro e incentivou-se o processo inflacionário. O governo só não caiu graças a mobilização e a auto-organização popular. Diante da tentativa da burguesia em parar a nação, os trabalhadores ocuparam as fábricas fechadas e as mantiveram produzindo num ritmo superior a média anterior. Os camponeses ocuparam as fazendas paralisadas. Nas cidades, as comunas organizaram o abastecimento e montaram brigadas para ir ao campo ajudar na colheita e no transporte. Realizaram-se tentativas heróicas de furar o cerco imposto pela greve dos caminhoneiros. Diante da ameaça de golpe formaram-se os "cordões industriais", como instrumento de autodefesa proletária. O povo chileno tomou em suas mãos desarmadas a defesa da revolução.

O resultado desta ofensiva golpista foi a redução do nível de crescimento e o PIB caiu para 5% em 1972. Mesmo assim, esse índice não foi tão catastrófico como poderia ter sido sem a mobilização dos trabalhadores para vencer a sabotagem do imperialismo e dos monopólios. A situação econômica se tornou mais grave em 1973.

A Democracia Cristã: entre a cruz e a espada

A eleição de Allende só foi possível graças aos votos dos deputados da DC - liderados por Tomic. Durante mais de seis meses existiu um relativo entendimento entre congresso e o executivo. No entanto, vários acontecimentos minaram esta relação e colocaram a maioria da DC no colo do Partido Nacional.

Em 8 de junho de 1971 um agrupamento de extrema-esquerda assassinou o ex-ministro democrata-cristão Edmundo Zukovic. Existia uma forte suspeita que por trás das mãos dos terroristas estava a CIA. A ala direita da DC aproveitou-se da oportunidade para neutralizar a ala democrática do partido e exigiu o rompimento de todos os acordos com o governo.

Ainda em julho ocorreu, em Valparaíso, uma eleição complementar para a vaga de um deputado da DC que tinha falecido. Ali a UP havia conseguido 49% dos votos em março. Allende, então, propôs que ela apoiasse o candidato da DC e colocasse como condição que ele não fosse contra o governo. A UP recusou e lançou candidato próprio. O Partido Nacional retirou sua candidatura e apoiou, pela primeira vez, o candidato democrata-cristão - a condição agora é que ele fosse da oposição. A campanha foi dura e houve troca de acusações. O resultado da disputa foi a derrota da UP e o fortalecimento da ala direita da DC. No mesmo mês a ala esquerda daquele partido se desligou e formou o Movimento de Esquerda Cristã, que solicitou ingresso na UP.

A CIA compreendeu a importância desta eleição e destinou 150 mil dólares para o candidato oposicionista. Rompeu-se assim o equilíbrio partidário que permitiu a vitória de Allende em 1970 e foi se constituindo uma ampla frente de oposição que adquiriu um caráter golpista. O governo começou a ficar isolado no parlamento. Dias mais difíceis viriam.

No dia 10 de novembro de 1971 Fidel Castro chegou ao Chile para uma visita. Ele ficou no país por três semanas. Antes que partisse, milhares de mulheres da burguesia e das classes médias realizaram uma grande manifestação denominada "Marcha da Panela Vazia". A manifestação "pacífica" era acompanhada por grupos paramilitares de direita que tentavam provocar os carabineiros e criar distúrbios nas ruas.

O resultado das provocações direitistas foi um grave confronto que deixou vários feridos. Pela primeira vez na história chilena a polícia desbaratava, com firmeza, uma manifestação provocadora da burguesia. Indignado o presidente da Federação dos Estudantes da Universidade Católica afirmou: "acusamos o governo de transformar o corpo de carabineiro em um aliado impudico das forças marxistas". Formou-se uma cadeia nacional contra o governo Allende. Todo este movimento de "guerra psicológica" era patrocinado pelo governo norte-americano. Foi decretado o Estado de Emergência na capital para conter novas manifestações da direita.

Consolidou-se, assim, o rompimento da DC com a UP e sua aproximação definitiva com o Partido Nacional. O Congresso passou a exigir a demissão do ministro do interior, José Toha. A Câmara de Deputados votou a destituição do ministro. A decisão inconstitucional foi confirmada pelo Senado. Os três comandantes em chefe das Forças Armadas reconheceram o direito de Allende de nomear e demitir ministros. A Corte Suprema também confirmou a prerrogativa constitucional do presidente da República. No final de 1971, a legalidade ainda jogava do lado da UP.

Esta foi uma clara manobra da direita parlamentar no sentido de alterar o regime político, passando poderes do presidente progressista para um congresso conservador. Tentativa que, naquele momento, não obteve o resultado esperado. Estabeleceu-se, assim, uma clara ruptura entre os poderes da República. O parlamento se constituiu num obstáculo permanente para a ação do governo legítimo. O congresso não aprovava mais nenhum projeto do executivo e, ao mesmo tempo, não tinha quorum suficiente para destituí-lo. Abriu-se uma crise institucional de grande proporção.

As Classes Médias e o Governo Allende.

Apesar disto, um setor importante das classes médias veio a engrossar o movimento oposicionista ao governo Allende. Por trás desta posição estavam certas predisposições ideológicas provenientes de sua posição social particular no modo de produção capitalista. Um das principais características da ideologia da classe média é o medo da proletarização.

No caso dos países capitalistas dependentes existia um agravante, como afirmou Altamirano: "as classes médias dos países de capitalismo dependente (...) gozam de um quadro de privilégios relativos. Seu padrão de vida é significativamente superior ao das grandes massas empobrecidas da cidade e do campo. Aqui existe um desnível de vida consideravelmente maior que nos países capitalistas avançados, entre as massas populares, de um lado, e grande parte dos intelectuais, dos empregados e da pequena burguesia ligada ao comércio, aos transportes, de outro. Essa particularidade dificulta uma aliança objetiva com o proletariado; como o processo revolucionário deve forçosamente impor uma distribuição de renda eqüitativa para as grandes massas, a deterioração relativa dos setores médios é quase inevitável".

Para entender a essência do discurso da direita para as classes médias, utilizando de seus preconceitos arraigados, o autor utilizou uma imagem bastante interessante: "Foi como se a burguesia lhes tivesse sussurrado ao ouvido: 'Cuidado! Nós somos os primeiros, mas depois virão vocês (...). Hoje expropriam as grandes empresas, mas terminarão por estatizar até os pequenos negócios (...). Foi sempre assim em todos os países socialistas (...). De modo que a gente precisa se defender juntos'". E assim foi feito. Quando do golpe militar a propaganda terrorista anticomunista já tinha realizado o seu trabalho e uma parte da classe média estava plenamente convencida que "comunista bom é comunista morto!" e quem ainda apoiava Allende só podia ser comunista.

Terrorismo e Golpe de Estado

O clima de guerra civil e as dificuldades econômicas, impostos pela grande burguesia e o imperialismo, não haviam conseguido diminuir o prestígio do governo diante das classes populares. Nas eleições parlamentares de março de 1973, a UP conquistou 44% dos votos e se consolidou como principal organização política do Chile. O aumento do número de parlamentares progressistas inviabilizou a idéia do golpe branco, parlamentar, visando destituir Allende. Agora só havia um caminho para a oposição rebelada: o golpe militar.

Apesar da relativa redução dos votos, em relação às eleições municipais de 1971, o que podia ser constatado era um aumento constante do número absoluto de eleitores da UP: um milhão em 1970, um milhão e quatrocentos mil em 1971 e um milhão e seiscentos mil em 1973. A maioria dos trabalhadores assalariados ainda estava com Allende.

Acompanhando o crescimento da UP ocorreu o crescimento da violência promovida pela extrema-direita. Em fevereiro de 1972 o alto comando militar já havia desbaratado um plano para assassinar Allende. Foram presos vários oficiais e civis ligados ao grupo fascista "Pátria e Liberdade". Por trás do complô estavam alguns generais. Neste mesmo período, dezenas de militantes de esquerda foram assassinados. Em 26 de julho de 1973 o próprio comandante Arturo Araya, adido naval do presidente, foi morto num atentado. Nos últimos meses do governo Allende a direita cometeu, em média, 21 atos terroristas por dia.

Sob a alegação de combater a violência crescente, o Congresso aprovou a Lei de Controle de Armas. O controle voltou-se, exclusivamente, contra o movimento popular. As Forças Armadas realizaram centenas de incursões nos bairros operários, nas fábricas, nas universidades em busca de armas. Os grupos para-militares de direita não foram molestados. Era uma medição de forças para o combate que se aproximava.

Os acontecimentos se sucederam num ritmo que atropelou a própria esquerda. Em maio de 1973, setores militares ujá haviam decidido dar o golpe de Estado. Para ajudar no clima de desestabilização, os empresários patrocinaram uma greve no transporte urbano. Em resposta, em 21 de junho, a Central Única dos Trabalhadores chilena realizou uma greve geral contra o golpismo e em apoio ao governo. Um milhão de trabalhadores desfilou pelas ruas de Santiago.

Poucos dias depois, no dia 29, ocorreu uma primeira tentativa golpista. Um regimento de blindados tentou atacar o Palácio presidencial. O próprio general Prats, numa ação corajosa, se dirigiu pessoalmente para as tropas insurretas e deu ordem de prisão aos seus comandantes. Ele pagaria caro pelo seu ato.

Prats era então o comandante-em-chefe do Exército e havia sido indicado para o Ministério do Interior após a greve patronal de outubro de 1972. Era um legalista fervoroso e um obstáculo aos intentos golpistas. Isto levantou contra ele o ódio dos setores direitistas da sociedade e das Forças Armadas. Em 21 de agosto centenas de mulheres realizaram um ato na frente de sua residência exigindo sua renúncia e dirigindo insultos contra sua honra. Eram as esposas e filhas da alta oficialidade. Os generais, como era o esperado, não se solidarizaram com seu comandante. Prats foi obrigado a renunciar e com ele saíram vários generais legalistas. Estavam abertas as portas para o golpe militar.

Aproveitando o clima existente, a Democracia Cristã fez aprovar na Câmara dos Deputados uma resolução declarando a "ilegitimidade" do governo. Novamente os trabalhadores tiveram que responder as manobras de direita e realizaram uma gigantesca manifestação na qual cerca de 800 mil pessoas saíram às ruas gritando: "Allende, Allende, o povo te defende!". Sem o saber, esta seria a última homenagem que o povo chileno prestaria ao seu valoroso presidente. Era 3 de setembro.

O Golpe de 11 de Setembro

Nas primeiras horas da madrugada do dia 11 de setembro a marinha se sublevou em Valparaíso, depois de participar de uma manobra conjunta com a marinha norte-americana. As primeiras notícias eram confusas. Pouco a pouco foi ficando claro que se tratava de um golpe militar dirigido pela cúpula das Forças Armadas. A frente de todas as operações golpistas estava o novo comandante-em-chefe do Exército, um dos homens de confiança de Prats e do próprio presidente. Ele se chamava Augusto Pinochet.

Ao receber as notícias das operações militares, Allende se dirigiu ao Palácio da Moneda. Com este pequeno grupo de homens e mulheres o presidente enfrentou por horas os ataques de tropas de infantaria, blindados e os temidos bombardeiros Hawker Hunter. Às 9 horas da manhã ainda pensou em distribuir armas para os trabalhadores. Convocou o comandante-em-chefe dos Carabineiros, general Sepulveda, e perguntou-lhe:

─ General, só resta distribuir armas ao povo. O senhor pode fazê-lo?
─ Distribuir armas, eu? Como quer que eu distribua armas?

Naquele momento as últimas tropas leais dos carabineiros se retiravam. O comando já não estava mais nas mãos do estupefato general.

Depois de mais de dois anos de governo não havia sido construída nenhuma estratégia para responder a um possível golpe militar, apesar das inúmeras ameaças e do crescimento da violência fascista. Confiou-se integralmente nos dispositivos militares legalistas de Allende. Quando este falhou, o governo e o povo ficaram sem uma alternativa viável. Os poucos agrupamentos armados de estudantes e de operários foram prontamente massacrados numa luta desigual. Milhares morreram esperando os regimentos leais ao governo. Uma página heróica e trágica da história dos trabalhadores latino-americanos.

Uma proposta de constituição de uma comissão militar integrada por oficiais leais e dirigentes ligados a Unidade Popular foi rejeitada. Apenas no final de agosto de 1973 começou a ser aventada a possibilidade de aplicação da lei de Defesa Civil que permitiria articular os carabineiros, ainda leais ao governo, e as organizações populares e sindicais. Esta era uma lei de 1945 e visava defender o país quando ele estivesse em perigo iminente. O plano não conseguiu sair do papel diante da oposição.

Na verdade, como afirmou Altamirano, "faltou à Unidade Popular a capacidade de prever a alterar as formas de luta quando isto se tornou necessário". Agarrou-se às instituições do Estado burguês quando a burguesia já as havia abandonado e caminhava abertamente no sentido da insurreição armada. Continuou: "Mas não era viável nem possível a manutenção de uma linha política institucional até iniciar a 'construção do socialismo', sem provocar rupturas. Por exclusiva vontade das classes dominantes, a confrontação devia produzir-se nalgum momento desse itinerário. E, por isto, o processo devia obrigatoriamente, contar com uma estrutura defensiva militar." Recuar, fazendo novas concessões à Democracia Cristã, ou avançar, rompendo a legalidade burguesa. Uma decisão nem sempre fácil de ser tomada.

Este, talvez, tenha sido o grande dilema e uma das limitações da experiência de "via chilena para o socialismo". Mas, os possíveis erros não devem encobrir o heroísmo da esquerda chilena e de seu valente presidente. As últimas palavras de Allende ainda repercutem na alma do seu povo: "Diante desses fatos, só me cabe dizer aos trabalhadores: não vou renunciar (...) pagarei com minha vida a lealdade do povo (...). Outros chilenos superarão esse momento amargo em que a traição pretende se impor; continuem sabendo que muito mais cedo que tarde novamente se abrirão as grandes avenidas por onde passará o homem livre, para construir uma sociedade melhor. Viva o Chile! Viva o povo! Vivam os trabalhadores!". Em poucos minutos cairia morto o companheiro presidente e o povo nas barricadas e nas ruas responderia: "Allende, presente! Agora e sempre!".

Bibliografia:

ALTAMIRANO, Carlos. Dialética de uma derrota. São Paulko: Brasiliense, 1979

ALEGRIA, Fernando. Allende, a paz pelo socialismo, São Paulo: Brasiliense, 1983

DEBRAY, Régis. Conversación com Allende. México: Siglo Veintiuno, 1973

GARCÉS, Joan. Allende e as armas da política. São Paulo: Scritta, 1993

HARNECKER, Marta. Tornar possível o impossível. São Paulo: Paz e Terra, 2000

JARA, Joan. Canção inacabada: a vida de Victor Jara. Rio de Janeiro: Record, 2002

MARÍN, Gladys. "Salvador Allende en el centro da la conciencia de los pueblos" in La Insignia, Chile: janeiro de 2003

MORAES, João Quartim de. Liberalismo e Ditadura no Cone Sul. IFCH-Unicamp, 2003

Augusto César Buonicore é historiador e membro do Comitê Central do PCdoB

Do sitio do PSOL