Felipe Prestes no Sul21
Brasileiros que foram torturadores, assassinos e sequestradores
durante a ditadura militar são, hoje, os privilegiados entre seus pares
do Cone Sul. Os últimos anos têm servido para argentinos, chilenos e
uruguaios colocarem dezenas de responsáveis por crimes de
lesa-humanidade na cadeia.
Nos três países, a Justiça passou a considerar que estes delitos são
imprescritíveis, tendo como base tratados internacionais – o que é um
alento para o Brasil. Condenado
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro do ano
passado, devido ao assassinato e desaparecimento de 62 pessoas entre
1972 e 1979, o país irá, mais cedo ou mais tarde, investigar e punir os
responsáveis pelos crimes cometidos durante o regime militar.
“Boa parte das supremas cortes latino-americanas tiveram,
inicialmente, a mesma posição que a vista no Brasil, de ler a sentença
da Corte Interamericana como uma invasão em seus assuntos domésticos”,
recorda um integrante do governo brasileiro. Otimista, ele acredita que,
assim como os vizinhos, o país avançará para cumprir a determinação da
corte internacional. “Nos anos seguintes à publicação das condenações, a
organização de medidas para o cumprimento das mesmas é que gerou
mudanças de entendimentos e avanços sociais (nos demais países)”,
afirma.
O não cumprimento da determinação – o prazo é de um ano para o Brasil
adequar suas leis de acordo com o tratado internacional do qual é
signatário – fará com que o país fique em descrédito no cenário
internacional. “Se a sentença não for cumprida, internacionalmente
seremos vistos como um país que não defende os direitos humanos e não
tem um Estado de Direito verdadeiramente configurado”, alerta o
funcionário do governo.
Túmulo de informações
Por ora, o atraso gritante do Brasil em relação a Argentina, Chile e
Uruguai, não só nos coloca em uma posição de descrédito. A falta de
acesso aos arquivos da ditadura brasileira faz também com que sejamos o
país do Cone Sul que atravanca as investigações sobre a Operação Condor,
colaboração militar entre diversos países sul-americanos, com apoio dos
Estados Unidos, para reprimir militantes de esquerda. “É uma peça que
falta para compreender a Operação Condor. Nunca entendemos porque, com
governos progressistas, no Brasil se resiste a abrir os arquivos”, diz a
jornalista e ativista chilena Mónica González, diretora do Centro de
Investigación Periodistica (CIPER).
Foi no Brasil, relata Mónica, que o general francês Paul Aussaresses
passou toda a experiência de tortura e repressão que havia sido testada
durante a guerra de independência da Argélia. Com apoio dos Estados
Unidos, o Brasil foi o palco de treinamento para militares de vários
países. “Para todos os países tem sido um obstáculo e um vazio enorme
que o Brasil seja o único país que resiste a investigar. O Brasil teve
um papel-chave na articulação dos golpes de estado no Cone Sul. Espero
que toda a comunidade brasileira entenda a importância de insistir que
se abram os arquivos da repressão no país”, diz a jornalista.
Familiares de vítimas argentinas aguardam que o Brasil investigue os
crimes da ditadura militar. São pelo menos doze os argentinos
desaparecidos no Brasil, calcula o jornalista argentino Fabian Kovacic.
Ele acredita que a visita da presidenta Dilma Rousseff à Argentina
sugere que os dois países podem firmar um acordo de colaboração para
investigar os crimes das ditaduras. “Imagino que seja uma questão de
tempo, nada mais”. Kovacic lembra que pode ser de interesse do Brasil o
apoio argentino para investigar as circunstâncias da morte do
ex-presidente João Goulart, que morreu em Mercedes, na província de
Corrientes.
O governo brasileiro tenta mudar a questão do acesso a informações.
Um projeto de lei que tramita na Câmara dos Deputados visa acabar com o
sigilo eterno de documentos e também veda o sigilo de documentos que
possam tratar de violação a direitos humanos. O Brasil também financia o
resgate da memória da sociedade civil. Além disso, há o interesse divulgado pela própria secretária especial dos Direitos Humanos de criar uma Comissão da Verdade.
Argentina investiga, com interrupções, desde 1983
As investigações e punições dos militares oscilaram bastante na
Argentina, desde o final da ditadura, em dezembro de 1983. O último
presidente militar, Reynaldo Bignone, assinou, no apagar das luzes de
seu governo, uma lei de anistia. No primeiro dia de seu governo, Raul
Alfonsín anulou esta lei e, em seguida, criou uma comissão de notáveis
para investigar os crimes do regime militar.
Em setembro de 1984, a comissão concluiu um informe com nomes de
pessoas desaparecidas e de militares que seriam responsáveis por crimes.
Em 1985, os principais comandantes militares foram para o banco dos
réus. “Creio que depois do julgamento de Nuremberg não houve outro
igual”, diz Fabian Kovacic.
Depois de julgar os principais nomes do regime militar, no entanto,
Alfonsín tratou de botar panos quentes. O presidente criou duas leis. A
Lei de Obediência Devida estabeleceu que os demais militares haviam
apenas cumprido ordem deste alto comando e que, portanto, não deveriam
ser responsabilizados. A Lei de Ponto Final quis por fim definitivo nas
investigações e julgamentos.
Durante o governo de Carlos Menem, a Argentina teve um retrocesso: o
presidente neoliberal anistiou os membros das juntas militares,
condenados durante o governo Alfonsín. Durante os governos de Menem e de
Fernando de la Rua a Corte Interamericana apontou mais de uma vez em
seus informes anuais que o país não cumpria com a investigação de crimes
de lesa-humanidade.
Nova guinada ocorre quando Nestor Kirchner assume a presidência, em
2003. Ele envia um projeto de lei para anular as leis vigentes que
impediam novos julgamentos. O projeto é aprovado ainda naquele ano.
“Causas suspensas começam a ser retomadas em todo o país”, conta Fabian.
Outra ação exitosa partiu das Abuelas de la Plaza de Mayo. Ainda no
final da década de 1990, elas pleitearam na Justiça a verdade sobre o
paradeiro de seus parentes. Para tanto, se utilizaram da Declaração dos
Direitos da Criança, da ONU, que diz que toda a criança tem direito à
identidade. “As Abuelas se apresentam à Justiça reclamando que o delito
de desaparição forçada de crianças é um crime que segue sendo produzido,
enquanto elas não souberem sua verdadeira identidade”, explica o
jornalista. O primeiro julgamento por roubo de bebês ocorre em 1998. Na
última semana, Jorge Videla e Reynaldo Bignone voltaram ao banco dos réus devido a estes desaparecimentos.
Mais de cem condenados no Chile
Nos últimos anos os chilenos conseguiram intensificar as punições aos
responsáveis por crimes da ditadura militar. De 2008 para cá, o Chile
condenou vários integrantes das polícias secretas, oficiais das Forças
Armadas, entre outros repressores. A lei de anistia foi feita no país
andino em 1979, durante uma suposta abertura do governo chileno –
Augusto Pinochet continuou governando o país até 1990.
Neste ano, foi criada uma comissão de justiça e verdade, que chegou a
conclusão de que havia mais de 3 mil vítimas de crimes na ditadura
militar. Vítima e parentes das vítimas receberam pensões. Até 2004,
contudo, apenas crimes cometidos entre 1979 e 1990 tiveram condenações.
Para os crimes ocorridos entre 1973 e 1979, período mais duro da
ditadura, continuava prevalecendo a lei de anistia. “Muitos juízes
seguiam sendo pinochetistas, e seguiam mantendo a mesma posição que
antes. Continuavam aplicando a anistia sem investigar”, conta a
jornalista Mónica González.
Durante a década de 1990, segundo ela, houve um duro confronto nas
esferas jurídica e política. A vitória dos ativistas dos direitos
humanos começou a ocorrer entre os juízes. Muitos deles passaram a
entender que não era possível aplicar a lei de anistia sem investigar o
crime antes. E a Justiça no Chile era um grande canal de informações
sobre os crimes da ditadura, informações que começaram a aparecer. “O
Chile não passou um só dia de ditadura sem que as vítimas e familiares
de vítimas não entregassem relatos de como torturavam, como matavam,
quem eram. A história da repressão está nos tribunais”.
Na década seguinte, começaram a prevalecer no Chile os tratados
internacionais. O ano de 2004 marcou a primeira vez em que a Suprema
Corte pronunciou-se contra a prescrição de crimes de lesa-humanidade.
“Desde então, foi tudo muito rápido”, conta Mónica.
Vários processos começaram a ingressar na Justiça e, em 2008, a maior
parte deles ingressou na Suprema Corte, o que se repetiu nos anos
seguintes. “De 2000 a 2008, a investigação massiva dos casos de
desrespeito aos direitos humanos foi feita com rigor no Chile. Ao ponto
que, quando chega ao momento de serem julgados de forma definitiva na
Corte Suprema, começa a ser condenado um grande número de oficiais. Há
mais de cem condenados, mais de oitenta deles presos no Chile”.
O ritmo da Justiça chilena não para. Acaba de reabrir a investigação
sobre a morte do ex-presidente Salvador Allende e sobre o bombardeio do
Palácio de La Moneda. A batalha política, entretanto, o Chile ainda
venceu. “Isto é interessante neste país: os políticos não foram capazes
de revogar a lei de anistia”, diz Mónica.
No Uruguai julgamentos são recentes e causam faíscas
A discussão sobre a prescrição dos crimes da ditadura está chegando
ao clímax no Uruguai, e pode ter um desfecho em 2011. Esteve na pauta do
Parlamento uruguaio em 2010 a votação da anulação da Ley de Caducidad,
a lei de anistia do país platino, e só não foi votada por falta de
quórum. “A revogação foi apresentada pela Frente Amplia, mas dentro do
próprio partido há deputados que não estão de acordo. Até onde sei, não
teriam os votos necessários para anular a lei. Em março começou o ano
parlamentar novamente, é um projeto que pode ser votado”, conta o
jornalista Fabian Kovacic.
Enquanto a anulação não é votada, a Suprema Corte uruguaia vem
decidindo caso a caso, se aplica ou não a Ley de Caducidad. Desde
outubro de 2009, o tribunal vem considerando que não é válida para
crimes contra os direitos humanos, tendo como base o fato de o Uruguai
ser signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos. Em novembro
de 2010, a Suprema Corte desconsiderou a lei de anistia para 20
assassinatos ocorridos durante o regime militar. Os julgamentos têm
gerado fortes reações de grupos de militares aposentados.
O Uruguai começou a julgar crimes cometidos por militares
timidamente, quando a Frente Amplia assume o poder com Tabaré Vasquez,
em 2005. Vasquez começa a investigar e punir crimes ocorridos entre 1970
e 1972 – a vigência da Ley de Caducidad é entre os anos de 1973 a 1985.
O presidente também ordenou que fossem investigados crimes contra
uruguaios, com participação da ditadura uruguaia, mas fora do território
do país, em Buenos Aires.
Em 2009, ocorre um dos marcos da luta dos ativistas uruguaios. Dois
advogados apresentaram um pedido para que fossem julgados os civis e
militares que foram responsáveis pelo golpe militar no Uruguai, ocorrido
em 1973. No ano seguinte, a Justiça condenou Gregório Alvarez, que foi
um dos militares que presidiu a junta de comandantes no Uruguai, e o
ex-presidente do Partido Colorado, Juan Maria Bordaberry, por terem
violado a Constituição uruguaia. “Isto foi um avanço”, afirma Fabian.
Pressão da sociedade
Se o Brasil deseja avançar na investigação e punição de crimes e no
acesso à memória da ditadura militar, é preciso também que a causa tenha
maior participação da sociedade. “O sucesso ou fracasso das
políticas do governo dependerá fortemente da adesão social a esta
pauta”, reconhece um membro do governo, que também aponta que, em países
como Argentina e Chile, até agora, houve muito mais participação que no
Brasil.
Para Fabian Kovacic, a Argentina é o país onde a população está mais
conscientizada de que é necessário investigar os crimes da ditadura. “Me
parece que o trabalho dos organismos de direitos humanos criou certa
consciência social, que a sociedade já toma como necessário investigar”.
Fabian afirma que no Chile há a mesma consciência e um trabalho tão
forte dos movimentos de direitos humanos, como na Argentina. No país
andino, contudo, há uma divisão. “No Chile também há uma consciência
muito grande. O que passa é que a sociedade chilena está muito dividida.
É um assunto candente, mas há, digamos, um empate técnico”.
No Uruguai, segundo Fabian, os movimentos de defesa dos direitos
humanos conseguem mobilizar multidões em Montevidéu, mas isso não se
reflete ainda no todo. Nas últimas duas eleições presidenciais, os
uruguaios decidiram também se queriam anular a Ley de Caducidad. “Nas
duas votações não houve mais de 20% de adesão da população”.
Fabian cita como boa iniciativa para conscientizar a sociedade o
ensino nas escolas. “O tema da violação de direitos humanos foi incluído
nas escolas”, conta. O governo brasileiro tenta algo semelhante com o
programa “Direito à Memória e à Verdade”. Por meio dele, é oferecido
curso a professores de ensino médio da rede pública sobre a ditadura
militar. Que o futuro nos reserve um país em que os cidadãos se
interessem pela própria história.