quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Medicina social cubana...

Médicos do povo para o povo

Emir Sader

Há 10 anos que se estão formando as primeiras gerações de médicos de origem pobre na América Latina. Não estão sendo formados pelas excelentes universidades publicas latinoamericanas, que têm os melhores cursos tradicionais de medicina do continente. Nem falar das universidades privadas.
Eles estão sendo formados pelas Escolas Latinoamericanas de Medicina, projeto iniciado há 10 anos em Cuba e que agora já conta com uma Escola similar na Venezuela e tem projeto de ampliar-se para países como Bolívia e Equador. São selecionados estudantes por cotas de movimentos sociais-originários do movimento camponês, do movimento negro, do movimento sindical, do movimento indígena e de outros movimentos sociais -, se tornam alunos do melhor curso de medicina social do mundo e retornam a seus países para praticar os conhecimentos adquiridos não na medicina privada, mas na medicina social, pública, nos lugares que os nossos países mais precisam, sem contar normalmente com os médicos formados nas universidades tradicionais.
Cuba transformou uma antiga instalação militar - a Academia Naval Granma - em uma universidade médica latinoamericana, para que milhares de jovens privados de estudar medicina nos seus países, possam ter acesso a esse curso em Cuba e retornem a seus países para atender necessidades que não são contempladas pela medicina tradicional.
Além da melhor medicina social que se pode dispor hoje no mundo, os alunos recebem formação histórica sobre o nosso continente, respeitando-se as convicções - políticas, religiosas - de cada aluno. "Médicos dispostos a trabalharem onde for preciso, nos mais remotos cantos do mundo, onde outros não estão dispostos a ir. Esse é o médico que vai ser formar nesta Escola" - dizia Fidel na inauguração da Escola.
A primeira turma se formou em 2005. Formar um médico nos EUA custa não menos de 300 mil dólares. Cuba está formando atualmente mais de 12 mil médicos para países do Terceiro Mundo, em uma contribuição inestimável para os povos desses países. Mesmo passando dificuldades econômicas nas duas ultimas décadas, Cuba não diminuiu nenhuma vaga na Escola
Latinoamericana de Medicina - como, aliás, nenhuma vaga nas escolas cubanas, nem nenhum leito em hospital.
Desde a formação da primeira turma, em 2005, graduaram-se médicos de 45 países e de cerca de 84 povos originários. Formaram-se 1496 médicos em 2005, 1419 em 2006, 1545 em 2007, 1500 em 2008, 1296 em 2009. Os três países que tiveram mais médicos formados na Escola são Honduras, com 569, Guatemala, com 556 e Haiti, com 543. Atualmente mais de 2 mil
alunos estudam na Escola. A procedência social deles é em sua maioria operários e camponeses. As religiões predominantes são a católica e a evangélica.
A Escola em Cuba - em uma cidade contigua a Havana - é integrada por 28 edificações numa área de mais de um milhão de metros quadrados, onde os estudantes recebem o curso pré-medico e os dois primeiros anos do curso de medicina, de ciências básicas. Depois os alunos recebem o "ciclo clínico" nas 13 universidades médicas existentes em Cuba. O corpo geral de professores é de mais de 12 mil.
O Brasil também já conta com cinco gerações de médicos, formados na melhor medicina social, sem que possam exercer a profissão, propiciada pela generosidade de Cuba. Os Colégios Médicos tem conseguido bloquear esse beneficio extraordinário para o povo brasileiro, alegando que o currículo em que se formara, não corresponde exatamente ao das universidades brasileiras - uma forma corporativa de defender seus privilégios.
As nossas universidades públicas costumam ter as vagas ocupadas por alunos que se preparam muito melhor que a grande maioria, por dispor de recursos econômicos que lhes possibilitam ter formação muito superior às dos outros. Assim, em geral tem origem na classe média alta e na burguesia, que desfrutam da melhor formação que as universidades públicas possuem, gratuitamente, sem que a isso corresponda a contrapartida de exercer medicina social, nas regiões em que o país mais necessita.
Essas instituições corporativas não devem se preocupar, as centenas de médicos formados na Escola Latinoamericana de Medicina não abrirão consultórios nos Jardins de São Paulo, na zona sul do Rio ou em outras regiões ricas das capitais brasileiras. Eles irão fazer a medicina social que o Brasil precisa, atendendo a demandas que não são atendidas pelos médicos formados nas melhores universidades públicas brasileiras, mas que derivam seus conhecimentos para atender a clientelas privadas, em condições de pagar consultas e tratamentos caros.
As negociações para o reconhecimento dos diplomas dos jovens médicos solidários formados em Cuba estão em desenvolvimento, com apoio do governo brasileiro, mas ainda não chegaram a uma solução que permita o aporte dessas primeiras gerações de médicos brasileiros de origem popular.

O zapatismo e o multiculturalismo...

Os zapatistas e a ética da diferença 

Guga Dorea - Correio da Cidadania



"Contaram os mais velhos dos mais velhos que povoaram essas terras que os deuses maiores, os que nasceram o mundo, não pensavam todos da mesma maneira. Ou seja, não tinham o mesmo pensamento, cada um tinha o seu próprio pensamento e entre eles se respeitavam e escutavam (...). Dizem os mais velhos dos velhos que por isso o mundo saiu com muitas cores e formas" ¹
 
Esse comunicado, que faz parte de um diálogo do subcomandante Marcos com o lendário Velho Antônio², lança um dos pilares básicos do que venho tratando em artigos publicados pelo Correio da Cidadania nesse ano de 2009. Afinal de contas, o que é ser igual e diferente na sociedade contemporânea? Vejamos então o que esse diálogo tem a nos dizer:
 
"O Velho Antônio me disse que perguntou aos velhos mais velhos como fizeram os deuses primeiros para entrar em um acordo e conversar, se eram tão diferentes os pensamentos que sentiam (....). E então os deuses ficaram calados porque perceberam que, quando cada um dizia ‘os outros’, estava falando de ‘outros’ diferentes. (...). Assim, o primeiro acordo realizado pelos deuses mais primeiros foi reconhecer a diferença e aceitar a existência do outro".
 
O que é então, nesse contexto, aceitar a diferença no outro? Segundo o que nos tem trazido o subcomandante, não se trata de homogeneizar as relações humanas e muito menos de se fechar em guetos instransponíveis no qual o outro passa a não existir mais. Não é, portanto, que todos tenham a mesma cor e forma.
 
Para reconhecer e respeitar a existência do outro, nesse sentido, é preciso realmente escutar e tornar esse outro visível a nossos olhos, não mais o reconhecendo apenas quando suas palavras soam iguais às que "eu" quero ouvir. Não é produzir identidades fechadas, ávidas por criar estigmas a todo instante, escutando o outro somente para reafirmar superioridades frente aos negativamente rotulados como "diferentes".
 
Daí o subcomandante Marcos falar que resistir à homogeneidade não é sinônimo de fazer oposição a ela, passando a lutar para criar uma nova hegemonia dominante. A contribuição dos zapatistas, a meu ver, é justamente a de positivar as diferenças, mas não negativizando os supostos "iguais", aqueles que as estigmatizaram.
 
Ao perceber, reconhecer e respeitar a diferença existente no outro, descobrimos o que tem de diferente em nós mesmos, não mais estabelecendo hierarquias valorativas entre pessoas. Todos são diferentes e assim devem permanecer, mas sempre se diferenciando internamente a partir do encontro com o outro. É como já nos disse Paulo Freire: o eu é sempre o outro.
 
Pensando ainda no que o chamado filósofo da diferença, Gilles Deleuze, nos trouxe, não é mais pensar a diferença no outro e sim no que emerge de diferente em mim diante do que esse outro me revela. É o que Deleuze e também Guattari chamaram de devir outro em mim. Para o Velho Antônio, é no princípio da escuta que realmente conhecemos o outro e consequentemente a nós mesmos:
 
"Depois desse primeiro acordo a discussão continuou, porque uma coisa é reconhecer que existem outros diferentes e outra muito distinta é respeitá-los. (...). Depois todos se calaram, cada um falou de sua diferença e cada outro dos deuses, que escutava, percebeu que, escutando e conhecendo as diferenças do outro, mais e melhor conhecia a si mesmo no que tinha de diferente".
 
Segundo o subcomandante Marcos, nesse diálogo imaginário (ou não), o Velho Antônio saiu do local em que conversavam sem que ele percebesse. Quando notou a sua ausência, disse ele:
 
"O mar já está dormindo e do toquinho de vela resta apenas uma mancha disforme de parafina. Em cima, o céu começa a diluir sua negritude na luz da manhã ...."
 
Não querendo promover aqui nenhuma análise literária de mais esse poético comunicado, talvez seja possível afirmar que o subcomandante prefigurou o que seria um encontro entre dois fenômenos aparentemente distintos: uma espécie de dialética entre a noite e o dia. Realizando um paralelo, pode significar que em um possível encontro, entre formas de ser não hierarquizadas, cada pessoa pode embarcar em sua própria diferença interna, transformando o pressuposto homogeneizante no qual o que prevalece, nos relacionamentos humanos, são interesses individuais e egocêntricos.
 
Como pensar então em relações entre diferenças a partir de contextos em que o outro é invisível? Os zapatistas nos mostram justamente o contrário. Eles dão visibilidade ao outro quando lutam e desejam "um mundo onde caibam todos os mundos". Essa é uma metáfora, invocada a todo instante por eles, em que a diversidade é exaltada, ressaltada, aceita e, sobretudo, reconhecida, podendo nos remeter ainda a um debate filosófico dos mais prementes: o que vem a ser, enfim, a natureza humana? Os seres humanos nascem iguais ou diferentes?
 
Não há uma resposta verdadeira e muito menos científica para este dilema. No entanto, podemos resgatar o sociólogo Edgar Morin: somos iguais como seres humanos e diferentes em nossas singularidades. Nesse contexto, os zapatistas não caem na armadilha de um multiculturalismo em que as diferenças se fecham em si mesmas, não mais reconhecendo o outro em sua diferença não hierarquizada.
 
Os zapatistas não querem homogeneizar e muito menos serem homogeneizados. Eles não buscam, enfim, uma identidade fechada, na qual a presença do outro não faz a menor diferença. O outro, dos zapatistas, não são apenas os indígenas e sim todos aqueles que, por motivos culturais e históricos, não quiseram ou não se adaptaram ao modelo de vida imposto pelo processo "civilizatório" moderno. Nesse sentido, retomando o Velho Antônio,
 
"É bom que haja outros que sejam diferentes e que é preciso escutá-los para conhecer a si mesmo".
 
Notas:
 
¹ Ver "A História dos Outros", in Di Felice, Massimo & Munôz, Cristobal, "A Revolução Invencível: subcomandante Marcos e o Exército Zapatista de Libertação Nacional – Cartas e Comunicados", ed. Boitempo, São Paulo, 1998.
 
² O Velho Antônio foi um indígena mexicano que, através desses diálogos com o subcomandante Marcos, comunicou e divulgou a tradição de seus antepassados. Muitos desses diálogos podem ser interpretações ou mesmo criações do sub, mas o fato é que eles existiram.
 
Guga Dorea é jornalista e cientista político, atualmente integrante do Instituto Futuro Educação e pesquisador colaborador do Projeto Xojobil.

Dependência Congolesa...

Como os credores decidem o destino do Congo

por Renaud Vivien e Damien Millet [*]
Reunião do Clube de Paris. Os 19 países credores que constituem o Clube de Paris [1] reuniram-se a 18 de Novembro para examinar o caso da República Democrática do Congo (RDC), após dois relatórios ligados à revisão do muito controverso contrato chinês. Este contrato, que hipoteca gigantescas quantidades de minerais em proveito da China em troca da construção de infraestruturas na RDC, pôde finalmente ser revisto no sentido desejado pelos prestamistas de fundos ocidentais representados pelo FMI [2] . A seguir a isto, o assunto parecia resolvido: o Clube de Paris iria conceder as garantias financeiras pedidas pelo FMI para concluir um novo programa de três anos com o governo congolês daqui até o fim de 2009 e apagar no princípio de 2010 um parte importante da dívida externa pública. Longe disso! O Clube de Paris decidiu, por sua vez, "castigar" a RDC exigindo a manutenção de dois contratos leoninos assinados com transnacionais ocidentais.

O Clube de Paris prova mais uma vez que é uma instância governada pelo Norte na qual os países do Sul não desempenham senão um papel de figurante. Nenhum membro do governo congolês foi convidado às discussões efectuadas em Bercy, no Ministério francês das Finanças, ou tem sede o Clube de Paris. Este clube define-se como uma "não-instituição", não tendo personalidade jurídica. A vantagem é clara: o Clube de Paris não incorre em nenhuma responsabilidade quanto aos seus actos e não pode portanto ser processado na justiça uma vez que oficialmente não existe!

Contudo, as suas decisões têm consequências pesadas para as populações do Terceiro Mundo pois é no seu seio que é decido, em concerto com o FMI e o Banco Mundial, se um país endividado do Sul "merece" um reescalonamento ou um alívio da dívida. Quando ele dá sinal verde, o país em causa, sempre isolado face a esta frente unida de credores, deve aplicar as medidas neoliberais ditadas pelos prestamistas de fundos, cujos interesses confundem-se com o sector privado.

Hillary Clinton no Congo. A 18 de Novembro último, a vítima foi a RDC uma vez que o Clube de Paris decidiu ir além da simples revisão do contrato chinês exigida pelo FMI ingerindo-se ainda mais nos seus contratos mineiros, domínio que entretanto tem a ver com a soberania permanente da RDC, conforme do direito internacional e o artigo 9 da sua Constituição.

Oficialmente, é o risco do aumento da dívida congolesa, ligado à garantia de Estado inicialmente prevista no contrato chinês, que havia justificado a ingerência do FMI nos assuntos internos congoleses.

Mas na realidade, a RDC, a exemplo de outros países africanos cheios de recursos naturais, é o teatro de uma competição encarniçada entre os países ocidentais e a China, cujo apetite não cessa de crescer ao ponto de ser hoje o terceiro parceiro comercial para a África, após os Estados Unidos e a França. O Clube de Paris é portanto o instrumento que os países ocidentais têm utilizado, nomeadamente o Canadá e os Estados Unidos, para exigir do governo congolês que ele volte atrás na sua decisão de rescindir o contrato que deu origem ao consórcio Kingamyambo Musonoi Tailings (KMT) e revise a convenção criando a Tenke Fungurume Mining (TFM), nas quais os Estados Unidos e o Canadá têm interesses importantes.

Os prestamistas de fundos ocidentais aplicam a política do "dois pesos, duas medidas" conforme se trate de um contrato concluído com a China ou com uma empresa ocidental. Os interesses do sector privado prevalecem sobre as considerações de legalidade e de desenvolvimento uma vez que o carácter fraudulento destas duas convenções foi relatado pela Comissão de "revisitação" dos contratos mineiros, estabelecida na RDC em 2007 [3] . Os Estados do Norte servem-se do Clube de Paris e das instituições financeiras internacionais, onde estão sobre-representados, como um cavalo de Tróia para açambarcar os recursos nacionais do Sul.

Foi o trio infernal — Clube de Paris, FMI, Banco Mundial — que a partir de 2002 organizou o branqueamento da dívida odiosa da RDC reestruturando os atrasados deixados pelo ditador Mobutu. Tratava-se na época de emprestar dinheiro ao governo para apurar as velhas dívidas do ditador, permitir ao governo de transição endividar-se de novo mas impondo-lhe políticas anti-sociais, nomeadamente um novo Código Mineiro muito favorável às transnacionais.

Em 2009, a dívida continua a asfixiar o povo congolês cujos direitos humanos fundamentais são espezinhados para assegurar o reembolso do serviço da dívida. Apesar dos efeitos de anúncio dos credores que prometiam uma anulação da dívida congolesa, esta eleva-se hoje a 12,3 mil milhões de dólares, ou seja, o equivalente à soma reclamada à RDC no momento da morte de Laurent Désiré Kabila em 2001... Ora, esta dívida é o arquétipo de uma dívida odiosa, nula em direito internacional pois ela foi contratada por uma ditadura, sem benefício para a população e com a cumplicidade dos credores. O governo congolês poderia portanto repudiá-la, o que lhe permitiria além disso não aceitar os diktats do Clube de Paris.

Para o CADTM, a chantagem do Clube de Paris não é uma surpresa: esta instância ilegítima é, desde a sua criação, ao mesmo tempo juiz e parte. Ela deve portanto pura e simplesmente ser abolida, assim como a dívida da RDC.

Nesse meio tempo, o governo congolês deve suspender unilateralmente o pagamento desta dívida, a exemplo do Equador em Novembro de 2008 e da Argentina que em 2001 havia decretado a mais importante suspensão de pagamento da dívida externa da História, mais de 80 mil milhões de dólares, tanto em relação aos credores privados como em relação ao Clube de Paris, e isto sem que tivesse lugar represálias.

A crise económica necessita actos fortes e imediatos contra a dívida e em proveito dos povos. Para assim fazer, os países do Sul teriam todo o interesse em constituir uma frente unida pelo não pagamento da dívida.


  [1] Instituição informal que se reuniu pela primeira vez em 1956, composta hoje por 19 países: Alemanha, Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, Estados Unidos, Finlândia, França, Irlanda, Itália, Japão, Noruega, Países Baixos, Reino Unido, Rússia, Suécia e Suíça. Para uma análise pormenorizada, ler Damien Millet e Eric Toussaint, 60 Questions, 60 Réponses sur la dette, le FMI et la Banque mondiale , CADTM-Syllepse, 2008, p 21.
[2] "L'ingérence sournoise du FMI et de la Banque mondiale en République démocratique du Congo " , por Renaud Vivien, Yvonne Ngoyi, Victor Nzuzi, Dani Ndombele, José Mukadi et Luc Mukendi, Réseau Voltaire, 8 octobre 2009.
[3] "Au terme de la revisitation, Contrats miniers : 23 maintenus, 14 résiliés, 2 à finaliser" , Groupe @venir CD, 16 novembre 2009.


[*] Dirigentes do Comité pour l’annulation de la dette du tiers-monde ( CADTM )

O original encontra-se em http://www.voltairenet.org/article163150.html e em
http://www.cadtm.org/Comment-les-pays-creanciers


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Texto de José Arbex Jr....

A César o que é de César


Por José Arbex Jr, na novaE


Quando comecei a ler o já famoso texto de César Benjamin: “Os filhos do Brasil”, publicado pelo jornal Folha de S. Paulo em 27 de novembro, fiquei orgulhoso de ser da esquerda. E mais ainda: de ter compartilhado com o autor do texto alguns momentos emocionantes de nossa luta comum, como o final da marcha do MST para Brasília, em 1997, quando me encontrei pessoalmente com ele, pela primeira vez. Os parágrafos iniciais do texto são primorosos. Muito bem escritos, compõem uma narrativa densa, sedutora, que vai criando no leitor uma vontade de querer saber mais sobre uma história que nunca foi contada direito: a história da ditadura militar, dos porões, das torturas, das prisões, dos seres humanos condenados à ignomínia. Benjamin soube retratar com grande humanidade os seus companheiros temporários de cela. Resgatou-lhes a história, a identidade, a face profundamente humana.
Mas aí, veio a facada, o golpe inesperado, a decepção, a tristeza profunda. Benjamin relatou, no mesmo texto, uma conversa supostamente mantida com Luís Inácio Lula da Silva, em São Paulo, em 1994, durante a campanha à Presidência do Brasil. Lula teria “confessado”, então, entre amigos, que, na prisão, tentou seduzir, sem sucesso, um militante de uma organização de esquerda. Benjamin faz uma comparação entre o assédio descrito por Lula e o temor que ele mesmo, Benjamin, sentiu, quando preso, de ser “currado” por outros detentos.
Não entendi nada. Li de novo, reli, tentei buscar alguma ironia oculta, algo que justificasse, no plano do próprio texto, o absolutamente injustificável paralelo entre estupradores que pululam nas prisões brasileiras – em geral, seres humanos reduzidos a condições quase completamente animalescas pelo próprio sistema carcerário, e/ou por uma vida anterior mergulhada na mais profunda miséria econômica, ideológica e afetiva – e Lula, que não estuprou ninguém, mas que, supostamente, comentou ter sentido o desejo de manter relações sexuais com um companheiro de cela que não cedeu aos seus desejos. Não quis acreditar que alguém dotado com os recursos intelectuais de Benjamin, adquiridos ao longo de sua longa história de luta pela liberdade e pela dignidade humana, pudesse cair em um pântano tão sórdido e profundo. Mas não encontrei nada no texto de Benjamin que permitisse uma interpretação positiva. Ou melhor: encontrei “o” nada: o vazio absoluto; vazio de sentido, o vazio da total falta de perspectivas, o vazio de um rancor desmedido.
(Antes de prosseguir, esclareço logo: não sou e nunca fui “lulista”; não sou mais já fui petista; não simpatizo com a maioria das medidas de governo adotadas por Lula, e por isso sou totalmente favorável à crítica de esquerda ao seu governo. Mais precisamente, creio que Lula pode e deve ser criticado por aquilo que fez, mas acho muito estranho ele ser atacado por aquilo que NÃO praticou.)
Vamos agora considerar, por um segundo, que Lula realmente fez o que supostamente disse ter feito. Isto é, que em dado momento tentou seduzir – seduzir, note bem, não estuprar -- o colega de cela. E daí? O que se pode concluir disso? Qual seria, nesse caso, o crime de Lula? O exercício, o desejo da homossexualidade? Estaremos, então, diante de um texto homofóbico?
Ainda segundo o próprio Benjamin, como já observado, Lula teria comentado o caso numa roda de amigos. Estamos, então, diante de um gravíssimo precedente, aberto pelo próprio Benjamin. De hoje em diante, todos teremos que suspeitar dos nossos amigos, teremos que nos policiar para que nossas palavras não sejam, eventualmente, atiradas contra nós por algum “traíra”, algum “dedo duro”, algum “cagueta”, algum Judas, algum oportunista que resolva tirar proveito de uma situação de cumplicidade. Revivemos, então, a era da delação (Premiada? Que o prêmio, no caso, teria sido pago a Benjamin?), a era da intriga, da fofoca, da futrica, da artimanha, da safadeza. Que vergonha! (Isso tudo me faz lembrar a famosa oração de Marco Antônio, no brilhante texto de Shakespeare: “Poderoso César, terás então descido a tão baixo nível?”)
Benjamin utilizou a imprensa dos patrões para atacar um expoente do movimento de esquerda do Brasil. Claro, claro, claro: sempre se pode alegar que Lula não é de esquerda, como ele mesmo já disse e como eu, pessoalmente, avalio. Mas há um abismo entre considerações de caráter individual, feitas por indivíduos privados e isolados, ou mesmo por grupos e seitas, e a realidade política concreta, historicamente determinada pela luta de classes. No contexto brasileiro, em que as alternativas concretas ao governo Lula (e à sua imagem refratada Dilma Rousseff) são figuras sinistras como as de José Serra e Aécio Neves, Lula surge como um expoente à esquerda do espectro político, com algumas conseqüências importantes para a luta de classes na América Latina: por exemplo, a condução exemplar do governo brasileiro no caso de Honduras (embora feiamente chamuscada pelo desastre no Haiti), a recusa em avalizar o acordo das bases militares estadunidenses com a Colômbia e a denúncia permanente do bloqueio de Cuba. Para não mencionar o fato de que a figura de Lula, malgré lui même, inspira movimentos de resistência ao capital em todo o mundo. Disso não se conclui, automaticamente, que a esquerda deva, necessariamente, apoiar o governo Lula, ou mesmo apostar na eleição de Dilma. Ao contrário, deve aproveitar as contradições, os paradoxos e as ambigüidades para fortalecer o seu próprio campo. Mas Benjamin preferiu fortalecer as correntes representadas pelo jornal dos campos Elíseos.
Não por acaso, a Folha de S. Paulo cedeu o espaço todo pedido por Benjamin. Cederia mais, se necessário fosse. Benjamin conhece a teoria marxista e sabe, com Gramsci, que a mídia dos patrões é o verdadeiro organizador coletivo, é o grande partido do capital. Triste é o fato de ele ter arregaçado as mangas para trabalhar por tal partido. E pior: Benjamin sabe que o falso paralelo que tentou traçar entre os predadores das prisões da ditadura e o prisioneiro Lula seria muito mais verdadeiro se, no lugar de Lula, ele colocasse os donos dos jornais para os quais hoje escreve.
Todo o encanto produzido pelos primeiros parágrafos do texto de César Benjamin foi transformado em fel a partir do momento em que se instaurou a delação, o oportunismo, o absurdo. Lula não estuprou o seu companheiro de cela, mas Benjamin violentou, com alto grau de sadomasoquismo, a própria consciência e uma história repleta de glórias. Requiescate in pace