sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Desigualdade social e renda injusta


Frei Betto*
Escritor e assessor de movimentos sociais

Entre os 15 países mais desiguais do mundo, 10 se encontram na América Latina e Caribe. Atenção: não confundir desigualdade com pobreza. Desigualdade resulta da distribuição desproporcional da renda entre a população.
O mais desigual é a Bolívia, seguida de Camarões, Madagascar, África do Sul, Haiti, Tailândia, Brasil (7º lugar), Equador, Uganda, Colômbia, Paraguai, Honduras, Panamá, Chile e Guatemala.
A ONU reconhece que, nos últimos anos, houve redução da desigualdade no Brasil. Em nosso continente, os países com menos desigualdade social são Costa Rica, Argentina, Venezuela e Uruguai.
Na América Latina, a renda é demasiadamente concentrada em mãos de uma minoria da população, os mais ricos. São apontadas como principais causas a falta de acesso da população a serviços básicos, como transporte e saúde; os salários baixos; a estrutura fiscal injusta (os mais pobres pagam, proporcionalmente, mais impostos que os mais ricos); e a precariedade do sistema educacional.
No Brasil, o nível de escolaridade dos pais influencia em 55% o nível educacional a ser atingido pelos filhos. Numa casa sem livros, por exemplo, o hábito de leitura dos filhos tende a ser inferior ao da família que possui biblioteca.
Na América Latina, a desigualdade é agravada pelas discriminações racial e sexual. Mulheres negras e indígenas são, em geral, mais pobres. O número de pessoas obrigadas a sobreviver com menos de um dólar por dia é duas vezes maior entre a população indígena e negra, comparada à branca. E as mulheres recebem menor salário que os homens ao desempenhar o mesmo tipo de trabalho, além de trabalharem mais horas e se dedicarem mais à economia informal.
Graças à ascensão de governos democráticos-populares, nos últimos anos o gasto público com políticas sociais atingiu, em geral, 5% do PIB dos 18 países do continente. De 2001 a 2007, o gasto social por habitante aumentou 30%.
Hoje, no Brasil, 20% da rendas das famílias provêm de programas de transferência de renda do poder público, como aposentadorias, Bolsa Família e assistência social. Segundo o IPEA, em 1988 essas transferências representavam 8,1% da renda familiar per capita. De lá para cá, graças aos programas sociais do governo, 21,8 milhões de pessoas deixaram a pobreza extrema.
Essa política de transferência de renda tem compensado as perdas sofridas pela população nas décadas de 1980-1990, quando os salários foram deteriorados pela inflação e o desemprego. Em 1978, apenas 8,3% das famílias brasileiras recebiam recursos governamentais. Em 2008, o índice subiu para 58,3%.
A transferência de recursos do governo à população não ocorre apenas nos estados mais pobres. O Rio de Janeiro ocupa o quarto lugar entre os beneficiários (25,5% das famílias), antecedido por Piauí (31,2%), Paraíba (27,5%) e Pernambuco (25,7%). Isso se explica pelo fato de o estado fluminense abrigar um grande número de idosos, superior à media nacional, e que dependem de aposentadorias pagas pelos cofres públicos.
Hoje, em todo o Brasil, 82 milhões de pessoas recebem aposentadorias do poder público. Aparentemente, o Brasil é verdadeira mãe para os aposentados. Só na aparência. A Pesquisa de Orçamentos Familiares do IBGE demonstra que, para os servidores públicos mais ricos (com renda mensal familiar superior a R$ 10.375), as aposentadorias representam 9% dos ganhos mensais. Para as famílias mais pobres, com renda de até R$ 830, o peso de aposentadorias e pensões da previdência pública é de apenas 0,9%.
No caso do INSS, as aposentadorias e pensões representam 15,5% dos rendimentos totais de famílias que recebem, por mês, até R$ 830. Três vezes mais que o grupo dos mais ricos (ganhos acima de R$ 10.375), cuja participação é de 5%.
O vilão do sistema previdenciário brasileiro encontra-se no que é pago a servidores públicos, em especial do Judiciário, do Legislativo e das Forças Armadas, cujos militares de alta patente ainda gozam do absurdo privilégio de poder transferir, como herança, o benefício a filhas solteiras.
Para Marcelo Neri, do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas, no Brasil "o Estado joga dinheiro pelo helicóptero. Mas na hora de abrir as portas para os pobres, joga moedas. Na hora de abrir as portas para os ricos, joga notas de cem reais. É quase uma bolsa para as classes A e B, que têm 18,9% de suas rendas vindo das aposentadorias. O pobre que precisa é que deveria receber mais do governo. Pelo atual sistema previdenciário, replicamos a desigualdade.”
A esperança é que a presidente Dilma Rousseff promova reformas estruturais, incluída a da Previdência, desonerando 80% da população (os mais pobres) e onerando os 20% mais ricos, que concentram em suas mãos cerca de 65% da riqueza nacional.
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Artigo 2:
Os sonhos de Kepler
No século XX, o ser humano conquistou o "impossível". Sabemos voar como os pássaros, navegar sob as águas como os peixes, correr mais rápido do que os coelhos e somos capazes de nos comunicar a distâncias outrora inimagináveis. Somos a geração automotiva. O relógio mede cada segundo do nosso tempo, cavalos e carruagens cederam lugar a carros e aviões, trovadores invisíveis cantam através de nosso equipamento de som, arautos sem rosto divulgam os fatos pelo rádio, o circo e o teatro irrompem em nossa sala nas dimensões de uma pequena tela eletrônica.
Melhor do que dividir a história em antiga, medieval, moderna e contemporânea, é distingui-la pelas eras agrícola, que durou 10.000 anos; industrial, nos últimos 100 anos; e, agora, cibernética. Johannes Kepler, nascido na Alemanha em 1571, atraído pelo faro estético dos gregos -que acreditavam ter o Universo uma natural simetria- descobriu a arquitetura do sistema solar e levou quatro anos para calcular a órbita de Marte, uma elipse perfeita. Com um computador, bastariam quatro segundos.
Kepler, que escreveu um livro intitulado O Sonho, teria invejado a nossa geração se imaginasse quanto tempo poderíamos poupar. Daria asas à imaginação, sonhando em fazer tudo aquilo que o trabalho exaustivo não lhe permitia: desfrutar da vida campestre, perder tempo com os amigos, ficar na igreja ouvindo o som inebriante do órgão, contemplar o céu noturno para captar a música das estrelas. O que ele jamais poderia supor é que, com tanta tecnologia, a nossa geração dispõe cada vez mais de menos tempo.
Somos incorrigivelmente vorazes. Queremos processar o máximo de informações no mínimo de tempo. Desafiamos, a cada momento, as barreiras do espaço. Ansiamos por estar lá -não no caminho- e, por isso, afundamos o pé no acelerador do carro possante e afugentamos os pedestres, disputando com o motorista ao lado um palmo de asfalto, como se à frente não houvesse sinais vermelhos contrários à nossa sofreguidão. Reduzimos as distâncias com telefones celulares e operações digitais no computador.
Ainda que no trânsito ou no aeroporto, no trabalho ou no clube, a "coleira eletrônica" impede que nos percam de vista. Entre uma marcha e outra, uma flexão abdominal e outra, uma decisão e outra no trabalho, controlamos os filhos, as aplicações financeiras, os negócios geograficamente distantes. Como Prometeu, queremos arrebatar o fogo dos deuses, fazendo de conta que não somos frágeis e mortais.
Porque precisava pensar, Kant nunca saiu de Königsberg, onde construiu uma obra filosófica monumental. Ora, para que livros se há milhares de vídeos interessantes? Basta saber que o patrimônio cultural da humanidade se encontra armazenado nas bibliotecas. Relaxados, passamos horas, dias, meses e anos de nossas vidas vendo um punhado de homens correrem atrás de uma bola e carros velozes desafiando as curvas da morte. Nossos heróis estão distantes da arte musical de Mozart, da física de Planck ou da literatura de Machado de Assis. Veneramos aqueles que quebram limites. O Evangelho da "pós-modernidade" são os índices do mercado financeiro. A Bíblia, o Guiness Book of the Records. Pelé fez 1.000 gols. Michael Jackson coloriu de branco sua pele negra. Ayrton Senna andou mais depressa grudado ao solo que qualquer outro mamífero.
Só não descobrimos o elixir da felicidade. Por que nenhuma empresa vende o que mais procuramos? Ora, talvez possamos deixar de pagar, com o sacrifício da própria vida, o preço letal dessa busca, se abraçarmos os sonhos de Kepler: a vida campestre, a roda de amigos, o coro de anjos numa igreja e a melodia das estrelas.

[Frei Betto é escritor, autor do romance "Um homem chamado Jesus” (Rocco), entre outros livros. www.freibetto.org - twitter:@freibetto