sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

O Projecto para Redefinir o Islão: A Turquia como o Novo Modelo e “Islão Calvinista”


Mahdi Darius Nazemroaya*
O projecto de manipular e redefinir o Islão visa subordiná-lo aos interesses da Ordem Mundial capitalista dominante através de uma nova onda de “islamismo político”. Uma nova corrente do Islão está se moldando no que vem a ser chamado de “Islão Calvinista” ou uma “Versão Muçulmana da Ética Protestante do Trabalho”.
Este “Islão Calvinista” também não tem problemas com o “reba” ou sistema de juros, que é proibido pelo Islão E é este sistema que é utilizado para escravizar os indivíduos e sociedades com as correntes do débito ao capitalismo global. E é neste contexto que o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD) está clamando por supostas “reformas democráticas” no Mundo Árabe.


Como Washington e seu bando marcham para o Coração da Eurásia, eles têm tentado manipular o Islão como uma Ferramenta Geopolítica. Têm criado um caos político e social no processo. No decorrer do caminho têm tentado redefinir o Islão e subordiná-lo aos interesses do capital global inaugurando uma nova geração que se diz islâmica, em sua maioria, entre os próprios árabes.
A Turquia em sua presente forma é apresentada como um modelo democrático a ser seguido pelas massas árabes rebeldes. É verdade que Ancara tem progredido se compararmos aos dias em que os Curdos eram proibidos de falar em público, mas a Turquia não é uma democracia funcional, ela se parece muito mais com uma cleptocracia com tendências fascistas.
Os militares continuam desempenhando um papel importante nos negócios governamentais e de Estado. O termo “Estado profundo” que denota um Estado dirigido secretamente do topo para baixo por incontáveis pessoas e organizações, de facto, se originou na Turquia. Os direitos civis continuam a ser desrespeitados na Turquia e os candidatos a cargos públicos precisam passar por aprovação do aparato estatal e do grupo que o controla, o que serve para tentar filtrar qualquer um que queira ir contra o status quo na Turquia.
A Turquia não tem sido apresentada como um modelo democrático para os árabes por suas qualidades. Ela é apresentada como um modelo político para os árabes por causa do seu projecto político e socioeconómico “bida” (inovação) que envolve a manipulação do Islão.
Embora seja muito popular, a Justiça Turca e o Partido do Desenvolvimento ou JDO (Adalet ve Kalkinma ou AKP) chegou ao poder em 2002 sem nenhuma oposição dos militares turcos e das cortes turcas. Antes deste partido chegar ao poder a tolerância dos militares ao Islão político era muito baixa. O JDP/AKP foi fundado em 2001 e o tempo de sua fundação e sua vitória eleitoral em 2002 também estão amarrados ao objetivo de redesenhar o Sudoeste da Ásia e o Norte da África.
Este projecto de manipular e redefinir o Islão visa subordinar o Islão aos interesses da dominante Ordem Mundial capitalista através de uma nova onda de “islamismo político” assim como o JDP/AKP. Uma nova corrente do Islão está se moldando no que vem a ser chamado de “Islão Calvinista” ou uma “Versão Muçulmana da Ética Protestante do Trabalho”. É este modelo que agora é alimentado na Turquia e que estão apresentando ao Egipto e aos árabes por Washington e Bruxelas.
Este “Islão Calvinista” também não tem problemas com o “reba” ou sistema de juros, que é proibido pelo Islão E é este sistema que é utilizado para escravizar os indivíduos e sociedades com as correntes do débito ao capitalismo global. E é neste contexto que o Banco Europeu de Reconstrução e Desenvolvimento (EBRD) está clamando pelas supostas “reformas democráticas” no Mundo Árabe.
As famílias dominantes da Arábia Saudita e os Sheiks Árabes do Petróleo também são parceiros na escravização do Mundo Árabe através do débito. A este respeito o Qatar e os sheikados árabes do Golfo Pérsico estão em um processo de criação de um Banco de Desenvolvimento do Oriente Médio, banco que pretende dar empréstimos aos países Árabes para apoiar sua “transição para a democracia”. A missão de promoção da democracia do Banco de Desenvolvimento do Oriente Médio é um tanto quanto irónica, pois os países que o formam são todos ditaduras convictas.
É esta subordinação do Islão ao capitalismo global que tem causado os atritos internos no Irão.
Abrindo a Porta para uma Nova Geração de Islâmicos
A esperança em Washington é a de que o “Islão Calvinista” se enraíze através de uma nova geração de islâmicos sob a bandeira dos novos Estados democráticos. Estes governos irão efectivamente escravizar os seus países colocando-os mais endividados e vendendo activos nacionais.
Tel-Aviv também irá possuir uma larga influência entre esses novos Estados. De braços dados com esse projecto, diferentes formas de nacionalismo etnolinguísticos e intolerância religiosa também vem sendo promovidos para dividir a região. A Turquia também desempenha um importante papel, pois é um dos berços para essa nova geração de Islâmicos. A Arábia Saudita também desempenha seu papel apoiando a ala militante desses Islâmicos.
A Reestruturação de Washington no Tabuleiro Geoestratégico
Ter com objetivos o Irão e a Síria também faz parte desta ampla estratégia de controlar a Eurásia. Os interesses chineses têm sido atacados em todos os locais do mapa global. O Sudão foi balcanizado, e tanto o Sudão Norte quanto o Sudão Sul estão caminhando para o conflito. A Líbia foi atacada e está em vias de ser balcanizada. Estão pressionando a Síria para que esta se renda e entre na linha. Os EUA e a Inglaterra estão integrando seus conselhos de segurança de modo comparável com os corpos Anglo-Americanos da Segunda Guerra Mundial.
O acto de focar o Paquistão também está ligado à neutralização do Irão e ao ataque aos interesses chineses e qualquer futura união na Eurásia. Acerca disso, os EUA e a OTAN têm militarizado as águas ao redor do Iémen. Ao mesmo tempo, na Europa Oriental, os EUA estão construindo fortificações na Polónia, na Bulgária e na Roménia, visando neutralizar a Rússia e os países da antiga União Soviética. Bielorrússia e Ucrânia também foram postos sob pressão. Todos esses passos são parte de uma estratégia que visa sitiar a Eurásia e também controlar os recursos energéticos ou a afluência energética para a China. Da mesma forma, Cuba e Venezuela estão sob crescente ameaça. O laço militar está sendo apertado globalmente por Washington. O Pentágono, a OTAN e Israel podem ainda seleccionar algum destes novos governos para justificar novas guerras. Parece que os novos partidos islâmicos estão sendo formados e preparados pelos al-Sauds, com a ajuda da Turquia, para tomar o poder das capitais árabes.
É preciso mencionar que Norman Podhoretz, um membro original do Project for a New American Century (PNAC) sugeriu em 2008 um cenário futuro apocalíptico em que Israel lança uma guerra nuclear contra o Irão, a Síria e o Egipto entre outros países vizinhos. Isto pode incluir o Líbano e a Jordânia. Podhoretz descreveu uma Israel expansionista e também sugeriu que os israelenses poderiam ocupar militarmente as regiões petrolíferas do Golfo Pérsico.
O que por outro lado veio como singular em 2008 foi a sugestão de Podhoretz, que foi influenciada pela análise estratégica do Center for Strategic and International Studies (CSIS), de que Tel Aviv poderia lançar um ataque nuclear contra os seus leais aliados egípcios no poder em Cairo sob o Presidente Mubarak. Apesar do facto do antigo regime ainda persistir, não é mais Mubarak quem está no poder. Os militares egípcios continuam dando ordens, mas os islâmicos podem chegar ao poder. Isto está ocorrendo apesar do facto de o Islão continuar a ser demonizado pelos EUA e pela maioria dos aliados da OTAN.
Futuro Desconhecido: O que vem depois?
Os Estados Unidos, a União Europeia e Israel estão tentando utilizar os protestos no Mundo Turco-Arábico-Iraniano para promover os seus próprios objectivos, incluindo a guerra na Líbia e o apoio à insurreição Islâmica na Síria. Juntamente com os al-Sauds, eles estão tentando difundir a “fitna” ou a divisão entre os povos do Sudoeste da Ásia e os do Norte da África. A estratégia Khaligi-Israelense, formada por Tel Aviv e as famílias árabes dominantes no Golfo Pérsico, é crucial para isso.
No Egipto, as revoltas sociais estão longe de terminar e as pessoas estão se tornando mais radicais. Isto está resultando em concessões por parte da Junta Militar no Cairo. Os movimentos de protesto estão agora direcionando as críticas ao relacionamento entre a Junta Militar e Israel. Na Tunísia, os movimentos sociais também estão caminhando para a radicalização.
Washington e seu bando estão brincando com fogo. Eles podem pensar que este período de caos lhes apresente uma óptima oportunidade para confrontar o Irão e a Síria. A confusão que vem se estabelecendo no mundo Turco-Árabe-Iraniano terá resultados imprevisíveis. A resistência popular no Bahrein e no Iémen às ameaças de crescimento da violência infligida pelo Estado indicam que a articulação dos movimentos de protesto anti-EUA e anti-Sionista está mais coesa.

*Mahdi Darius Nazemroaya é especialista em Oriente Médio e Ásia Central. É Investigador Associado no Centre for Research on Globalization (CRG).
 
Traduzido para Diário Liberdade por E. R. Saracino.
 
O original encontra-se em (Global Research, 10 de Julho de 2011): The Powers of Manipulation: Islam as a Geopolitical Tool to Control the Middle East

Mato Grosso do Sul assumiu “luta anti-indígena” como política de Estado

 Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA

Na madrugada de 18 de novembro, o Brasil voltou a registrar novos e vergonhosos fatos relativos ao secular genocídio de povos indígenas, desta vez capitaneados pelo agronegócio e pela inoperância do governo federal. O cacique kaiowá guarani Nísio Gomes foi a vítima, executado covardemente dentro do acampamento Tekoha Guayviri, um dos 30 que os guarani mantêm mobilizados em beiras de estradas e portas de fazenda, à espera do sonhado retorno às terras originárias.

O mesmo processo de massacre ocorre com as tribos do Xingu que serão afetadas pela construção de Belo Monte, com quem a presidente Dilma se recusa a qualquer diálogo. Num contexto de radicalização da expansão capitalista no território brasileiro, com apoio e financiamento público, a causa indígena ganha contornos ainda mais dramáticos, uma vez que seus direitos são esmagados de forma escancarada.


Diante do quadro desesperador dos índios guarani, o Correio da Cidadania entrevistou o antropólogo Egon Heck, do Conselho IndigenistaMissionário no estado do Mato Grosso do Sul - local onde o racismo e a intolerância à diversidade se tornaram políticas de Estado, com aparelhamento do judiciário, cooptação da mídia, sempre a serviço do poder econômico, e uso simultâneo e mal disfarçado de forças de segurança públicas e privadas contra os indígenas.


Além de denunciar o mencionado processo de genocídio deliberado dos povos indígenas, Egon cobra ações efetivas do governo federal, único ente capaz de fazer a lei chegar onde a pistola e o dinheiro ainda são os determinantes dos rumos da vida. Com um agronegócio ávido por terras e pelas riquezas do Aqüífero Guarani (cada vez mais contaminado), ele afirma que estamos chegando a uma situação-limite, na qual, de um lado, os povos indígenas buscam o retorno imediato às terras originárias e, do outro, o agronegócio põe em prática ofensiva para dizimar tais povos, passando por cima de todas as leis e direitos humanos que conhecemos.


A entrevista completa pode ser lida a seguir.


Correio da Cidadania: Como você poderia descrever a situação do povo guarani nos últimos meses no Mato Grosso do Sul, agora agravada com o assassinato do cacique Nísio e o desaparecimento de outros dois índios?

Egon Heck: O que a gente percebe é, na verdade, uma prática articulada pelo poder econômico e político no Mato Grosso do Sul, baseada fundamentalmente na produção exportadora e na monocultura da soja, além da agroindústria da cana, que está se agravando em níveis extremamente perigosos e absurdos, pois há em curso uma possibilidade mais ou menos próxima de definição das terras indígenas. E o MS é o estado que menos demarcou terras indígenas, que conseguiu impedir por mais tempo esse cumprimento constitucional, haja vista que 90% delas ainda terão de ser homologadas. E as restantes ainda estão em processos de regularização, na maioria dos casos, paralisados por ações judiciais.

Portanto, temos uma situação muito preocupante do ponto de vista da regularização das terras indígenas, um poder econômico e político muito articulado contra os direitos dos povos indígenas, com opções claras colocadas em prática em sua atuação contra os povos indígenas e os movimentos sociais.

No caso concreto, existe uma avaliação dos setores anti-indígenas de que não se deve mais esperar pela justiça. Qualquer movimentação dos índios deve ser rechaçada imediatamente, através de paramilitares, milícias armadas, pistoleiros dos fazendeiros e todo o poder econômico. Isso por um lado. Como dizem, a justiça demora muito, porque, se se entra com ação de reintegração de posse, esta poderá ser questionada, depois terá de ser acatada ou não pela justiça, e, se acatada, pode ter a execução demorada... Diante disso, eles parecem colocar em prática a estratégia dos caminhos do poder bruto, da violência e da força, passando ao largo de qualquer legalidade.

De outro lado, temos as comunidades indígenas que estão no limite mesmo de espera de promessas, enganações, prazos, que já foram inúmeros, mas nunca cumpridos em favor das comunidades indígenas. Recentemente, foi assinado um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta), uma tentativa extrema de obrigar o governo brasileiro a cumprir sua obrigação de demarcar as terras. Mas já era pra terem publicado os relatórios antropológicos das terras e ainda não o fizeram.

Assim, os índios se perguntam: “vamos aguardar o que, até quando, de que forma?”. Praticamente, como última alternativa, viabilizada pelos mais de 30 acampamentos indígenas no estado, resta a pressão sobre o governo federal pra demarcar as terras indígenas. E a única forma de pressão que tem surtido algum efeito em favor dos índios é o retorno às terras. E aí vemos armados os conflitos, em proporções que exigem uma atitude, pois poderão ceifar inúmeras vidas. De um lado, está o fim da paciência; de outro, está a firme decisão de impedir os índios de retornar às suas terras.

Correio da Cidadania: O que esta situação revela das políticas de governo, do poder judiciário, da sociedade e da mídia do estado do Mato Grosso do Sul e sua relação com os povos originários?

Egon Heck: Lamentavelmente, vivemos uma situação que vem historicamente se aprofundando, de negação de direitos ao diferente, à alteridade, principalmente aqui no MS, e isso vem se tornando evidente, vem sendo reforçado pelos meios de comunicação regionais.

Para se ter idéia, desde 2008, quando se assinou o TAC, vimos uma enorme campanha anti-indígena durante os anos que passaram, veiculada e financiada até pelo governo do estado. Repassava recursos aos municípios para ter assessorias jurídicas contra a demarcação de terras. Fez grandes campanhas de imprensa, em outdoors, veiculando intencionalmente mentiras muito óbvias, do tipo que o “estado seria inviabilizado se as terras fossem demarcadas”, “os povos estariam reivindicando 12 milhões de hectares das terras mais férteis do estado” (no cone sul do MS), “estariam inviabilizando 26 municípios”, “ocupando municípios”.  Um conhecido nosso dessas cidades disse expressamente que comprou armas para se defender porque o sindicato rural havia avisado de que os índios iam invadir tudo...

Por aí vemos o absurdo de tantas informações e mentiras no sentido de criar grande animosidade contra os índios, com vistas a impedir de ser efetivado seu direito sagrado a terra.

Essa realidade se acentuou muito nos últimos anos, creio que seja hoje uma das que mais geram violência aos povos indígenas, em função do não cumprimento da determinação constitucional, chegando a esse quadro lamentável de violências, mortes, ameaças, fome, desintegração social, tudo aquilo que se pode imaginar como conseqüência da negação de direitos básicos de sobrevivência de um povo ou comunidade. Um processo de negação da vida, genocida, como dizem claramente os estudiosos do tema.

Correio da Cidadania: E a polícia, pode ser acusada de atuar em perversa parceria com os latifundiários e os donos do poder econômico?

Egon Heck: As mais recentes demonstrações de violência têm mostrado características típicas de ações muito bem articuladas em nível estadual. Por exemplo: a repressão com balas de borracha.

Esta é uma prática comum nos meios urbanos, agora utilizada por milícias, organizadas no interior pra reprimir índios. Outra estratégia é dificultar ao máximo a identificação dos agressores, conseqüentemente garantindo sua impunidade. E há ainda a ocultação de cadáver, coisa que aconteceu três vezes desde 2009, com corpos deixados tanto do lado brasileiro quanto do lado paraguaio da fronteira.

Existem indícios de que os fazendeiros têm atuado com essas forças particulares, nas quais evidentemente existem presença e atuação de policiais aposentados etc.

Correio da Cidadania: E quanto ao governo federal, como avalia a sua postura, atualmente, diante deste episódio, após anos de lutas pela demarcação de terras já homologadas e inúmeras mortes de indígenas, sempre seguidas de impunidade?

Egon Heck: Eu tenho impressão de que o governo federal infelizmente só dá respostas com o mínimo de retorno nesses momentos extremos, em situações de grande violência e morte. Mas a questão indígena é responsabilidade total do governo federal, no sentido de garantir a vida e o acesso aos recursos e patrimônios da natureza.

Infelizmente, não se tem avançado no sentido, diversas vezes sugerido, de contar, ao menos num primeiro momento, com a ajuda da polícia e da Força Nacional de Segurança, equipes com preparação específica para atuar com grupos étnicos diferentes, de culturas diversas.

Infelizmente, a própria atuação da PF, em vários casos, tem deixado a desejar, talvez até pela falta de um preparo específico para atuar em tais áreas. E, por outro lado, notamos que, quanto mais próxima a PF está das áreas e regiões de conflito, mais suscetível ela fica a pressões do poder econômico e político regional. Portanto, as ações acabam não tendo a esperada imparcialidade, que seria o mais justo para se chegar a punições e prevenção a violências – ou seja, a atuação que deveria haver para oferecer segurança às comunidades indígenas.

Correio da Cidadania: Fica evidente que a PF está a serviço do poder econômico do latifúndio no estado.

Egon Heck: Na semana passada, saiu na mídia regional uma notícia da ação do Ministério Público Federal com relação ao assassinato dos senhores Rolindo Vera e Genivaldo Vera, informando que o inquérito da PF recomendava arquivamento, “por falta de provas objetivas” contra os implicados no assassinato. Claro que causou grande estranheza ao Ministério Público, pois existem muitas provas e indícios de vários nomes de participantes do crime.

O procurador Tiago da Luz, em entrevista, disse que viu “vários depoimentos dos índios, únicas testemunhas oculares, inclusive identificando nomes. Por que tais depoimentos não foram levados em conta pela Polícia Federal? Por acaso a palavra dos índios não vale nada?”.

Infelizmente, são esses os atores que têm ditado as regras. Precisamos de uma instância diferente, diversa, para tratar da segurança nas comunidades indígenas, com preparação prévia para se lidar com a cultura indígena, especificamente na agroecologia. Além de uma isenção maior em relação à realidade política e econômica local, porque, queira ou não, isso interfere concretamente contra os direitos indígenas.

Correio da Cidadania: E a FUNAI? Tem estado a serviço dos interesses e direitos indígenas ou vem sendo também varrida por essas mesmas pressões?

Egon Heck: A FUNAI é um pouco isso. Sofreu forte e recente sucateamento, está em processo de tentativa de recuperação, com atuação em favor dos povos indígenas através de contratações e concursos públicos, além de alguns funcionários mais comprometidos com a realidade dos povos indígenas.

Por outro lado, no entanto, sempre vemos a atuação ambígua e contraditória que no fundo marca a FUNAI. Às vezes tem gente, mas não tem recursos para colocar, de fato, 500 pessoas a serviço dos povos indígenas; às vezes tem que defender direitos constitucionais indígenas, mas não pode ofender os “direitos” econômicos e políticos hegemônicos. Quer dizer, tem de fazer de conta que defende o índio, pois não pode afetar o grande capital.

É dentro desse clima de contradições que a FUNAI tem tido na região atuações mais expressivas em favor dos índios, atitudes até corajosas de alguns funcionários - o que até tem feito com que, diante dos povos indígenas, a FUNAI regional tenha recuperado sua credibilidade.

Correio da Cidadania: Como avaliar, ademais, esta evolução dos acontecimentos, tendo em vista a tão comemorada demarcação contínua de Raposa Serra do Sol? Esta demarcação colaborou, de algum modo, no que toca um maior reconhecimento e respeito aos direitos dos índios brasileiros? As 19 condicionantes impostas pelo STF têm resultado em reveses?

Egon Heck: De fato, e é incontestável, a demarcação contínua das terras de Raposa Serra do Sol tem sido uma vitória para os wapichana, macuxi, ingarikó, patamona e taurepang. Porém, o preço para os povos indígenas, especialmente no MS, tem sido muito alto, ou seja, onde existe poder econômico e político,  faz-se uma leitura das condicionantes que inviabiliza qualquer outra demarcação de Terra Indígena. A questão da temporalidade é uma delas. Só teria direito às terras tradicionais os índios que em 1988 estivessem nas terras. Acontece que, evidentemente, o processo de expulsão violenta, seja pela ocupação econômica da região, seja pelos próprios órgãos oficiais da época, como o SPI e a FUNAI, que antes se prestavam a tirá-los da terra e colocá-los em áreas de confinamento, é simplesmente desconsiderado.

Em todos os momentos, dizem que os índios não estavam lá em 1988 e, portanto, não têm direito às suas terras tradicionais. O que é um absurdo, pois, dentro da própria leitura das condicionantes no Supremo, fica claro que os índios deveriam estar nas terras até em 1988, tendo também direito a elas em caso de expulsão anterior. Essa tem sido uma das teclas em que se tem batido. A outra condicionante usada é a da não ampliação das terras indígenas. Usam também a afirmação, falsa, de que as demarcações não são válidas para antigos aldeamentos, quando na verdade esse processo guarani só teve um aldeamento, no século 18, por parte dos jesuítas...

Enfim, procuram-se todos os meios de distorcer as próprias leis em favor do poder econômico e político regional.

Correio da Cidadania: Pode-se dizer que essa demarcação representou o início da imposição de retrocessos?

Egon Heck: Ela dificultou, digamos. Ou deu munição aos interesses contrários para tentar fazer aquilo que já vinham fazendo, mas munidos de argumentos jurídicos. Com isso, tentam barrar todo e qualquer processo de identificação e demarcação de terras.

Temos quase 20 processos de demarcação em andamento, quase todos parados por ações judiciais. Outros, em processo praticamente conclusivo, como no caso da terra dos nhanderu marangatu, homologada pelo presidente Lula, mas cassada liminarmente pelo ministro Nelson Jobim, em 2005. Dizia-se que logo no retorno das atividades do Supremo essa ação seria julgada. Passaram seis anos e a ação não foi julgada. E temos vários outros exemplos.

Podemos ver claramente que existe uma justiça ágil quando se trata de interesses contrários aos indígenas, e uma justiça extremamente morosa quando se trata de garantir os direitos indígenas.

Correio da Cidadania: O que você teria a responder aos argumentos que vêem nas demarcações de terras indígenas, especialmente se feitas de forma contínua, uma ameaça de internacionalização de nosso território, a partir de uma suposta susceptibilidade dos povos indígenas à ingerência externa?

Egon Heck: Responderia que teríamos que nacionalizar nosso país outra vez, já que ele foi entregue ao capital multinacional, às grandes corporações, que fazem o que querem.

Com os indígenas, as terras ficam ainda mais protegidas, pois, sendo terras da União, podem contar com dupla defesa. Além do mais, poderíamos conservar condições mais dignas de sobrevivência, onde ainda não se destruiu totalmente o meio ambiente e os recursos naturais, garantindo ao país as reservas necessárias ao equilíbrio ambiental.

Aqui no MS temos terras totalmente devastadas em relação à mata originária. Alguns municípios têm menos de 10% da mata original. Alguns deles, apesar de toda a pressão e confinamento sobre as terras indígenas, têm um pouco mais de árvores, com maior diversidade de vida preservada.

Creio que os povos indígenas, junto com os movimentos sociais e populares, têm muito a contribuir com um projeto realmente nacional, no lugar de um projeto de multinacionais. Um projeto que, principalmente, tenha como prioridade a vida, não um desenvolvimento desigual que beneficia somente pequenos grupos.

Correio da Cidadania: Qual a capacidade dos guarani de continuar resistindo, em meio a cerco tão violento dos pistoleiros e paramilitares, e quais as expectativas indígenas após essa nova onda de crimes contra suas lideranças, com grande repercussão internacional? Tempos mais sombrios continuam se anunciando?

Egon Heck: Entendemos que os guarani só atravessaram esses mais de 500 anos de turbulências, agressões, extermínios, doenças e tudo mais porque têm uma raiz de sabedoria milenar muito forte, sustentada principalmente em sua forte relação com o sobrenatural, com a espiritualidade, e ao mesmo tempo com a terra, sua mãe, espaço de vida e cura. E isso também lhes permitiu desenvolver uma estratégia de sobrevivência em meio a toda a adversidade. Apesar dessa violência toda, vemos um protagonismo dos guarani, no sentido de se mobilizar contra a violência, muito grande.

Também vemos uma grande mobilização, nacional e internacional, oferecendo recursos e solidariedade, o que é um dos fatores que podem contribuir muito, já que a solidariedade internacional tem um peso muito grande hoje em dia em relação aos direitos humanos e de minorias.

Tanto os movimentos de resistência quanto de solidariedade dão sinais muito fortes de que vão atravessar, não sem sofrimento, dor e sangue, esse difícil momento de recuperação da terra.

Correio da Cidadania: Que tipo de impacto poderá ter a aprovação do Código Florestal em discussão em Brasília sobre a situação dos povos indígenas, a seu ver? Os conflitos de interesses entre os povos indígenas e o capital poderão, por exemplo, acirrar-se, vulnerabilizando ainda mais as riquezas do Aqüífero Guarani?


Egon Heck: Creio que sim, que a aprovação dessa proposta de Código Florestal tende a acentuar os conflitos com os guarani pela questão da água e da agricultura, sem dúvida. O que mais causa devastação, além de toda a carga pesada dos agrotóxicos, é a instalação maciça de indústria da cana, através de vários projetos de usina, o que terá conseqüências muito fortes aos guarani. Em algumas usinas, como a de Rio Brilhante, já se usam as águas do aqüífero pra lavar a cana. Com isso, fragilizam a proteção da vida dos guarani que utilizem água dos rios, poluindo essa água, inviabilizando seu uso por parte dos guarani, afetando matas virgens... A indústria da cana é altamente rentável aos empresários e, infelizmente, utiliza a mão-de-obra indígena, que, por sua vez, tem sido cada vez mais dispensada com o processo de mecanização de tais usinas na região. Isso cria um novo problema social, pois grandes contingentes de indígenas que trabalhavam no corte da cana são dispensados e condenados à miséria.

O que colocamos como perspectivas, que os guarani esperam do governo, da sociedade, do mundo, não é apenas o reconhecimento formal do direito à vida e das legislações, inclusive a constituição, mas ações efetivas de construção de projetos que respeitem a diversidade de vida, de produção, de sociabilidade. E, principalmente, quanto àqueles que tanto mal fizeram à mãe terra, que tanta destruição causaram, que o governo federal assuma com determinação e clareza seu papel. Que não fique só na demarcação de terras, mas possibilite de fato a recuperação de sua economia, subsistência, seus meios de vida, promovendo uma recuperação básica do meio ambiente, rios e matas, que de alguma forma terão de ser recompostos. Que ajude a se começar uma virada histórica nessa situação de violência e miséria a que os índios foram submetidos, com convivência, paz e respeito na diversidade. É isso que esperamos. Os guarani e todo mundo. É um momento crucial, de encruzilhada, de busca de caminhos e alternativas.

Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania.