segunda-feira, 7 de março de 2011

Países do Cone Sul investigam e punem crimes cometidos pelas ditaduras. Só falta o Brasil

(Foto: Paula/Flickr)

Felipe Prestes no Sul21


Brasileiros que foram torturadores, assassinos e sequestradores durante a ditadura militar são, hoje, os privilegiados entre seus pares do Cone Sul. Os últimos anos têm servido para argentinos, chilenos e uruguaios colocarem dezenas de responsáveis por crimes de lesa-humanidade na cadeia.
Nos três países, a Justiça passou a considerar que estes delitos são imprescritíveis, tendo como base tratados internacionais – o que é um alento para o Brasil. Condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro do ano passado, devido ao assassinato e desaparecimento de 62 pessoas entre 1972 e 1979, o país irá, mais cedo ou mais tarde, investigar e punir os responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime militar.
“Boa parte das supremas cortes latino-americanas tiveram, inicialmente, a mesma posição que a vista no Brasil, de ler a sentença da Corte Interamericana como uma invasão em seus assuntos domésticos”, recorda um integrante do governo brasileiro. Otimista, ele acredita que, assim como os vizinhos, o país avançará para cumprir a determinação da corte internacional. “Nos anos seguintes à publicação das condenações, a organização de medidas para o cumprimento das mesmas é que gerou mudanças de entendimentos e avanços sociais (nos demais países)”, afirma.
O não cumprimento da determinação – o prazo é de um ano para o Brasil adequar suas leis de acordo com o tratado internacional do qual é signatário – fará com que o país fique em descrédito no cenário internacional. “Se a sentença não for cumprida, internacionalmente seremos vistos como um país que não defende os direitos humanos e não tem um Estado de Direito verdadeiramente configurado”, alerta o funcionário do governo.

Túmulo de informações

Por ora, o atraso gritante do Brasil em relação a Argentina, Chile e Uruguai, não só nos coloca em uma posição de descrédito. A falta de acesso aos arquivos da ditadura brasileira faz também com que sejamos o país do Cone Sul que atravanca as investigações sobre a Operação Condor, colaboração militar entre diversos países sul-americanos, com apoio dos Estados Unidos, para reprimir militantes de esquerda. “É uma peça que falta para compreender a Operação Condor. Nunca entendemos porque, com governos progressistas, no Brasil se resiste a abrir os arquivos”, diz a jornalista e ativista chilena Mónica González, diretora do Centro de Investigación Periodistica (CIPER).
Foi no Brasil, relata Mónica, que o general francês Paul Aussaresses passou toda a experiência de tortura e repressão que havia sido testada durante a guerra de independência da Argélia. Com apoio dos Estados Unidos, o Brasil foi o palco de treinamento para militares de vários países. “Para todos os países tem sido um obstáculo e um vazio enorme que o Brasil seja o único país que resiste a investigar. O Brasil teve um papel-chave na articulação dos golpes de estado no Cone Sul. Espero que toda a comunidade brasileira entenda a importância de insistir que se abram os arquivos da repressão no país”, diz a jornalista.
Dilma se encontra com as mães e avós da Praça de Mayo (Foto: Presidência Argentina)

Familiares de vítimas argentinas aguardam que o Brasil investigue os crimes da ditadura militar. São pelo menos doze os argentinos desaparecidos no Brasil, calcula o jornalista argentino Fabian Kovacic. Ele acredita que a visita da presidenta Dilma Rousseff à Argentina sugere que os dois países podem firmar um acordo de colaboração para investigar os crimes das ditaduras. “Imagino que seja uma questão de tempo, nada mais”. Kovacic lembra que pode ser de interesse do Brasil o apoio argentino para investigar as circunstâncias da morte do ex-presidente João Goulart, que morreu em Mercedes, na província de Corrientes.
O governo brasileiro tenta mudar a questão do acesso a informações. Um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados visa acabar com o sigilo eterno de documentos e também veda o sigilo de documentos que possam tratar de violação a direitos humanos. O Brasil também financia o resgate da memória da sociedade civil. Além disso, há o interesse divulgado pela própria secretária especial dos Direitos Humanos de criar uma Comissão da Verdade.

Kirchner foi decisivo para que Argentina retomasse julgamentos (Foto: Divulgação)

Argentina investiga, com interrupções, desde 1983


As investigações e punições dos militares oscilaram bastante na Argentina, desde o final da ditadura, em dezembro de 1983. O último presidente militar, Reynaldo Bignone, assinou, no apagar das luzes de seu governo, uma lei de anistia. No primeiro dia de seu governo, Raul Alfonsín anulou esta lei e, em seguida, criou uma comissão de notáveis para investigar os crimes do regime militar.
Em setembro de 1984, a comissão concluiu um informe com nomes de pessoas desaparecidas e de militares que seriam responsáveis por crimes. Em 1985, os principais comandantes militares foram para o banco dos réus. “Creio que depois do julgamento de Nuremberg não houve outro igual”, diz Fabian Kovacic.
Depois de julgar os principais nomes do regime militar, no entanto, Alfonsín tratou de botar panos quentes. O presidente criou duas leis. A Lei de Obediência Devida estabeleceu que os demais militares haviam apenas cumprido ordem deste alto comando e que, portanto, não deveriam ser responsabilizados. A Lei de Ponto Final quis por fim definitivo nas investigações e julgamentos.
Durante o governo de Carlos Menem, a Argentina teve um retrocesso: o presidente neoliberal anistiou os membros das juntas militares, condenados durante o governo Alfonsín. Durante os governos de Menem e de Fernando de la Rua a Corte Interamericana apontou mais de uma vez em seus informes anuais que o país não cumpria com a investigação de crimes de lesa-humanidade.
Nova guinada ocorre quando Nestor Kirchner assume a presidência, em 2003. Ele envia um projeto de lei para anular as leis vigentes que impediam novos julgamentos. O projeto é aprovado ainda naquele ano. “Causas suspensas começam a ser retomadas em todo o país”, conta Fabian.
Outra ação exitosa partiu das Abuelas de la Plaza de Mayo. Ainda no final da década de 1990, elas pleitearam na Justiça a verdade sobre o paradeiro de seus parentes. Para tanto, se utilizaram da Declaração dos Direitos da Criança, da ONU, que diz que toda a criança tem direito à identidade. “As Abuelas se apresentam à Justiça reclamando que o delito de desaparição forçada de crianças é um crime que segue sendo produzido, enquanto elas não souberem sua verdadeira identidade”, explica o jornalista. O primeiro julgamento por roubo de bebês ocorre em 1998. Na última semana, Jorge Videla e Reynaldo Bignone voltaram ao banco dos réus devido a estes desaparecimentos.


Chile volta a investigar Allende (Foto: Jaume d'Urgell/Flickr)

Mais de cem condenados no Chile


Nos últimos anos os chilenos conseguiram intensificar as punições aos responsáveis por crimes da ditadura militar. De 2008 para cá, o Chile condenou vários integrantes das polícias secretas, oficiais das Forças Armadas, entre outros repressores. A lei de anistia foi feita no país andino em 1979, durante uma suposta abertura do governo chileno – Augusto Pinochet continuou governando o país até 1990.
Neste ano, foi criada uma comissão de justiça e verdade, que chegou a conclusão de que havia mais de 3 mil vítimas de crimes na ditadura militar. Vítima e parentes das vítimas receberam pensões. Até 2004, contudo, apenas crimes cometidos entre 1979 e 1990 tiveram condenações. Para os crimes ocorridos entre 1973 e 1979, período mais duro da ditadura, continuava prevalecendo a lei de anistia. “Muitos juízes seguiam sendo pinochetistas, e seguiam mantendo a mesma posição que antes. Continuavam aplicando a anistia sem investigar”, conta a jornalista Mónica González.
Durante a década de 1990, segundo ela, houve um duro confronto nas esferas jurídica e política. A vitória dos ativistas dos direitos humanos começou a ocorrer entre os juízes. Muitos deles passaram a entender que não era possível aplicar a lei de anistia sem investigar o crime antes. E a Justiça no Chile era um grande canal de informações sobre os crimes da ditadura, informações que começaram a aparecer. “O Chile não passou um só dia de ditadura sem que as vítimas e familiares de vítimas não entregassem relatos de como torturavam, como matavam, quem eram. A história da repressão está nos tribunais”.
Na década seguinte, começaram a prevalecer no Chile os tratados internacionais. O ano de 2004 marcou a primeira vez em que a Suprema Corte pronunciou-se contra a prescrição de crimes de lesa-humanidade. “Desde então, foi tudo muito rápido”, conta Mónica.
Vários processos começaram a ingressar na Justiça e, em 2008, a maior parte deles ingressou na Suprema Corte, o que se repetiu nos anos seguintes. “De 2000 a 2008, a investigação massiva dos casos de desrespeito aos direitos humanos foi feita com rigor no Chile. Ao ponto que, quando chega ao momento de serem julgados de forma definitiva na Corte Suprema, começa a ser condenado um grande número de oficiais. Há mais de cem condenados, mais de oitenta deles presos no Chile”.
O ritmo da Justiça chilena não para. Acaba de reabrir a investigação sobre a morte do ex-presidente Salvador Allende e sobre o bombardeio do Palácio de La Moneda. A batalha política, entretanto, o Chile ainda venceu. “Isto é interessante neste país: os políticos não foram capazes de revogar a lei de anistia”, diz Mónica.


No Uruguai julgamentos são recentes e causam faíscas


A discussão sobre a prescrição dos crimes da ditadura está chegando ao clímax no Uruguai, e pode ter um desfecho em 2011. Esteve na pauta do Parlamento uruguaio em 2010 a votação da anulação da Ley de Caducidad, a lei de anistia do país platino, e só não foi votada por falta de quórum. “A revogação foi apresentada pela Frente Amplia, mas dentro do próprio partido há deputados que não estão de acordo. Até onde sei, não teriam os votos necessários para anular a lei. Em março começou o ano parlamentar novamente, é um projeto que pode ser votado”, conta o jornalista Fabian Kovacic.
Enquanto a anulação não é votada, a Suprema Corte uruguaia vem decidindo caso a caso, se aplica ou não a Ley de Caducidad. Desde outubro de 2009, o tribunal vem considerando que não é válida para crimes contra os direitos humanos, tendo como base o fato de o Uruguai ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em novembro de 2010, a Suprema Corte desconsiderou a lei de anistia para 20 assassinatos ocorridos durante o regime militar. Os julgamentos têm gerado fortes reações de grupos de militares aposentados.
O Uruguai começou a julgar crimes cometidos por militares timidamente, quando a Frente Amplia assume o poder com Tabaré Vasquez, em 2005. Vasquez começa a investigar e punir crimes ocorridos entre 1970 e 1972 – a vigência da Ley de Caducidad é entre os anos de 1973 a 1985. O presidente também ordenou que fossem investigados crimes contra uruguaios, com participação da ditadura uruguaia, mas fora do território do país, em Buenos Aires.
Em 2009, ocorre um dos marcos da luta dos ativistas uruguaios. Dois advogados apresentaram um pedido para que fossem julgados os civis e militares que foram responsáveis pelo golpe militar no Uruguai, ocorrido em 1973. No ano seguinte, a Justiça condenou Gregório Alvarez, que foi um dos militares que presidiu a junta de comandantes no Uruguai, e o ex-presidente do Partido Colorado, Juan Maria Bordaberry, por terem violado a Constituição uruguaia. “Isto foi um avanço”, afirma Fabian.

Pressão da sociedade é fundamental para que o Brasil avance na investigação dos crimes da ditadura militar (Foto: Wikimmedia Commons)

Pressão da sociedade

Se o Brasil deseja avançar na investigação e punição de crimes e no acesso à memória da ditadura militar, é preciso também que a causa tenha maior participação da sociedade. “O sucesso ou fracasso das políticas do governo dependerá fortemente da adesão social a esta pauta”, reconhece um membro do governo, que também aponta que, em países como Argentina e Chile, até agora, houve muito mais participação que no Brasil.
Para Fabian Kovacic, a Argentina é o país onde a população está mais conscientizada de que é necessário investigar os crimes da ditadura. “Me parece que o trabalho dos organismos de direitos humanos criou certa consciência social, que a sociedade já toma como necessário investigar”. Fabian afirma que no Chile há a mesma consciência e um trabalho tão forte dos movimentos de direitos humanos, como na Argentina. No país andino, contudo, há uma divisão. “No Chile também há uma consciência muito grande. O que passa é que a sociedade chilena está muito dividida. É um assunto candente, mas há, digamos, um empate técnico”.
No Uruguai, segundo Fabian, os movimentos de defesa dos direitos humanos conseguem mobilizar multidões em Montevidéu, mas isso não se reflete ainda no todo. Nas últimas duas eleições presidenciais, os uruguaios decidiram também se queriam anular a Ley de Caducidad. “Nas duas votações não houve mais de 20% de adesão da população”.
Fabian cita como boa iniciativa para conscientizar a sociedade o ensino nas escolas. “O tema da violação de direitos humanos foi incluído nas escolas”, conta. O governo brasileiro tenta algo semelhante com o programa “Direito à Memória e à Verdade”. Por meio dele, é oferecido curso a professores de ensino médio da rede pública sobre a ditadura militar. Que o futuro nos reserve um país em que os cidadãos se interessem pela própria história.

Escola que homenageou Cuba é campeã do Carnaval


A escola da comunidade da Lagoa da Conceição, União da Ilha da Magia, de Florianópolis (SC), trouxe para avenida um tema recheado de polêmica. O enredo "Cuba sim. Em nome da verdade", ousou retratar os EUA como "monstros" e os guerrilheiros de Che e Fidel como ícones da liberdade.

Política à parte, o desfile encantou os jurados e trouxe o primeiro título para a agremiação em apenas três anos de história. A União deixou para trás escolas tradicionais da cidade, como a Copa Lord, atual campeã, e a Protegidos da Princesa, fundada em 1948 e detentora de 24 campeonatos. Unidos da Coloninha e Consulado do Samba ficaram na quarta e quinta posição, respectivamente.

As três primeiras colocadas voltarão à passarela nesta terça-feira (8) para o desfile das campeãs. A filha de Che, Aleida Guevara,  permanece em Florianópolis para uma série de palestras na quarta e quinta-feira, mas ainda não confirmou presença no novo desfile.

Em uma proposta ousada, causando grande expectativa na sociedade, a escola conseguiu fazer um desfile impecável e conquistar boas notas em quase todos os quesitos. A escola ganhou com 264,8 pontos. Em segundo lugar ficou a Embaixada Copa Lord, com 261,5 pontos, e, em terceiro a Protegidos da Princesa com 261,3 pontos.

A médica e revolucionária cubana Aleida Guevara foi destaque na passarela e participou da apuração na arquibancada ao lado da comunidade da Lagoa da Conceição. A cada nota dez recebida a comunidade se levantava e comemorava a aproximação do título.

Aleida também comemorou a vitória e saudou a coragem da escola e a homenagem feita a seu povo e sua revolução. O enredo da União da Ilha da Magia (UIM) foi cantado por todos, e palavras de ordem como "Cuba sim, yankees não. Viva Fidel e a revolução" também foram ecoadas.

O destaque na pontuação foi também para a Comissão de Frente, que na Passarela Nego Quirido montou um mosaico com o rosto de Che Guevara, e para a bateria UIM, com todos os seus integrantes vestidos de guerrilheiros revolucionários.


Destaque em carro, filha de Che Guevara, ajuda escola a conquistar o Carnaval de Florianópolis. Foto: Fabricio Escandiuzzi/Especial para Terra

Fonte: da redação do vermelho, com agências

Pérolas de Belchior...

Créditos: UmQueTenha

 

Belchior – Era Uma Vez Um Homem e O Seu Tempo / Medo de Avião (1979)


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Belchior – Belchior (1974)


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Belchior – Vício Elegante (1996


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Um novo modelo para o Brasil: o caminho do bom senso


Com a visão de bom senso de que o principal desafio do Brasil, a exclusão econômica e social de quase a metade da sua população, podia ser um trunfo, o país encontrou um novo horizonte de expansão no mercado interno. A crescente pressão da base da pirâmide social brasileira por melhores condições de vida, articulada com a determinação do governo de promover as mudanças, gerou um círculo virtuoso em que o econômico, o social e o ambiental encontraram o seu campo comum. O Brasil encontrou o seu rumo ao transformar o seu maior desafio, a pobreza, e a falta de capacidade de compra que a acompanha, em vetor de expansão do conjunto da economia. O artigo é de Ladislau Dowbor.


O economista Ladislau Dowbor elaborou um documento intitulado “Brasil: um outro patamar - Propostas de estratégia”, que incorpora o cerne das discussões travadas no Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES) ao longo dos últimos cinco anos, com objetivo de esboçar uma “Agenda Brasil” para a década que se inicia.

O documento busca desenhar em grandes traços o novo referencial, tanto nacional como internacional, que incide sobre os rumos desta década. “O Brasil encontrou o seu rumo ao transformar o seu maior desafio, a pobreza, e a falta de capacidade de compra que a acompanha, em vetor de expansão do conjunto da economia. A distribuição, ao estimular a demanda, é que faz crescer o bolo”, diz Dowbor.

A Carta Maior está publicando quatro dos principais capítulos deste trabalho - um a cada dois dias, com o link para a versão integral do texto. Publicamos hoje a segunda parte: "Um novo modelo: o caminho do bom senso".


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O Brasil optou pelo enfrentamento da desigualdade como seu eixo estratégico principal. A materialização da estratégia se deu através da ampliação do consumo de massa. A visão enfrentou fortes resistências no início, mas os efeitos multiplicadores foram-se verificando no próprio processo de ampliação das políticas. Com a visão de bom senso de que o principal desafio do Brasil, a exclusão econômica e social de quase a metade da sua população, podia ser um trunfo, o país encontrou um novo horizonte de expansão no mercado interno. A crescente pressão da base da pirâmide social brasileira por melhores condições de vida, articulada com a determinação do governo de promover as mudanças, gerou um círculo virtuoso em que o econômico, o social e o ambiental encontraram o seu campo comum.

Os avanços sociais sempre foram apresentados no Brasil como custos, que onerariam os setores produtivos. As políticas foram tradicionalmente baseadas na visão de que a ampliação da competitividade da empresa passa pela redução dos seus custos. Isto tem duas vertentes. Enquanto a redução dos custos pela racionalização do uso dos insumos e pelo aproveitamento das novas tecnologias produtivas e organizacionais é essencial, pelo avanço de produtividade que permite, a redução de custos pelo lado da mão de obra reduz o mercado consumidor no seu conjunto, e tende a ter o efeito inverso. Ao reduzir o mercado consumidor, limita a escala de produção, e mantém a economia na chamada “base estreita”, de produzir pouco, para poucos, e com preços elevados.

É importante lembrar que faz todo sentido, para uma empresa individual, achar que com menos direitos sociais ou menores salários poderia reduzir os seus custos, tornando-se inclusive mais competitiva relativamente aos seus concorrentes. Mas a aplicação desta visão ao conjunto das empresas resulta em estagnação para todos. Em termos práticos, o que faz sentido no plano microeconômico, torna-se assim um entrave em termos mais amplos, no plano macroeconômico. As políticas redistributivas aplicadas de forma generalizada, atingindo portanto o conjunto das unidades empresariais, geram também mercados mais amplos para todos, reduzindo custos unitários de produção pelas economias de escala, o que por sua vez permite a expansão do consumo de massa, criando gradualmente um círculo virtuoso de crescimento. Se sustentada por mais tempo, esta política passa a pressionar a capacidade produtiva, estimulando investimentos, que por sua vez geram mais empregos e maior consumo.

A expansão simultânea da demanda e da capacidade produtiva promove desenvolvimento sem as pressões inflacionárias de surtos distributivos momentáneos. A espiral de crescimento passa a ser equilbrada. E a verdade é que os setores que estagnam em termos salariais e de direitos sociais, também tendem a se acomodar em termos de inovação em geral.

Esta compreensão dificilmente se generaliza com explanações teóricas apenas. No entanto, a constatação de que funciona quando aplicada de maneira sustentada, e que viabiliza os negócios de cada um, convence muita gente, que vê os resultados práticos. De certa forma, o Brasil encontrou o seu rumo ao transformar o seu maior desafio, a pobreza, e a falta de capacidade de compra que a acompanha, em vetor de expansão do conjunto da economia. A distribuição, ao estimular a demanda, é que faz crescer o bolo.

Uma segunda mudança, também ditada pelo bom senso, encontra-se na ampliação das políticas sociais em geral, envolvendo a educação, a saúde, a formação profissional, o acesso à cultura e à internet, à habitação mais digna. Aqui também está se invertendo uma visão tradicional. A herança teórica, das simplificações neoliberais, é de que quem produz bens e serviços, portanto o setor produtivo privado, gera riqueza. Ao pagar impostos sobre o produto gerado, viabiliza as políticas sociais, que representariam um custo. Deveríamos portanto, nesta visão, maximizar os interesses dos produtores, o setor privado, e moderar as dimensões do Estado, o gastador. A realidade é diferente. Quando uma empresa contrata um jovem engenheiro de 25 anos, recebe uma pessoa formada, e que representa um ativo formidável, que custou anos de cuidados, de formação, de acesso à cultura geral, de sacrifícios familiares, de uso de infraestruturas públicas as mais diversas, de aproveitamento do nível tecnológico geral desenvolvido na sociedade.

As políticas sociais não constituem custos, são investimentos nas pessoas. E com a atual evolução para uma sociedade cada vez mais intensiva em conhecimento, investir nas pessoas é o que mais rende. A compreensão de que os processos produtivos de bens e serviços e as políticas sociais em geral são como a mão e a luva no conjunto da dinâmica do desenvolvimento, um financiando o outro, sendo todos ao mesmo tempo custo e produto, aponta para uma visão equilibrada e renovada das dinâmicas econômicas.

Um terceiro elemento chave é a política ambiental. A visão tradicional amplamente disseminada apresenta as exigências da sustentabilidade como um freio à economia, impecilho aos investimentos, entrave aos empregos, fator de custos empresariais mais elevados. Trata-se aqui simplesmente de uma conta errada, e amplamente discutida já em nível internacional, com a refutação do argumento da externalidade. Fazer o pre-tratamento de emissões na empresa, quando os resíduos estão concentrados, é muito mais barato do que arcar depois com rios e lençóis freáticos poluídos, doenças respiratórias e perda de qualidade de vida.

Para a empresa ou uma administração local, sai realmente mais barato jogar os dejeitos no rio, mas o custo para a sociedade é incomparavelmente mais elevado. Desmatar a Amazônia gera emprego durante um tempo, mas não o mantém, a não ser com a progressão absurda da destruição. Aprofundar os investimentos em saneamento básico, em contrapartida, gera empregos, reduz custos de saúde, e aumenta a produtividade sistêmica. Investir em tecnologias limpas tende a promover os setores que serão mais dinâmicos no futuro e melhora a nossa competitividade internacional. E ao tratar de maneira sustentável os nossos recursos naturais, capitaliza-se o país para as gerações futuras, em vez de descapitalizá-lo. Fator igualmente importante, na economia global moderna uma política coerente em termos ambientais gera credibilidade e respeito nos planos interno e internacional, o que por sua vez abre mercados. A verdade é que a política ambiental ganhou nestes anos uma outra estatura, e se incorpora na nova política econômica que se desenhou no país.

Um quarto eixo de política econômica encontra-se no resgate da capacidade de planejamento das infraestruturas do país. Boas infraestruturas, ao baratearem o acesso ao transporte, comunicações, energia, água e saneamento, geram economias externas para todos e elevam a produtividade sistêmica do território. O custo tonelada/quilómetro do transporte de mercadorias no Brasil é proibitivo, pois transportar soja e outros produtos de relação peso/valor relativamente baixo, em grandes distâncias, por caminhão, gera sobrecustos para todos os produtores. O resgate do transporte ferroviário, a reconstituição da capacidade de estaleiros navais e de transporte de cabotagem, a priorização do transporte coletivo nas metrópoles, o barateamento do acesso a serviços de telecomunicações e de internet banda larga, a busca da produtividade na distribuição e uso de água e em particular no destino dos esgotos, o reforço das fontes renováveis na matriz energética, conformam uma visão que pode abrir um imenso caminho de avanço para o conjunto das atividades econômicas.

O planejamento e a forte presença do Estado são aqui essenciais. As infraestruturas constituem grandes redes que articulam o território. Constituem neste sentido um dos principais vetores de redução dos desequilíbrios regionais do país Precisam, por exemplo, ser ampliadas nas regiões mais pobres, para dinamizar e atrair novas atividades, e são políticas públicas que podem arcar com este tipo de investimentos de longo prazo justamente nas regiões onde não geram lucros imediatos. Isto envolve planejamento, visão sistêmica e de longo prazo. As metrópoles brasileira estão se paralizando por excesso de meios de transporte e insuficiência de planejamento. O resgate desta visão, e a dinamização de investimentos coerentes com as necessidades do território, constituem um trunfo para o desenvolvimento, e deverão desempenhar um papel essencial nesta decada.

Assim, políticas distributivas ancoradas numa visão de justiça social e de racionalidade econômica, a ampliação dos investimentos nas pessoas através das políticas sociais focalizadas, a gradual incorporação das dimensões da sustentabilidade ambiental no conjunto dos processos decisórios de impacto econômico, e a dinâmica de investimentos de infraestruturas que tanto reduzem o custo Brasil através das economias externas como melhoram a competitividade internacional, conformam um modelo que, em clima democrático e de paz social, está abrindo novos caminhos. Ter um modelo que não apenas faz sentido teórico, mas funciona, e convence grande parte dos atores econômicos e sociais do país, é um trunfo importante.

A íntegra do documento
Brasil: um outro patamar - Propostas de estratégia

Na página do autor, o documento também está disponível nas versões em espanhol e inglês.

Escola técnica de fronteira dá início a atividades no Sul


Com 100% de frequência já no primeiro dia, o início das aulas não poderia ter sido melhor no campus avançado Santana do Livramento do Instituto Federal Sul-rio-grandense, a primeira escola técnica de fronteira do Brasil. De acordo com a direção, dos 40 alunos matriculados no curso técnico em informática para internet, distribuídos nos turnos da tarde e da noite, metade são uruguaios. Já em Rivera, no Uruguai, as atividades do curso técnico em controle ambiental começam no dia 14 de março e 50% das vagas (15) são reservadas para estudantes brasileiros.

Na primeira aula, os professores do instituto foram orientados a verificar o nível de conhecimento dos alunos tanto em línguas (português, espanhol e inglês) quanto em informática, para estabelecer um nivelamento. A carga horária do curso é de 1.200 horas, com duração de quatro semestres, e mais 240 horas de estágio obrigatório. O mesmo formato terá o curso técnico em controle ambiental, que está sob a coordenação da Universidade do Trabalho do Uruguai (UTU) e funcionará na Escola Técnica de Rivera com 30 alunos no turno da noite.

“O inédito projeto das escolas técnicas de fronteira agora é realidade. Estamos realizando o sonho de integrar Brasil e Uruguai através da educação e garantir um futuro melhor para os jovens dos dois países”, ressaltou Antônio Carlos Barum Brod, reitor do Instituto Sul-rio-grandense.

As escolas técnicas de fronteira são um projeto da Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica (Setec) do Ministério da Educação. A meta é ter parceria com todos os países que fazem fronteira com o Brasil, até 2014.

Assessoria de imprensa do Instituto Federal Sul-rio-grandense

Roger Waters adere ao boicote cultural a Israel


Fundador da banda Pink Floyd junta-se à campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel e apela aos colegas da indústria da música e a artistas de outras áreas para que adiram também.
"Onde os governos se recusam a actuar, as pessoas devem fazê-lo, com os meios pacíficos que tiverem à sua disposição", diz Waters

O fundador, vocalista e baixista da banda Pink Floyd, cuja música "Another Brick in the Wall Part 2" serviu de hino da juventude negra sul-africana contra o apartheid e, mais tarde, foi também cantada por jovens palestinianos contra o muro que Israel construiu nos territórios ocupados, anunciou este domingo a sua adesão ao boicote cultural contra Israel.
Waters apelou aos colegas da indústria da música e a artistas de outras áreas para aderirem à campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel, até que termine a ocupação e a colonização de todas as terras árabes e o muro seja desmantelado; sejam reconhecidos os direitos fundamentais dos cidadãos árabo-palestinos de Israel em plena igualdade; e sejam respeitados, protegidos e promovidos os direitos dos refugiados palestinos de regressar às suas casas e propriedades, como estipulado na resolução 194 das NU.
Leia na íntegra a carta aberta divulgada pelo músico britânico.A matéria encontra-se no esquerda.net

Carta aberta de Roger Waters
Em 1980, uma canção que escrevi, "Another Brick in the Wall Part 2", foi proibida pelo governo da África do Sul porque estava a ser usada por crianças negras sul-africanas para reivindicar o seu direito a uma educação igual. Esse governo de apartheid impôs um bloqueio cultural, por assim dizer, sobre algumas canções, incluindo a minha.
Vinte e cinco anos mais tarde, em 2005, crianças palestinianas que participavam num festival na Cisjordânia usaram a canção para protestar contra o muro do apartheid israelita. Elas cantavam: “Não precisamos da ocupação! Não precisamos do muro racista!” Nessa altura, eu não tinha ainda visto com os meus olhos aquilo sobre o que elas estavam a cantar.
Um ano mais tarde, em 2006, fui contratado para actuar em Telavive.
Palestinianos do movimento de boicote académico e cultural a Israel exortaram-me a reconsiderar. Eu já me tinha manifestado contra o muro, mas não tinha a certeza de que um boicote cultural fosse a via certa. Os defensores palestinianos de um boicote pediram-me que visitasse o território palestiniano ocupado para ver o muro com os meus olhos antes de tomar uma decisão. Eu concordei.
Sob a protecção das Nações Unidas, visitei Jerusalém e Belém. Nada podia ter-me preparado para aquilo que vi nesse dia. O muro é um edifício revoltante. Ele é policiado por jovens soldados israelitas que me trataram, observador casual de um outro mundo, com uma agressão cheia de desprezo. Se foi assim comigo, um estrangeiro, imaginem o que deve ser com os palestinianos, com os subproletários, com os portadores de autorizações. Soube então que a minha consciência não me permitiria afastar-me desse muro, do destino dos palestinianos que conheci, pessoas cujas vidas são esmagadas diariamente de mil e uma maneiras pela ocupação de Israel. Em solidariedade, e de alguma forma por impotência, escrevi no muro, naquele dia: “Não precisamos do controlo das ideias”.
Tomando nesse momento consciência que a minha presença num palco de Telavive iria legitimar involuntariamente a opressão que estava a testemunhar, cancelei o concerto no estádio de futebol de Telavive e mudei-o para Neve Shalom, uma comunidade agrícola dedicada a criar pintainhos e também, admiravelmente, à cooperação entre pessoas de crenças diferentes, onde muçulmanos, cristãos e judeus vivem e trabalham lado a lado em harmonia.
Contra todas as expectativas, ele tornou-se no maior evento musical da curta história de Israel. 60.000 fãs lutaram contra engarrafamentos de trânsito para assistir. Foi extraordinariamente comovente para mim e para a minha banda e, no fim do concerto, fui levado a exortar os jovens que ali estavam agrupados a exigirem ao seu governo que tentasse chegar à paz com os seus vizinhos e que respeitasse os direitos civis dos palestinianos que vivem em Israel.
Infelizmente, nos anos que se seguiram, o governo israelita não fez nenhuma tentativa para implementar legislação que garanta aos árabes israelitas direitos civis iguais aos que têm os judeus israelitas, e o muro cresceu, inexoravelmente, anexando cada vez mais da faixa ocidental.
Aprendi nesse dia de 2006 em Belém alguma coisa do que significa viver sob ocupação, encarcerado por trás de um muro. Significa que um agricultor palestiniano tem de ver oliveiras centenárias ser arrancadas. Significa que um estudante palestiniano não pode ir para a escola porque o checkpoint está fechado. Significa que uma mulher pode dar à luz num carro, porque o soldado não a deixará passar até ao hospital que está a dez minutos de estrada. Significa que um artista palestiniano não pode viajar ao estrangeiro para exibir o seu trabalho ou para mostrar um filme num festival internacional.
Para a população de Gaza, fechada numa prisão virtual por trás do muro do bloqueio ilegal de Israel, significa outra série de injustiças. Significa que as crianças vão para a cama com fome, muitas delas malnutridas cronicamente. Significa que pais e mães, impedidos de trabalhar numa economia dizimada, não têm meios de sustentar as suas famílias. Significa que estudantes universitários com bolsas para estudar no estrangeiro têm de ver uma oportunidade escapar porque não são autorizados a viajar.
Na minha opinião, o controlo repugnante e draconiano que Israel exerce sobre os palestinianos de Gaza cercados e os palestinianos da Cisjordânia ocupada (incluindo Jerusalém oriental), assim como a sua negação dos direitos dos refugiados de regressar às suas casas em Israel, exige que as pessoas com sentido de justiça em todo o mundo apoiem os palestinianos na sua resistência civil, não violenta.
Onde os governos se recusam a actuar, as pessoas devem fazê-lo, com os meios pacíficos que tiverem à sua disposição. Para alguns, isto significou juntar-se à Marcha da Liberdade de Gaza; para outros, juntar-se à flotilha humanitária que tentou levar até Gaza a muito necessitada ajuda humanitária.
Para mim, isso significa declarar a minha intenção de me manter solidário, não só com o povo da Palestina, mas também com os muitos milhares de israelitas que discordam das políticas racistas e coloniais dos seus governos, juntando-me à campanha de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) contra Israel, até que este satisfaça três direitos humanos básicos exigidos na lei internacional.
1. Pondo fim à ocupação e à colonização de todas as terras árabes [ocupadas desde 1967] e desmantelando o muro;
2. Reconhecendo os direitos fundamentais dos cidadãos árabo-palestinianos de Israel em plena igualdade; e
3. Respeitando, protegendo e promovendo os direitos dos refugiados palestinianos de regressar às suas casas e propriedades como estipulado na resolução 194 das NU.
A minha convicção nasceu da ideia de que todas as pessoas merecem direitos humanos básicos. A minha posição não é anti-semita. Isto não é um ataque ao povo de Israel. Isto é, no entanto, um apelo aos meus colegas da indústria da música e também a artistas de outras áreas para que se juntem ao boicote cultural.
Os artistas tiveram razão de recusar-se a actuar na estação de Sun City na África do Sul até que o apartheid caísse e que brancos e negros gozassem dos mesmos direitos. E nós temos razão de recusar actuar em Israel até que venha o dia – e esse dia virá seguramente – em que o muro da ocupação caia e os palestinianos vivam ao lado dos israelitas em paz, liberdade, justiça e dignidade, que todos eles merecem.
Tradução do Comité Palestina

Tariq Ali: “Assistimos à segunda vaga histórica do despertar árabe”


"A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo". Entrevista de Tariq Ali, feita por Christophe Ventura.
“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
 
Mémoires des Luttes (MDL - "Memórias das Lutas"): Que se passa actualmente no mundo árabe?
 
Tariq Ali (TA): Acho que estamos a assistir à segunda vaga histórica do despertar árabe. A recusa dos povos a beijar, durante mais tempo, a mão que segura o pau que os puniu durante décadas abriu um novo capítulo na história da nação árabe. A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo. Os que faziam a promoção desta ideia são os que estão mais descontentes. Penso em Israel e nos seus lóbis na Europa e nos Estados Unidos – o que eu chamo a Euro-América -, na indústria militar que vendia tudo o que podia àqueles regimes, mas igualmente nos presionados dirigentes da Arábia Saudita que se interrogam hoje sobre se a epidemia democrática vai propagar-se até ao seu reino tirânico.
Até agora, estes últimos deram refúgio a numerosos déspotas, mas, quando o momento vier, onde vai a família real saudita encontrar refúgio? Os dirigentes sauditas devem saber que os seus protectores ocidentais, antigos ou novos, os deitarão fora sem cerimónia como meias velhas e proclamarão que sempre foram favoráveis à democracia.
Se houvesse comparação a fazer com a história europeia, seria com 1848, quando os levantamentos revolucionários tomaram forma continental, poupando apenas a Grã-Bretanha e a Espanha.
Como os Europeus de 1848, os povos árabes lutam contra a dominação estrangeira: 82% dos egípcios têm uma “imagem negativa dos Estados Unidos”, recordava recentemente uma sondagem. Não julgaram útil pôr a questão a respeito dos europeus... Eles lutam contra a violação dos seus direitos democráticos e contra uma elite cega pela sua própria ilegitimidade. Eles querem mais justiça económica.
 
MDL: Quais são as características desta “segunda vaga do despertar árabe”?
 
TA: A situação é diferente da que conhecemos na primeira vaga do nacionalismo árabe. Essa foi essencialmente anti-imperialista e tinha como principal objectivo libertar a região dos vestígios do império britânico.
As actuais revoluções árabes, desencadeadas pela crise económica, mobilizaram a vontade, a criatividade e poder de enormes movimentos de massas. No entanto, nem todos os aspectos da vida humana não foram postos em questão. Os direitos sociais, políticos e religiosos são alvo de fortes polémicas na Tunísia, mas não noutros lugares, pelo menos para já. Até agora, nenhum novo partido se formou, o que leva a pensar que as futuras batalhas eleitorais oporão o liberalismo e o conservadorismo árabe, neste último caso sob a forma das Irmandades muçulmanas, versão local da democracia cristã europeia.
Estes últimos tomarão como modelos os seus correlegionários actualmente no poder na Turquia e na Indonésia e confortavelmente instalados no regaço dos Estados Unidos. Os dirigentes da Confraria propõem uma transição ultra-ordenada se Washington os apoiar, o que poderá acontecer. A diferença com a Turquia reside no facto que foram movimentos de massas que derrubaram ou ameaçam os déspotas do mundo árabe. O futuro poderá ainda reservar-nos surpresas se os regimes de transição ou de sucessão provocarem decepções na frente social.
 
MDL: Como vão reagir os Estados Unidos?
 
 TA: A hegemonia dos Estados Unidos na região foi beliscada, mas não destruída. Ela retornará, mas não da mesma forma. Os regimes pós-despóticos vão ser mais independentes, mesmo que, no Egipto ou na Tunísia, o exército esteja sempre presente para garantir que nada vai longe de mais. O novo grande problema para a Euro-América tem por nome Bahrein. Se os dirigentes deste pequeno reino – que dependem de um exército dominado por oficiais e soldados reformados do exército paquistanês – forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita. Pode Washington dar-se ao luxo de ficar de braços cruzados perante uma tal perspectiva? Ou vão os Estados Unidos implicar as suas forças armadas na manutenção no poder dos cleptocratas wahabitas?
 
MDL: Como analisa a situação na Líbia?
 
TA: As raízes dos levantamentos na Líbia não são diferentes dos que explicam os acontecimentos na Tunísia ou no Egipto.
Mouamar Kadhafi dirigiu o país com mão de ferro. Se por vezes recorreu a uma retórica anti-imperialista num passado longínquo, ele colaborou directamente, nas últimas décadas, com a Euro-América. O ideólogo de Tony Blair, Anthony Giddens, fez elogios ditirâmbicos ao Guia. O estilo de vida deste último e as suas políticas excêntricas tornaram-no inapto para modernizar o seu país. Apesar dos quarenta anos que passou no poder, os líbios têm um nível de educação muito pior que os tunisinos e o sistema de saúde do país é muito deficiente.
O balanço de Kadhafi é um Estado de partido único degenerado, as prisões e a utilização da tortura. E tudo isto para manter a sua família no poder. A sua decisão de recorrer ao exército e à aviação para reprimir o seu próprio povo levou à libertação de Benghazi e provocou uma dissidência na instituição militar. Os soldados que recusaram abrir fogo sobre o povo foram executados pelos esquadrões da morte do ditador, como pudemos ver na Al-Jazeera. Fazer querer que este regime é progressista é uma vergonha. Com um país dilacerado e um exército dividido, os dias de Kadhafi estão contados.
 
Entrevista publicada em Mémoires des luttes, traduzida por Carlos Santos para esquerda.net

8 de Março: Simbolismo ou luta permanente?


A par da luta contra a violência, o direito ao trabalho e à independência económica devem estar no centro das reivindicações das mulheres neste dia 8 de Março de 2011.
No dia internacional da Mulher, devemos não só reafirmar a nossa memória colectiva evocando as conquistas politicas económicas e sociais já alcançadas pelas mulheres, mas também, e sobretudo evidenciar o muito que ainda está por fazer quanto ás inadmissíveis discriminações que persistem no século XXI.
Ainda que muitos liberais e neoliberais pretendam confundir o 8 de Março tentando transformá-lo numa data meramente simbólica, em que se oferecem postais com poemas insípidos e lamechas ou apenas flores de todas as formas e feitios, a verdade é que esta é uma data que deve ser amplamente comemorada por tod@s as que lutam numa sociedade capitalista e patriarcal contra as diferentes discriminações de que as mulheres são alvo.
Ainda que os discursos oficiais exaltem que a igualdade de género é hoje um dado adquirido, tal discurso caí por terra quando um século passado as desigualdades salariais persistem e as discriminações na área do trabalho são mais do que evidentes.
Não se pergunta a um homem candidato a um emprego se pensa casar, se tem filhos ou tem intenção de ser pai!
Convive-se muito bem com a desproporção que existe nos cargos de chefia e de direcção, nos cargos políticos e até nos cargos governamentais.
Admite-se como normal que as empresas dispensem mais facilmente as mulheres justificando o seu absentismo motivado a maior parte das vezes por assistência aos seus filhos e progenitores.
E se estas são questões particularmente graves, a gravidade do número de mortes em 2010 (43 contra as 29 contabilizadas em 2009) torna evidente o falhanço das políticas do governo nesta área, quando a maior parte dos casos foram antecedidas de denúncias.
Neste tempo de incerteza como o que vivemos, multiplicam-se sempre as solicitações geradoras de descrenças e dúvidas, desmoralizando as lutas, enviesando a participação, camuflando de consenso “mole” as contradições óbvias. Acho por isso necessário que novas linhas de intervenção e de activismo terão que emergir para que a igualdade de género seja de facto alcançada. A par da luta contra a violência, o direito ao trabalho e à independência económica devem estar no centro das reivindicações das mulheres neste dia 8 de Março de 2011.

The Economist prega guerra contra funcionários públicos


Em um informe publicado dia 8 de janeiro, a revista anunciou a "próxima batalha" liberal: o confronto com os sindicatos do setor público. A tese da revista pode ser resumida em três pontos: os Estados europeus enfrentam déficits públicos abismais; para reduzir o gasto, é preciso reduzir efetivos, salários e sistemas de pensões dos funcionários; os governos ganharão a opinião pública incentivando a denúncia dos “privilégios” (em especial a estabilidade no trabalho) dos “acomodados” do setor público. Em nenhum momento o informe recorda que os déficits públicos são em grande parte consequência das ajudas colossais aos bancos e outros responsáveis pela crise atual. O artigo é de Bernard Cassen.


A revista The Economist é onde são expostas com maior radicalismo – e também com talento – as teses ultraneoliberais. É conhecida a grande influência que este semanário britânico exerce sobre as autoridades políticas, influência esta que vai muito além do mundo anglosaxão. O que The Economist preconiza transmite-se frequentemente para as políticas dos governos, em primeiro lugar na Europa. Por isso, é preciso levar muito a sério a capa da edição de 8 de janeiro passado e o conteúdo do informe especial: “A próxima batalha. Rumo ao confronto com os sindicatos do setor público”.

A tese da revista é de uma simplicidade evangélica e pode ser resumida em três pontos: a) todos os Estados europeus enfrentam déficits públicos abismais; b) para reduzir o gasto público, é preciso reduzir os efetivos, os salários e os sistemas de pensões dos funcionários; c) os governos ganharão com maior facilidade a opinião pública incentivando a denúncia dos “privilégios” (em especial a estabilidade no trabalho) dos “acomodados” do setor público, que supostamente vivem a custa do conjunto dos contribuintes.

Em nenhum momento o informe recorda que os déficits públicos são em grande parte consequência das ajudas colossais aos bancos e outros responsáveis pela crise atual. Tampouco que estes déficits aumentaram devido aos presentes sob a forma de isenções fiscais outorgadas aos ricos. Nem sequer se deixa claro que, em troca de seu salário, os funcionários prestam serviços indispensáveis para o bom funcionamento da sociedade.
Em particular os professores, atacados muito especialmente neste informe.

O jornalista que escreveu um dos artigos deve estar muito desinformado sobre as reais condições de trabalho dos professores para ter coragem de escrever que “65 anos deveria ser a idade mínima para que essa gente que passa a vida em uma sala de aula se aposente”.

The Economist festeja que vários governos europeus – dois deles dirigidos por “socialistas”, Grécia e Espanha – tenham rebaixado os salários de seus funcionários e que, em toda a União Europeia haja “reformas” – seria mais justo falar de contrarreformas dos sistemas de pensões já realizadas ou em vias de realização.

Por ideologia, os liberais são hostis aos funcionários e demais assalariados do setor público. Em primeiro lugar porque privam o setor privado de novos espaços de lucro. Em segundo porque, protegidos por seu estatuto, podem ser socialmente mais combativos que seus companheiros do setor privado, até o ponto de que, às vezes, fazem greves “por delegação” e representam os trabalhadores do setor privado que não podem fazê-las.

Esta solidariedade é a que os governos querem destruir a todo custo para reduzir a capacidade de resistência das populações contra os planos de ajuste e de austeridade implementados em toda a Europa. Os déficits públicos constituem assim um pretexto inesperado para modificar as relações sociais conflitivas em detrimento do mundo do trabalho.
Defender os serviços públicos é defender o único patrimônio do qual dispõem as categorias mais pobres da população. A aposta na caça aos funcionários públicos e a seus sindicatos proposta por The Economist não é apenas financeira. É política ou ideológica.

Versão em espanhol - Le Monde Diplomatique

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer