Nikelen Witter
Especial para o Sul21
O título dramático pode parecer exagerado. Afinal, Bram Stoker jamais
foi conhecido como um autor genial. Nem em sua época, nem passados 100
anos de sua morte. Sua criação, porém, assentou seu pé na imortalidade. Drácula,
a obra-prima de Stoker, ganhou vida própria (com o perdão da ironia) e
superou em muito seu criador. Se levarmos em conta, especialmente, a
primeira metade do século XX, perceberemos, inclusive, que o autor
praticamente sumiu das referências feitas a seu personagem mais famoso.
Resgatado no título de uma adaptação de sua obra num filme dos anos 90,
assinado pelo oscarizado Francis Ford Coppola, Stoker assumiu
notoriedade como um dos principais autores no estilo do romance gótico
vitoriano.
Drácula é um excelente livro. Bem construído,
elaborado com esmero ao longo de sete anos de pesquisas e trabalho. Foi
considerado “a sensação da temporada” em 1897. Ainda assim, é da
personagem, mais que a obra, de quem todos se lembram. É Drácula, o
conde — seja ele assimilado ao empalador romeno, ou aos rostos (e vozes)
carismáticos de Bela Lugosi e Christopher Lee — que assume a frente de
tudo quando nos referimos à Stoker, a tal ponto de muitos tentarem,
ainda hoje, ler na obra a vida do escritor. Isso porque, ao contrário de
outros autores góticos, o irlandês teve uma vida ordinária, sem grandes
feitos ou conexões, tendo escrito 12 romances e alguns volumes de
contos. Era crítico teatral e pessoa de gostos convencionais. Foi
batizado por seus pais e alimentava-se normalmente.
Bram Stoker
Nascido em 8 de novembro de 1847, em Clontarf, subúrbio ao norte de
Dublin, Stoker foi o terceiro de sete filhos do casal Abraham Stoker —
um funcionário público de pouca expressão — e Charlotte Mathilda Blake
Thornley, uma escritora com tendências feministas. A infância foi
marcada pela doença, estando ele, muitas vezes, à beira da morte e
praticamente sem poder ficar em pé até quase os sete anos. Recuperado, o
jovem Bram cursou uma escola privada e, mais tarde, graduou-se com
honras no conceituado Trinity College, onde, inclusive, foi atleta em
nível de competição universitária. Interessado em teatro, Stoker
trabalhou para formar-se como crítico desta atividade e foi por meio
dela que conheceu a pessoa que os biógrafos apontam como a mais
importante de sua vida: o ator inglês Henry Irving.
Recém-casado com Florence Balcombe — disputada beldade local que fora
cortejada inclusive por Oscar Wilde — Stoker aceitou o convite de
Irving e mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar no teatro que
pertencia ao ator, o Lyceum Theatre. Ocupou diversos cargos, como
diretor do teatro e agente de Irving, permanecendo nestas funções por 27
anos. Paralelamente, mantinha viva uma já iniciada carreira como poeta,
contista e romancista. Em fins de 1879, nasceu o primeiro e único filho
do casal Stoker, batizado como Irving Noel Thornley Stoker.
Graças aos contatos de Irving, Stoker pode circular na alta sociedade
da época, chegando a travar conhecimento com homens como o pintor James
Abbott McNeill Whistler e os escritores Sir Arthur Conan Doyle e Walt
Whitman (a quem ele muito admirava e de quem se tornou um amigo
próximo). O trabalho com Irving (o ator mais famoso de seu tempo) e a
gestão de um dos teatros mais bem sucedidos de Londres, deixavam Stoker
constantemente ocupado, isso quando ele não estava em viagem ao
continente para acompanhar seu empregador. O pouco tempo dedicado à
Florence e ao pequeno Irving, bem como a idolatria dirigida ao ator em
suas memórias, faz com que, até hoje, muitos biógrafos e historiadores
questionem a natureza profunda da amizade desenvolvida entre ambos.
Muitos acreditam até mesmo que Irving exercia um tipo de magnetismo ou
domínio sobre Stoker que se assemelhava ao de Drácula sobre suas
vítimas. As descrições do conde e de Irving se assemelham, ao mesmo
tempo que o próprio Stoker dizia assemelhar-se a Ramfield — personagem
bizarro que devora insetos enquanto aguarda, enlouquecido, a vida eterna
prometida pelo vampiro, a quem ele nomeia Mestre — em sua devoção pelo
patrão. Quando Drácula foi publicado, a dedicatória dirigiu-se a Henry Irving.
Drácula
Stoker jamais viajou para a Europa Oriental, cenário inicial do
romance, mas era fascinado pelas histórias obscuras da região, com as
quais tomou contato, provavelmente, através de um conhecido seu, o
viajante e escritor húngaro Armin Vambery. A publicação de Drácula
data de 1897. Mas ele manteve sua produção nos anos que se seguiram com
relativo sucesso, muito embora seu livro mais bem sucedido tenha sido a
publicação das memórias de sua vida com Irving, que ele escreveu após a
morte do ator.
Após vários derrames cerebrais, Bram Stoker faleceu em abril de 1912,
em Londres. Alguns biógrafos acreditam que uma sífilis terciária pode
ter sido a causa de sua morte. Ele foi cremado e suas cinzas estão
depositadas no Crematório Golders Green, em Londres.
Para escrever Drácula, Stoker passou anos pesquisando o
folclore europeu e histórias mitológicas dos vampiros. Muitos
historiadores discordam da ideia de que ele tenha se inspirado
diretamente no nobre romeno Vlad Dracul ou Drácula, também conhecido
como Vlad Tepes ou Empalador. Afirmam que as informações que Stoker
poderia acessar, em sua época, a sobre a figura real (e, de fato,
assustadora) de Vlad eram pífias e que não seriam suficientes para a
construção da personagem. O próprio nome Drácula teria sido tirado de um
livro pouco confiável, que traduzia a palavra por diabo e não por
dragão. De outra forma, mesmo tendo uma história medonha de assassínios e
torturas, Vlad era, e é (em certa medida), um herói nacional romeno –
além de ter o título, outorgado pelo Papa, de defensor da fé cristã –, o
que impediria que, à época, suas características verdadeiras estivessem
todas apresentadas em um livro.
Stoker, afora esta pesquisa, aventurou-se pouco na estrutura da
escrita. Utilizou-se do formato epistolar, muito em voga no período,
para dar o grau certo de veracidade e realismo, bem como de
identificação com as personagens. O livro é uma coleção de diários,
cartas, telegramas, registros de bordo, recortes de jornais, organizados
em torno de uma história em que o vampiro aparece como uma sombra. Um
mal à espreita, um terror que cega a capacidade dos homens de vê-lo e
obstruiu sua luta contra ele, ao mesmo tempo em que seduz, mortalmente,
às mulheres.
Atento aos modelos do romance gótico, Stoker construiu seu Drácula a
partir justamente do embate entre o mundo moderno e as lendas obscuras
do passado humano. Assim, ele não deixa de colocar todo o aparato da
racionalidade e ciência modernas à serviço da luta contra o mal. Van
Helsing, que o cinema imortalizou como um caçador de vampiros, é, de
fato, um cientista, um professor, um conhecedor de mitologia, história
natural, medicina, leis, etc. Assim, numa boa leitura, pode-se encontrar
referências à Darwin e à evolução, bem como às heroicas transfusões de
sangue (uma quase ficção científica numa época em que se desconhecia os
tipos sanguíneos e o fator RH). Stoker é um entusiasta do racionalismo e
da ciência. Para ele, estas são as principais armas contra o conde. A
religião — crucifixos, água benta e hóstias — é uma arma parcial, ligada
à própria natureza sobrenatural e antiga (ou antiquada) do vampiro, daí
ela estar equiparada em poder às superstições como o alho. O uso destas
só tem valor quando empunhados pelo ocidente, depositário da razão
moderna e pouco têm efeito nas mãos dos “ignorantes e supersticiosos”
camponeses da Transilvânia.
Contudo, é no papel que Stoker dedica às mulheres em sua ficção que
boa parte dos estudiosos se concentra. Muitas vezes classificado como
misógino, o autor desenha suas personagens femininas como a parte fraca —
no sentido de uma porta aberta para o mal — da civilização. Muitos
estudiosos concebem Drácula como o verdadeiro pesadelo
vitoriano, não pelo conde, mas pelo efeito deste sobre as mulheres. Das
três vampiras, sedentas por sangue e sexo, que aprisionam Jonathan
Harker no castelo do conde na Romênia, até às virtuosas Lucy e Mina,
Stoker está constantemente, colocando seus heróis na defensiva. Os
homens parecem não ter forças para resistir a essas criaturas cujos
desejos afloram e parecem incontroláveis. Lucy e Mina parecem tê-los em
menor escala até ficarem sob o fascínio do conde. Lucy torna-se uma
vampira — é a noiva morta, ainda desejável e sensual, mas que suga o
sangue de criancinhas. É o horror da anti-mãe. Mina, a jovem liberada
que anseia por trabalhar e cuja inteligência se compara à masculina, é
ainda mais temível. Ela, o conde parece querer para si. Lucy recebe como
punição um coração trespassado e arrancado, a cabeça cortada e a boca
preenchida por alho. Uma analogia do casamento vitoriano para alguns
historiadores. Mina é salva pela morte do vampiro, mas sua redenção
completa vem com o fim de seus desejos de trabalho e a concretização da
vida de esposa e mãe.
A chamada “nova mulher” (indico o capítulo de mesmo nome de E. Hobsbawm, em A Era dos Impérios),
figura constante na imprensa e literatura da época, parece ter
constituído para Bram Stoker, e provavelmente para muitos de seus
leitores, um terror verdadeiro. Ao fim, mais que o vampiro, é o que ele
desperta em nós e nos que estão a nossa volta que pode, realmente, nos
dar medo. Nesse sentido, o questionamento da obra e do escritor ainda
está presente e válido. Afinal, que preço se pagaria pela imortalidade?
.oOo.
A Discovery Civilization tem um bom documentário a respeito do livro de Bram Stoker:
Nikelen Witter é escritora e historiadora