A cidade é conhecida pela sua divisão em zonas
militarizadas, em que há muitas famílias israelenses vivendo sob
segurança de soldados israelenses em condomínios bastante destoantes em
pleno território palestino
Moara Crivelente no BRASIL DE FATO
Andar
pelas ruas de Hebron, na Cisjordânia, é tirar uma foto do conflito
Israelo-Palestino. Tudo o que uma pessoa interessada pelo assunto lê nos
relatórios das organizações internacionais e das ONGs de defesa dos
direitos humanos ou em notícias um pouco mais dedicadas, está lá. E no
caminho até lá.
Desde a turística e belíssima
Jerusalém antiga, saindo de seu portão Damasco – assim chamado por ser
voltado a esta cidade, segundo uns, ou por ter sido construído por
pessoas que vieram de lá, segundo outros – e caminhando pelas ruas
comerciais ocupadas por bazares, é possível pegar um ônibus até Belém,
que já fica em território palestino. Fui acompanhada até a rodoviária
pela Hibah, a moça palestina que conheci no hotel. Me guiou pelas ruas
labirínticas dentro da cidade antiga de Jerusalém, até o portão de
Damasco, passando por muitos bazares, ou mercados de rua.
Para
chegar a Belém é necessário passar por um dos postos de controle
israelenses – os famosos check points – chamado 300. Na ida, as pistas
que se tem sobre isso são os muros, as torres de vigilância e os
soldados armados, pois não foi necessário parar. Chegando em Belém, o
ônibus me deixa em uma das ruas do centro e ali procuro pelo ônibus que
me levará até Hebron. Finalmente estou na Palestina, e ver as bandeiras
erguidas em muitas esquinas é bastante especial. Recebo uma SMS no
celular, me dando as boas vindas a este país diferente, como quando se
entra em qualquer outro território nacional decentemente reconhecido.
Em
Hebron, porém, a experiência se torna um tanto mais intensa. A cidade é
conhecida pela sua divisão em zonas militarizadas, em que há muitas
famílias israelenses vivendo sob segurança de soldados israelenses em
condomínios bastante destoantes, assentamentos, em pleno território
palestino. Outra vez, nenhuma novidade. Caminhar até a Mesquita de
Ibrahim – ou Abraão – e ser questionada pelo soldado israelense no posto
de controle sobre a minha religião, sim, foi uma novidade. Vê-los
entrar pelas escadas que levam à Mesquita com os seus M-16 em punho,
sim, foi uma novidade, algo que um muçulmano não deve apreciar.
Nas
ruas do mercado antigo praticamente abandonado, conheci um guia
palestino, empenhado em mostrar aos “turistas ativistas” a realidade em
que ele vive. Pensei nessa nova modalidade de turismo a ser criada – ou
nomeada, uma vez que já existe: o turismo ativista. Com todo o cinismo
de alguém realmente impotente, ouvi dele e de outros palestinos com quem
conversei todas as críticas, importâncias e ênfases que os ativistas
preocupados com a situação dos palestinos dão às diferentes camadas
dessa realidade política tão violenta.
O que
realmente me despertou esse pensamento foi quando um dos vendedores das
poucas lojas abertas me explicou e quase me deu um certificado da
produção local dos lenços palestinos que eu estava comprando. “É
realmente feito aqui, é produção local, originalmente palestina, não é
made in China, nem em Israel”, dizia o senhor enquanto contava os meus
shekels, a moeda israelense. Sou muito familiarizada com a iniciativa
política bastante interessante de Boicote, Desinvestimento e Sanções
(BDS) em que muitos palestinos e, outra vez, ativistas internacionais,
estão se empenhando. Assim mesmo, ainda admirando a iniciativa – e
tomando parte nela – não pude deixar de me sentir um pouco ridícula
quando conversando com esses senhores nas lojas.
Jamal,
o guia palestino que me encontrou no bazar, me convenceu a segui-lo em
um tour pela desgraça palestina. Eu estava em Hebron justamente por ler
sobre a representatividade tão gráfica que esse lugar tem sobre a
situação. Começamos pelo próprio bazar, seguindo pelas ruas da cidade
antiga de Hebron, e ele me levou pra ver as pracinhas de uns quatro
metros quadrados feitas entre os túneis-ruelas em que estão muitas
casas. Me mostrou alguns tijolos novos em ruas que cheiravam a esgoto,
em que as crianças brincavam. Acompanhando esses novos tijolos e
pracinhas se podem ver placas já gastas de países como Alemanha, Espanha
e, claro, Estados Unidos – através da sua USAID – assinando a autoria
da beneficência, da chamada cooperação internacional.
Depois
disso, passamos por um dos postos de controle israelenses para chegar
ao próximo bairro, entregando as nossas mochilas para serem revisadas e
passando por detectores de metais. Entraríamos em um território misto,
onde havia muitas famílias israelenses. Passaríamos de forma mais
rápida, se os soldados fossem experientes e maduros, ou menos rápida se
fossem mais jovens que eu, com seus 18 a 21 anos, e estivessem flertando
entre eles, com as suas armas a tira-colo. Também as soldados-Barbie,
com seus longos cabelos loiros e óculos de sol, fazem parte da trupe que
controla a vida dos palestinos em filas, esperando para passar de uma
rua a outra, até as 21h – quando os postos são fechados.
Depois
disso, passamos pela rua literalmente dividida no meio, que leva a um
terraço panorâmico. Jamal me explica que temos que andar do lado
direito, pois estou com ele, que é palestino. Os judeus andam do outro
lado, e os carros têm que fazer alguma manobra especial um tanto
confusa. Algum momento depois, entramos em outra rua emblemática, em que
um mercado tradicional palestino subsiste com poucas lojas abertas –
segundo Jamal, há mais de 1000 lojas por essas ruas, mas apenas 100
funcionam, já que os comerciantes locais tiveram que deixarem a cidade.
Nesta
rua, as lojas são protegidas por redes metálicas acima, como uma rua
com teto. O motivo são os israelenses, que vivem nas casas de cima, nos
prédios, e que costumam jogar lixo e pedras contra o comércio palestino.
Por outro lado, as suas janelas, assim como as palestinas, são
protegidas por grades ou simplesmente fechadas, pelo constante arremesso
de pedras, uns contra as casas dos outros.
Seguindo
adiante, a Rua Al-Shuhada, ou Rua do Mártir, é conhecida como “rua
fantasma”. As casas e os comércios dessa bela rua, apesar de bem
construídos, estão totalmente vazios e, em muitos casos, depredados. Os
portões das lojas estão chumbados e as janelas das casas, destruídas.
São por volta de 50 prédios abandonados só na cidade velha, pela
violência entre israelenses e palestinos, pelos excessivos postos de
controle e pela presença militar israelense. De fato, no final da mesma
rua, passamos por outro posto de controle para entrar em um assentamento
israelense, de decentes prédios residenciais, escola e sinagoga.
Há
vários assentamentos como este em toda Hebron. Segundo Jamal, perto de
sua casa, atrás da Mesquita de Ibrahim, moram ao redor de 400
israelenses. Em outros, espalhados pela cidade, moram várias famílias.
São eles: Beit Hadassa, Beit Rumanu, Tal Irmida e Abraham Avinu, com
mais ou menos 20 famílias cada. Do topo do terraço panorâmico em que ele
leva muitos turistas-ativistas se podem ver bandeiras israelenses
pintadas em caixas d’água ou nos topos dos prédios, tudo disposto
estrategicamente dentro do campo de visão das três torres de controle
militar, instaladas nas colinas de Hebron. Dali Jamal me mostra também a
escola construída pela Agência da ONU para os Refugiados Palestinos
(UNRWA, em inglês), em meio às ruas vazias e aos postos de controle
militar.
A sensação de insegurança, segundo
Jamal, é constante. A presença militar israelense, os assentamentos e os
comércios abandonados, além dos postos de controle e da má relação com
os vizinhos judeus são fatores cotidianos que aumentam a tensão, para
não falar da realidade de viver literalmente sob ocupação. As forças
policiais da Autoridade Palestina não podem carregar armas nessas
regiões, por exemplo, mas a insatisfação com a instituição instaura o
cinismo na voz dos palestinos a quem pareço estar lembrando que ela
existe. Os Acordos de Oslo, assinados no começo dos anos 1990, supunham a
restauração da autoridade palestina na região, mas Hebron foi um caso
particular.
Com o Acordo de Hebron, a cidade foi
dividida em regiões: H1, sob autoridade palestina, em que os judeus não
podem entrar; e H2, que era ainda habitada por mais de 30.000 palestinos
e ficou sob controle militar israelense, com severas restrições de
movimento, vários postos de controle, fechamento de comércios e toques
de recolher para os palestinos. O motivo alegado é o de que lá vivem
também centenas de judeus, devido a uma ligação religiosa com o local, e
os palestinos não podem se aproximar das áreas em que vivem os judeus
sem permissão das Forças de Defesa de Israel (IDF).
Jamal
conta que a cada 3 meses as forças israelenses entram em sua casa e
reviram até o seu quarto, numa programação constante de controle. À
volta da casa dele há, pelo menos, 10 prédios abandonados, em que antes
viviam palestinos. A ONU, em alguns momentos, tentou remediar a
situação, num esforço por desacelerar o abandono da região e dos
comércios, mas a situação de insegurança física, social e econômica não
permite que uma vida normal e decente seja parte da realidade palestina
em Hebron. Às sextas-feiras muitos muçulmanos voltam à cidade para rezar
na Mesquita de Ibrahim, mas deixam a região em seguida.
A
volta de Belém para Jerusalém é diferente. É necessário parar no posto
de controle 300, fazer uma fila, ser questionado e revistado pelos
soldados, no caso dos palestinos. Como sou estrangeira, o motorista me
pediu para ficar no ônibus; os soldados subiram, me perguntam sobre o
motivo da minha visita ao território palestino, os nomes das pessoas que
lá conheço e checaram o meu passaporte. No caso de outro posto de
controle, tive que descer do ônibus, entrar na fila, responder aos
soldados as mesmas perguntas e também sobre os nomes próprios dos meus
pais, para que introduzissem o meu passaporte no sistema de segurança,
digitalizando-o, e olhassem a minha mochila. Este é Calândia, um dos
postos de controle mais conturbados entre Ramallah e Jerusalém. Mas essa
é uma outra história.
Moara
Crivelente é cientista política está terminando o Mestrado em
Comunicação dos Conflitos Internacionais Armados e Sociais na
Universidade Autônoma de Barcelona.