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domingo, 26 de janeiro de 2014

Toussaint Louverture, herói da Revolução Haitiana

Toussaint Louverture, herói da Revolução Haitiana

Havana (Prensa Latina) O nome de Toussaint Louverture (1743-1803), líder dos escravos haitianos e descendente de um rei africano, aterrorizava os fazendeiros e autoridades coloniais de Cuba, muitos anos depois de sua morte. 
Às autoridades de Havana e de Madri, que reteve este arquipélago depois de perder as principais posses americanas, lhes preocupava mais a influência das insurreições dos escravos haitianos, que os perigos de guerra com o Reino Unido ou a França, segundo o historiador cubano José Luciano Franco.
A grande revolução dos escravos haitianos começou em agosto de 1791 e, como pólvora ardente, se estendeu numa cruenta guerra civil, de 12 anos, com a intervenção de potências estrangeiras.
Em plena noite e pelo chamado dos tambores ancestrais, estourou o levantamento dos escravos do norte, à margem das disputas de outros grupos sociais depois da eclosão da Revolução Francesa, em 1789.
À frente estava Dutty Boukman, que morreu no mês de novembro defendendo as posições rebeldes, e ainda que sua cabeça tenha sido levada como troféu e exibida em uma jaula, no Cabo, a luta não pôde ser contida.
Meio milhão de escravos, submetidos ao poder dos colonos brancos, negaram-se a continuar nessa condição.
Contra sua ânsia de liberdade chocavam os interesses da população branca - 40 mil-, estratificada em dois grupos (os grandes e os pequenos) e dos mulatos e negros libertos -de 24 mil a 28 mil-, classe intermediária com importantes riquezas mas discriminados no político e social.
Segundo um historiador francês, 1.200 plantações de café e 200 engenhos, numerosos edifícios e moradias dos fazendeiros arderam em chamas.
Os brancos de todas as tendências deixaram de combater ao se conhecer a execução do rei Luis XVI -21 de janeiro de 1793- e o estado de guerra entre França e Reino Unido.

Os colonos brancos entregam aos britânicos as principais cidades ou fugiram para Cuba às centenas.

INGERÊNCIA DO REINO UNIDO E ESPANHA

Os proprietários franceses assinaram a 3 de setembro de 1793 um tratado com o chefe das forças de ocupação britânicas, general Adam Williamson; muitos deles se uniram a estes invasores, junto a oficiais realistas e antigos servidores públicos coloniais.
Santiago de Cuba converteu-se em refúgio dos escravistas franceses, procedentes da colônia Saint-Domingue (Haiti, seu nome de origem), acompanhados de seus escravos.
Inicialmente, o capitão geral de Cuba, Luis de las Casas, e o governador de Santiago de Cuba, o brigadeiro Juan Bautista Vaillant, prestaram ajuda às autoridades coloniais francesas de Haiti para neutralizar o movimento insurrecional. Facilitaram-lhes gado, víveres e material de guerra.
Depois, em cumprimento com as instruções reais, o governador espanhol de Santo Domingo, brigadeiro Joaquín García, tomou uma importante iniciativa para assegurar a seu país praças no Haiti e entrou em relações com os chefes dos escravos haitianos rebeldes.
Ofereceu-lhes em nome do rei de Espanha socorros em armas e apetrechos de guerra, liberdade, prerrogativas como a seus súditos e terras em Santo Domingo, bem como lhes entregar os territórios de Saint-Domingue que já ocupavam.
Os chefes Jean Francois e George Biassou aceitaram e passaram ao partido espanhol com seus homens e também Toussaint Louverture, que operava então com um pequeno exército de 600 homens.
A partir de agosto de 1792, forças militares espanholas e tropas auxiliares ao comando de Francois, Biassou e Toussaint Louverture estabeleceram-se conjuntamente nesses territórios.
Cuba participou, cada vez mais, nos acontecimentos que tinham lugar na ilha vizinha, ao fazer aliança Espanha com Reino Unido durante a Guerra da Convenção (1793-1795) -dos Pirineus ou do Rosellón- contra a França revolucionária e, a partir de 1796, novamente com Paris.
Pelos chamados Pactos de Família, Espanha foi aliada da França contra o Reino Unido durante grande parte do século XVIII; a mudança de aliança ocorre quando o rei francês Luis XVI morre na guilhotina, primo-irmão da então rainha consorte de Espanha, María Luisa de Parma, esposa de Carlos IV.
Esta guerra teve graves consequências para a Coroa Espanhola pois os exércitos franceses ocuparam, nas campanhas de 1794 e 1795, a Catalunha, o País Basco e Navarra, até Miranda de Ebro (província de Burgos).
Pela Paz de Basileia (1795), Madri cedeu a Paris o território de Santo Domingo (atual República Dominicana) para recuperar os territórios peninsulares ocupados.
Depois disto, a Coroa hispânica assinou, a 18 de agosto de 1796, o Tratado de San Ildefonso com a República francesa, que estabeleceu a ajuda militar se alguma das partes entrava em guerra com o Reino Unido; outro acordo, em outubro de 1800, converteu a Espanha em aliada dos planos belicistas de Napoleão Bonaparte.

LIBERTADOR DE ESCRAVOS

O destacado estudioso do tema José Luciano Franco assinala o fato que esta rebelião produziu homens como Toussaint Louverture, que podem ser comparados com os melhores revolucionários de outros países da América.
Nascido escravo, a 20 de maio de 1743, próximo do Cabo Francês, alguns autores dizem que era bisneto de um rei africano.
Há fontes que situam Francois Dominique (Toussaint Louverture) entre os promotores da insurreição, enquanto outras afirmam que se somou mais tarde, depois de enviar seus antigos amos para o exterior.
Diz-se que foi secretário de Biassou, a cujas forças entrou como médico devido a seu conhecimento da medicina tradicional africana, transmitido de um ancestral que fora capturado em África pelos traficantes negreiros.
Criannça doente, trabalhou de cocheiro do amo; adquiriu educação autodidata mediante a leitura; iniciado por seu padrinho Pedro Bautista, aprendeu francês, algo de latim e geometria; com o tempo adquiriu também grande fortaleza física.
Despontou como o militar e político mais importante; seguido pelas massas escravas, derrotou os invasores britânicos e espanhóis, depois de aceitar primeiro brigar sob a bandeira destes últimos; ambos tiveram que lhe render honras.
Defendeu a República Francesa quando aboliu a escravatura e, mais tarde, as tropas de Napoleão não conseguiram o vencer, pelo que simularam um pacto que culminou com a traição, prisão e morte do caudilho em uma prisão da França, de fome e frio, a 7 de abril de 1803.
Foi brigadeiro do exército espanhol; general do exército francês, general em chefe dos exércitos da Ilha e governador do Haiti.
Toussaint Louverture levou também a liberdade aos escravos da parte espanhola de Santo Domingo (hoje República Dominicana).
A antiga metrópole restabeleceu a escravatura, em 1802, mas a luta prosseguiu até a derrota total dos franceses e a proclamação em 1804 da independência de Haiti, a primeira república negra do mundo.
A República Haitiana, nascida 210 anos atrás, teve notável influência nas sublevações de escravos e luta abolicionistas no século XIX, daí os temores dos praticantes da plantação escravista em Cuba, que substituíram o Haiti como o engenho do mundo.
Foi significativa a ajuda haitiana a Simón Bolívar para libertar definitivamente a Venezuela e criar a Grande Colômbia, passo prévio da derrota de Espanha na América do Sul e a independência de vários povos irmãos.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Cantor Daniel Viglietti denuncia golpe de estado jurídico no Uruguai



Preso pela ditadura em 1972, Viglietti afirmou que a Suprema Corte de Justiça deu um golpe de Estado jurídico | Foto: Libertinus
Da Redação do SUL21
O cantor uruguaio Daniel Viglietti denunciou que a Suprema Corte de Justiça do Uruguai (SCJ) deu “um tipo de golpe de Estado jurídico” que pretende liquidar com os processos contra os criminosos da ditadura (1973 – 1985). Viglietti afirmou que a SCJ busca impedir que sejam julgados os “que torturaram, assassinaram e sequestraram”.
“Se, por um lado, o estado escavou a terra para encontrar os corpos, é preciso continuar escavando a sociedade para encontrar os responsáveis por tudo isso”, afirmou o cantor e compositor de 73 anos de idade à Prensa Latina.
Nesta sexta-feira (22), a Suprema Corte emitiu uma sentença considerando inconstitucional a lei aprovada em 2011 que permitia a investigação de crimes ocorridos durante a ditadura, antes abrigados sob a lei da anistia, aprovada em 1986. A decisão ganhou o apoio da direita e foi condenada pelo governo esquerdista.
Para o vice-presidente da coalizão governista Frente Ampla, Juan Castillho, a decisão foi “uma barbaridade”. “O recado que está sendo dado às vítimas e a suas famílias é aterrorizante”, lamentou o político. O partido do presidente José Mujica emitiu um comunicado na segunda-feira (25) afirmando que “a maioria da SCJ é responsável pela manutenção da impunidade”. O PVP, outro partido que integra a Frente Ampla, afirmou que irá denunciar a SCJ à Corte Interamericana de Direitos Humanos.
A oposição direitista criticou o posicionamento do governo após a decisão: “Não respeitam o povo quanto vota, nem os juízes quando ditam sentença; acreditam estar por cima da Constituição”, escreveu o senador Ope Pasquet, do Partido Colorado, no Twitter.
O porta-voz da SCJ, Raúl Oxandabart, afirmou que “o destino de cada um dos procedimentos ou julgamentos sobre os crimes da ditadura dependem do juiz da causa, e nisso a SCJ não pode intervir”. Segundo o El País, a decisão determina que causas judiciais abertas nas quais não há militares processados por crimes na ditadura devem ser arquivadas. As causas nos quais já há processados, no entanto, poderão continuar a ser investigadas.

| Foto: Victor Farinelli/Opera Mundi
Protesto
Nesta segunda-feira (25), milhares de uruguaios, entre eles o escritor Eduardo Galeano, protestaram contra a decisão e exigiram o fim da impunidade pelos crimes da ditadura. Os manifestantes, convocados pela Frente Ampla e por várias organizações de defesa dos direitos humanos, se concentraram na Praça Cagancha, em frente à sede da SCJ. Ao redor da Coluna da Paz, monumento simbólico da Plaza Cagancha, em Montevidéu, havia pouco mais de 25 mil uruguaios em protesto. Após cinco minutos de silêncio, vieram os aplausos, abraços, lágrimas e o hino do país.
Terminada a parte protocolar do ato, os gritos passaram a ser variados, e direcionados a um dos flancos da praça, onde está o prédio da Suprema Corte de Justiça do Uruguai. Foi de lá que saiu, na última sexta-feira (22/02), a decisão que motivou o evento.
O tribunal de justiça do país declarou inconstitucionais os dois artigos centrais da chamada Lei de Interpretação, aprovada pelo Congresso do país em 2011, e que anulava os efeitos da Lei de Caducidade (similar à Lei de Anistia no Brasil), pela qual se determina a prescrição dos crimes da ditadura uruguaia (1973-1985).

A Cagancha, ontem | Foto: Victor Farinelli/Opera Mundi
Com informações da Radil Del Sur, Opera Mundi, Terra e O Globo

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Urariano Mota: Começam a justificar a tortura, perigo à vista

Do blog VIOMUNDO


por Urariano Mota, em Direto da Redação, dica de Paulo Dantas e Artur Scavone
Recife (PE) – Nesta quinta-feira, Contardo Calligaris na Folha de São Paulo deu à sua coluna o mesmo título desta agora. Diz ele:
“O saco plástico do capitão Nascimento funciona. Os ‘interrogatórios’ brutais do agente Jack Bauer, na série “24 Horas”, funcionam. E, de fato, como lembra ‘A Hora Mais Escura’, de Kathryn Bigelow, que acaba de estrear, o afogamento forçado e repetido de suspeitos detidos em Guantánamo forneceu as informações que permitiram localizar e executar Osama bin Laden.
Nos EUA, na estreia do filme, alguns se indignaram, acusando-o de fazer apologia da tortura. Na verdade, o filme interroga e incomoda porque nos obriga a uma reflexão moral difícil e incerta: a tortura, nos interrogatórios, não é infrutuosa -se quisermos condená-la, teremos que produzir razões diferentes de sua inutilidade”.
Antes de mais nada, vale ressaltar que há muito o cinema norte-americano naturaliza a tortura, a injustiça, a exclusão. Desde Hollywood ele tem sido sentinela avançado do modo capitalista, na propaganda dos valores da formação do homem norte-americano. De passagem, lembro um filme de Ford (sim, do grande Ford) em que John Wayne ouve a seguinte frase do empregado do hotel: “você e o cachorro sobem, mas o índio não”. O que dizer de 007, por exemplo, em sua cruzada contra os comunistas? O que falar dos mexicanos e índios, sempre pintados como bandidos desde a nossa infância? O que dizer da ausência de interioridade nos personagens negros que apareciam em seus filmes, sempre em posição subalterna ou de pianista para o amor do casal romântico?
O fundamental é que no fim do texto Calligaris conclui:
“Uma criança foi sequestrada e está encarcerada em um lugar onde ela tem ar para respirar por um tempo limitado. Você prendeu o sequestrador, o qual não diz onde está a criança sequestrada. Infelizmente, não existe (ainda) soro da verdade que funcione. A tortura poderia levá-lo a falar. Você faz o quê?”.
Esse é um recurso de justificativa da tortura é manjado. Seria algo como:
- Você é capaz de matar uma criança?
- Não, claro que não.
- E se a criança fosse uma terrorista?
- Crianças não são terroristas.
- E se ela estivesse domesticada, com lavagem cerebral, que a tornasse uma terrorista?
- Ainda assim, de modo algum eu a veria como uma terrorista.
- E se essa criança trouxesse o corpo cheio de bombas?
- Eu preferiria morrer a matá-la.
- E se essa criança, com o corpo de bombas, entrasse para explodir uma creche?
- Não sei.
- E se nessa creche estivessem os seus filhos e as pessoas que você ama?
- Neste caso…
E neste caso estariam justificados os fuzilamentos de meninos que atiram pedras em tanques de Israel. E neste caso, num desenvolvimento natural, estaria justificado até o assassinato dos que lutam contra a opressão, porque mais cedo ou mais tarde se tornarão terroristas. E para que não vejam nisto um exagero, citamos as palavras de Kenneth Roth, da Human Rights Watch: `Os defensores da tortura sempre citam o cenário da bomba-relógio. O problema é que tal situação é infinitamente elástica. Você começa aplicando a tortura em um suspeito de terrorismo, e logo estará aplicando-a em um vizinho dele` “.
É monstruoso, é um atestado absoluto do desprezo pela pessoa, que na mídia se discuta hoje não a moralidade da tortura, mas a sua eficiência. Esse deslocamento de humanidade – que sai da moral para descer no mais útil -  é sintomático de que não basta mais ser brutais em segredo, na privacidade, escondido. Não. Há de se proclamar que princípios fundamentais da barbárie sejam fundamentos de cidadania. Assim como os defensores  da ditadura têm a petulância de vir a público dizer que apenas se matavam terroristas, portanto, nada de mais; assim como o cão hidrófobo que leva o nome de Bolsonaro – e nesse particular, ele é da mesma raça e doença dos fascistas em geral – zomba sobre os cadáveres de socialistas, agora nas tevês, no cinema, passam à justificação moral da tortura.
Perigo à vista. Nós, os humanistas, temos adotado até aqui uma atitude passiva, ordeira, o que é um claro suicídio. Esse ar de bons-moços que andam pela violência como Cristo sobre as águas, além de suicídio, porque nos afundaremos todos,  é, antes do desastre,  um recolhimento da ética para os fundos que defecam.
Entendam. Longe está este colunista da valentia e poderosas forças. Mas nós que não sabemos atirar balas ou socos,  temos que agir com as armas que a dura vida nos ensinou: escrevendo. E como temos sido omissos.

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Limpeza étnica em Israel



Autoridades israelenses reconhecem processo de esterilização de judias etíopes. Na foto, mãe e filha judias de origem etíope passam por entrevista no aeroporto israelense Ben Gurion, perto de Tel Aviv


Baby Siqueira Abrão
correspondente no Oriente Médio - BRASIL DE FATO

O reconhecimento, por parte das autoridades israelenses, da esterilização das mulheres etíopes que professam a religião judaica – e que migram para Israel usando a “lei do retorno” (allyah), segundo a qual todo judeu do mundo pode “voltar” a Israel, mesmo que jamais tenha posto os pés lá – foi manchete em quase toda a mídia internacional, corporativa e independente. A questão levantou debates intensos em círculos feministas, de direitos humanos, dos direitos da população negra e na sociedade israelense. Uma leitura atenta das cartas dos leitores publicadas na mídia de Israel mostra uma maioria perplexa e crítica, mas houve também quem defendesse a esterilização, e não foram poucos – espelho de uma sociedade política, econômica, social, religiosa e culturalmente bastante diversificada. E dividida.
Mas com um novo Parlamento tomando posse e discussões em torno do futuro primeiro-ministro – Benjamin Netanyhau deve ser eleito para seu segundo mandato consecutivo, e o terceiro não consecutivo –, além do tema recorrente da “ameaça” representada pelo Irã atômico e da “necessidade” de impedir que os iranianos fabriquem bombas nucleares, acabaram pondo um ponto final no debate sobre a esterilização. Mas isso não significa esquecê-lo. O fato levantou questões importantes sobre o tratamento dispensado a imigrantes pobres e negros – e em particular às mulheres desse grupo. O debate precisa ser retomado pelas sociedades israelense e internacional para evitar que práticas assim, que violam direitos humanos básicos, voltem a ocorrer.

Primeiro alerta

 Na última década, a taxa de natalidade entre as mulheres etíopes de Israel teve uma queda de 50%. Há mais de cinco anos a hipótese da esterilização veio à tona, em consequência dos relatos das etíopes. Pequena parte da mídia israelense noticiou o fato, mas as autoridades de Israel sempre o negaram. Foi o trabalho da pesquisadora Sabba Reuven, levado ao ar pela jornalista Gal Gabay no programa Vacuum, da TV Educativa de Israel, que escancarou o fato, no início de dezembro de 2012.
As entrevistadas foram claras: são obrigadas a tomar, a cada três meses, as injeções de Depo-Provera, anticoncepcional cujo efeito é de longo prazo. Vacuum chegou a acompanhar uma delas ao posto de saúde – a filmagem, feita sem o conhecimento dos funcionários, tem baixa qualidade e está nublada para evitar o reconhecimento das pessoas envolvidas, mas ainda assim registra a prática. 
O problema maior é que a verdade jamais foi dita a essas mulheres. A esterilização, segundo os relatos delas, começa na Etiópia, nos “campos de trânsito”, nome dos locais para onde são levados os judeus africanos que querem emigrar para Israel. “Entre 1980 e 1990 milhares de judeus etíopes passaram meses nesses campos, na Etiópia e no Sudão”, escreveu Efrat Yardai, porta-voz da Associação Israelense de Judeus Etíopes, em artigo para o jornal Haaretz. “Centenas morreram apenas porque o país que supostamente devia ser um refúgio seguro para os judeus decidiu que ainda não era a hora certa, ou que eles não poderiam ser absorvidos ao mesmo tempo, ou que não eram judeus o bastante... Quem já tinha ouvido falar de judeus negros?”, ela provoca.

Vida controlada

Para Efrat, as injeções de Depo-Provera são parte da atitude do governo israelense em relação aos imigrantes africanos. Hoje em dia, nos campos de trânsito, os futuros imigrantes são obrigados a enfrentar “uma desorganização burocrática terrível, uma carga que lhes é imposta para que provem que estão aptos a viver em Israel”. Ao chegar ao novo país, de acordo com Efrat, eles passam a receber “tratamento” em centros de assimilação. As crianças são enviadas a escolas religiosas e incluídas num programa de educação “especial”, enquanto os pais “permanecem em guetos e as mulheres continuam a receber as injeções. [As autoridades] dizem que não temos escolha. As políticas repressivas, racistas e paternalistas prosseguem – políticas que supostamenteseriam no melhor interesse dos imigrantes, que não sabem o que é melhor para eles”, ironiza ela.
Efrat vai além, afirmando que esse controle completo sobre a vida dos imigrantes é feito apenas em relação aos etíopes e impede que eles se adaptem a Israel. “A desculpa de que eles precisam estar preparados para viver num país moderno levam-nos a um processo de lavagem cerebral que os torna dependentes das instituições estatais de assimilação”, denuncia a porta-voz.
As entrevistadas de Gal Gabay sustentam as denúncias de Efrat Yardai. “Em Adis Abeba [Etiópia] eles marcaram uma reunião conosco (...) Disseram que, se continuássemos tendo muitos filhos, não conseguiríamos emprego em Israel. (...) Disseram que as injeções seriam dadas para evitar esse sofrimento, e que a cada três meses tínhamos de tomá-las”, contou uma imigrante. “E vocês aceitaram tomá-las?”, perguntou a jornalista. “Não. Nós não queríamos tomar. Recusamos. Mas eles disseram que não tínhamos escolha.”

Contracepção forçada

Nenhuma das etíopes sabia qual era a substância injetada em seus corpos. Ninguém as avisou de que o Depo-Provera é um anticoncepcional aplicado apenas em último caso, como na esterilização de mulheres aprisionadas ou que não têm controle sobre as próprias ações. Tampouco lhes contaram que o Depo-Provera tem um histórico nada recomendável. Entre 1967 e 1978 a substância foi injetada em 13 mil mulheres (metade negras) da Geórgia, Estados Unidos, que também não sabiam que eram cobaias. Muitas adoeceram e algumas acabaram morrendo durante o experimento, de acordo com uma pesquisa realizada em 2009 pela Isha L’Isha, organização feminista sediada em Haifa, Israel. A mesma pesquisa apontou que 60% das injeções de Depo-Provera, em Israel, são destinadas às etíopes. O segundo grupo mais visado é o de mulheres sob várias formas de custódia. Os efeitos colaterais variam, mas o mais comum é a osteoporose, que fragiliza os ossos e expõe as mulheres ao risco de quebrá-los com frequência.
Coordenadora do projeto Mulheres e Tecnologias Médicas da Isha, Hedva Eyal afirmou que o documento foi encarado com desinteresse pelas autoridades do país e que muitos “batiam a porta na cara” das integrantes da organização. “É estarrecedor constatar como os testemunhos das mulheres são rejeitados, em especial os das mulheres pobres e negras”, desabafa Hedva. As autoridades não levam em contam que “as decisões sobre a saúde e a fertilidade das mulheres podem e devem ser tomadas apenas por elas”, que para isso precisam ter acesso pleno a todas as informações importantes sobre o assunto. “Mas não foi esse o caso, ao que parece”, afirma ela.

Tráfico humano: dor, humilhação e violência contra as mulheres


 
Cecília Toledo - ADITAL
Jornalista e militante no PSTU. Fez parte da Comissão de Mulheres da LIT-QI
O capitalismo dá aulas de como oprimir, como escravizar e submeter os seres humanos. Ao invés do bem-estar, da liberdade e emancipação, o que vem crescendo em todo o mundo é a exploração, a humilhação e escravização de milhões. Uma das práticas que tem crescido muito ultimamente é a formação de verdadeiras empresas capitalistas dedicadas ao tráfico internacional de mulheres. Começou com pequenas empresas fazendo grandes negócios: raptavam meninas no Sul do país e as levavam para o Norte e Nordeste onde eram escravizadas como prostitutas nos bordéis infectos que disputam o lugar com os bares no entorno dos grandes empreendimentos, como a construção de usinas. Agora, o negócio ficou mais sofisticado; rompeu as fronteiras nacionais e ganhou status internacional. Os países mais pobres da América Latina e América Central se tornaram celeiro de jovens que são enviadas para a Ásia, Europa e Estados Unidos, e nunca mais são vistas.
Violação das mais perversas contra os Direitos Humanos, o tráfico de pessoas aparece no ranking global dos negócios ilícitos como o terceiro ramo mais lucrativo do crime, perdendo apenas para o tráfico de armas e drogas. Dentre essas formas de tráfico, a maior incidência é o tráfico para exploração sexual de mulheres, também conhecido como "trata”. Considerada crime pela legislação brasileira, a trata, em geral, é de difícil detecção, prevenção e punição em grande parte devido ao silêncio que impera entre os envolvidos; não raro, ligados às redes de prostituição, à polícia e aos carteis do tráfico de drogas e armas.
Talvez seja um dos negócios que mais tenha se beneficiado com a globalização da economia a partir dos anos 80. As pesquisas indicam a existência de quase 300 rotas nacionais e internacionais de tráfico de pessoas. Estima-se que por ano cerca de um milhão de jovens brasileiras, colombianas, bolivianas, equatorianas e de outros países próximos sejam traficadas e escravizadas. Nesse montante, está englobado também o tráfico para retirada de órgãos. Existem poucas pesquisas sobre o tema, as mais recentes datam do início de 2000. Em 2004, a ONU divulgou um relatório comprovando que o tráfico de seres humanos é majoritariamente administrado pelos mesmos integrantes do tráfico de entorpecentes. O relatório constata que 83% das vítimas são mulheres, 48% menores de 18 anos e apenas 4% são homens. As estimativas globais em 2005 foram de 2,4 milhões de pessoas traficadas e destes números 98% são mulheres e garotas que fazem trabalho escravo, sendo que 43% são usadas para exploração sexual comercial forçada, principalmente nas regiões da América Latina e Caribe, rendendo cifras de US$ 1,3 bilhão.
Nessa estatística macabra, o Brasil detém o vergonhoso título de campeão latino-americano na "exportação” de mulheres para a "indústria” da prostituição nos países de "primeiro mundo”. O relatório de 2010 do Departamento de Estado dos Estados Unidos cita o Brasil como "fonte de homens, mulheres, meninos e meninas para prostituição forçada no país e no exterior". O Brasil passou a fazer parte do mapa do turismo sexual por volta dos anos 80, quando o mercado asiático começou a se saturar e os países da América Latina tornaram-se os destinos mais procurados por turistas europeus e japoneses. A década de 90 consolidou o Nordeste brasileiro como paraíso do turismo sexual e dos casamentos interculturais. Daí para o tráfico de pessoas foi um pulo.
O Relatório Anual de 2009 do Observatório do Tráfico de Seres Humanos revelou que 40% das mulheres vítimas do tráfico humano em Portugal são brasileiras. Baseado em 85 casos identificados em 2009, o estudo apontou que a maioria dessas mulheres é originária de Goiás, Minas Gerais e estados do Nordeste. As mulheres são aliciadas nas regiões mais pobres do país e levadas para as regiões mais ricas. Esse é o chamado "tráfico interno”, que também é grande no sul do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, além da rota que une o Rio Grande do Sul com os países vizinhos do Mercosul. No "tráfico externo”, São Paulo e Rio de Janeiro são as portas de saída mais utilizadas, através de seus grandes aeroportos, que chamam menos a atenção.

Empresários do crime

O tráfico de mulheres, sobretudo para o exterior, é uma operação delicada. Transportar pessoas de um lado a outro de forma ilegal, sobretudo para outros países, não é coisa que se faça sem um grande esquema de sustentação. Por isso, são montadas verdadeiras empresas que envolvem diversos "funcionários”, incluindo contatos bem localizados e da maior confiança entre si aqui e no exterior, além de grandes somas de dinheiro, inclusive para cobrir os imprevistos.
Esse esquema complexo requer que seus integrantes tenham facilidades junto às autoridades para conseguir documentos, como passaportes e certidões, e junto à polícia federal, que controla o fluxo nos aeroportos. É um esquema caro, por isso em geral é financiado com o dinheiro do tráfico de drogas.
Os agenciadores buscam suas vítimas, de preferência mulheres jovens entre 18 e 25 anos, em favelas e bairros empobrecidos, mas não é raro que também rondem as portas das escolas e faculdades de classe média, onde uma grande concentração de jovens está exposta ao consumo de bebida alcoólica e drogas, incluindo a prostituição. Essas jovens são "convidadas” a viver no exterior, com a promessa de um trabalho honesto e bem remunerado, moradia e outras facilidades. Recebem toda a documentação necessária para viajar, inclusive passaporte, passagem e um adiantamento em dinheiro. Com um discurso coerente, passam sem problemas pelos controles dos aeroportos e conseguem desembarcar igualmente sem qualquer constrangimento.
Quando chegam ao destino descobrem que caíram numa armadilha. São mantidas trancafiadas em cárceres privados e obrigadas a trabalhar em casas de prostituição em regime de trabalho escravo, que não termina nunca porque elas têm de pagar suas "dívidas” com passagens e documentação. Vivem sob constantes ameaças, inclusive de verem suas famílias vitimadas caso tentem fugir ou fazer qualquer denúncia contra as organizações criminosas. No exterior, elas são vistas como imigrantes, com toda a carga de preconceito que recai sobre esse setor da população; o desconhecimento do idioma e das leis do país agrava enormemente sua condição.
Encontrar essas mulheres, conhecer seu paradeiro e as condições de vida a que estão submetidas não é fácil; quase sempre são mantidas incomunicáveis e impotentes para tomar qualquer atitude, deixando as famílias em desespero. Com o tempo, acabam entrando para o cadastro de pessoas desaparecidas e nunca mais se tem notícia delas.
Muitas leis, poucas ações
A polícia e as autoridades, o Estado em suma, alegam ter muitas dificuldades para conseguir exercer uma investigação a fundo contra o tráfico de mulheres, a libertação delas e a prisão dos culpados. Mas o fato concreto é que muitas vezes quem está por trás do negócio são empresários milionários ou mesmo políticos, que são acobertados pelas autoridades. Além disso, as leis não são cumpridas. A prostituição e a "trata” são questões exaustivamente abordadas e condenadas pela legislação internacional e nacional. O Brasil é aderente à Convenção para Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra as Mulheres, assinada pela ONU em 1979. O Congresso Nacional aprovou em 2003, por meio da resolução 231, um protocolo contra o crime organizado e o tráfico de pessoas, reconhecendo a necessidade de proteção global e internacional dos direitos fundamentais internacionalmente reconhecidos, para as mulheres brasileiras. Além disso, o tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, bem como o tráfico interno, são previstos no Código Penal Brasileiro, em seu artigo 231, com pena de reclusão de 2 a 6 anos.
No entanto, o tráfico vem aumentando a cada dia, sem que o Estado se empenhe a fundo em reprimir esse tipo de crime. Para que a Polícia Federal e o Ministério do Exterior se mexam é preciso aparecer algum caso chamativo na imprensa ou alguém fazer alguma denúncia que apareça na televisão, como na novela da Rede Globo que recentemente divulgou a denúncia de uma mulher cuja filha havia sido traficada para a Espanha. Ela e outras jovens eram mantidas em cativeiro dentro de uma casa de prostituição, sem poder sair ou se comunicar com o mundo exterior. O caso tomou tamanha repercussão que a polícia espanhola foi forçada a ir até o local para libertar as jovens.
Esse caso foi uma exceção. Em geral, as famílias não têm condições de investigar por conta própria. À sua impotência soma-se a inércia das autoridades competentes, além do preconceito que ronda as mulheres. Não é incomum elas serem acusadas de mentirosas e terem saído do país por livre e espontânea vontade, sem consciência do que as esperava no exterior. Assim, não são consideradas vítimas, mas coparticipantes do processo, já que deram seu consentimento e muitas vezes chegaram inclusive a assinar documentos autorizando a viagem.
Some-se a isso o fato de o Código Penal não estabelecer a diferença entre prostituição forçada e voluntária; isso depende da interpretação da polícia, do ministério público e do judiciário. Tanto uma quanto a outra não são criminalizadas, deixando assim os aliciadores com as mãos livres. Existe ainda o agravante de que a lei não considera o tráfico como trabalho escravo, o que poderia assegurar a prisão dos criminosos.
A relação com a prostituição
A relação entre o tráfico de pessoas e a prostituição é direta. De acordo com o Relatório do Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, publicado em 2010 e coordenado pela Secretaria Nacional de Justiça, do Ministério da Justiça, as mulheres, crianças, adolescentes e travestis já envolvidos de alguma maneira com o ambiente da prostituição são os principais alvos do crime de tráfico de pessoas, quando a prática tem por fim a exploração sexual. As vítimas têm em comum o fato de ser, em sua maioria, pessoas jovens, de baixa renda, pouca escolaridade, sem oportunidade nem perspectiva de melhoria de vida e provenientes de lugares e de regiões pobres. Na ausência de ampla qualificação e pleno emprego, esses são, portanto, os setores da população mais carentes e em situação de desamparo. Um estudo feito para o Ministério da Justiça em 2003 pergunta: "por que mulheres (adultas e adolescentes) são aliciadas para fins sexuais? A resposta está na razão direta da precarização de sua força de trabalho e da construção social de sua subalternidade. No Brasil, o tráfico para fins de exploração sexual comercial, é predominantemente de mulheres e adolescentes negras, sendo que a faixa etária de maior incidência é de 22 a 24 anos e de 15 a 17 anos, respectivamente. Geralmente, são oriundas de classes populares, apresentam baixa escolaridade, habitam em espaços urbanos periféricos com carência de saneamento, transporte (dentre outros bens sociais comunitários), moram com algum familiar e têm filhos. [...] Sobre as condições de vida das mulheres/adolescentes, antes de ser aliciadas pelos traficantes, a maioria provém de municípios de baixo desenvolvimento socioeconômico, situados no interior do País. Dentre as que vivem em capitais ou em municípios localizados nas regiões metropolitanas, a grande maioria mora em bairros e áreas suburbanas ou periféricas”. (Leal e Leal, 2003)
O mesmo estudo mostra que as mulheres mais sujeitas ao tráfico humano são aquelas que "já sofreram algum tipo de violência intrafamiliar (abuso sexual, estupro, sedução, atentado violento ao pudor, abandono, negligência, maus tratos, dentre outros) e extrafamiliar (os mesmos e outros tipos de violência em escolas, abrigos, em redes de exploração sexual e outros tipos de relações); as famílias também apresentam quadros situacionais difíceis (violência social, interpessoal e estrutural) vulneráveis frente à fragilidade das redes protetoras (família/estado/sociedade)”.
Em 2011 um grupo de formandas em Serviço Social de São Paulo fez um amplo estudo sobre o tema, relacionando diretamente o tráfico de seres humanos com a prostituição e exploração sexual de mulheres. O estudo de Rosineide Silva, Roberta de Moraes e Alessandra Matricaldi traz uma série de depoimentos de mulheres que viajavam para fora do país na esperança de conseguir um emprego e uma vida melhor, e acabaram vítimas da exploração sexual. Essa realidade demonstra cabalmente como a opressão das mulheres na sociedade capitalista, a situação de inferioridade em que são colocadas em todos os âmbitos, favorece esse tipo de crime. Alguns desses depoimentos foram colhidos junto ao Posto de Atendimento aos Migrantes que funciona no Aeroporto Internacional de Guarulhos em São Paulo desde 2006.
A maioria das mulheres relata que ao chegar ao país de destino sentiram-se discriminadas por funcionários de migração e pelos cidadãos estrangeiros, relacionando-as a prostitutas e sentiram na pele o abuso de autoridade quando argumentavam que não tinham dinheiro e não sabiam falar o idioma. A maioria das mulheres atendidas viajava sem a certeza de conseguir um emprego, formal ou informal, contando apenas com algum parente ou amigo que, possivelmente, poderia lhe arrumar um emprego no país de destino. Uma das mulheres relatou que foi agredida fisicamente por policiais da imigração espanhola, por ocasião de sua estadia no centro de imigração em Valença/Espanha. Conta que um policial tentou acariciá-la e foi repelido; como represália, ele a espancou usando um cassetete de ferro, desferindo-lhe golpes nas nádegas enquanto outro policial a segurava pelos cabelos. Ao narrar suas histórias de vida, apontam para diferentes motivações para a migração, desde o desejo de não mais morar na zona rural até para fugir de um marido ou um pai violento. Muitas contam que foram abusadas, intimidadas, ameaçadas, perseguidas e tiveram seus passaportes confiscados. Viviam em cárcere privado e eram obrigadas a se prostituir, só recebiam um preservativo por dia e eram vigiadas o tempo todo. Com medo de prejudicar a família, procuravam não se rebelar; para poder comer, tinham que ficar com mais de um homem por noite. Só saiam para ir ao cabeleireiro, lojas e mercados, já que precisavam se cuidar, mas sempre escoltadas e não tinham permissão de fazer ligações para os familiares. As que viveram esta situação relatam que só conseguiram voltar porque pagaram pela sua liberdade e outras por terem conseguido ajuda para fugir.
O tráfico de mulheres e a exploração sexual são práticas correlatas à exploração e opressão das mulheres no conjunto da sociedade. As mulheres são vistas como mercadoria, como objetos sexuais e propriedade privada, que podem ser vendidas e traficadas ao bel prazer dos ricos. Inclusive muitos grandes burgueses, empresários e banqueiros participam dessas atividades ilícitas, e ganham milhões de dólares com isso. A prostituição em larga escala, como instituição do Estado burguês, também é uma violência desmedida contra as mulheres. Trata-se de um grande negócio, onde as maiores vítimas são as próprias mulheres, que se veem presas a essa prática, sem forma de livrar-se de um sistema que muitas vezes também as envolvem no consumo de drogas. Sem emprego digno, sem educação de boa qualidade, sem perspectiva de um futuro de felicidade e plenitude, a grande maioria dessas mulheres não tem outra saída que entregar-se à prostituição como forma de ganhar a vida. Essa situação crítica de vida também é aquela que permite o tráfico de mulheres, já que muitas delas têm a ilusão de conseguir em outro país um emprego e uma vida melhor para sua família, mas a realidade cruel tem nos mostrado que esse é um caminho sem volta.
Um sistema assentado na exploração econômica de milhões de seres humanos não poderia produzir outra coisa. Conforme o capitalismo avança, a situação tende a ficar cada vez pior. A degeneração dos seres humanos, os trabalhos vis e humilhantes, a destruição dos vínculos de família sem que o Estado os substitua por outra realidade criam um mundo de dor, onde o único que avança é o egoísmo, o individualismo, o "salve-se quem puder”. E os setores mais oprimidos, como os jovens, as mulheres, em especial, as pobres e negras, os imigrantes, são as maiores vítimas.

domingo, 18 de novembro de 2012

Suíça é segundo destino do tráfico de pessoas no Brasil

 

     
Maurício Thuswohl no CORREIO DO BRASIL
             

Um estudo inédito sobre o tráfico internacional de pessoas divulgado em outubro pelo Ministério da Justiça revela que a Suíça é o segundo destino preferencial para onde são levadas as vítimas desse tipo de crime no Brasil.
No período analisado, entre 2005 e 2011, foram registrados 127 casos de cidadãos brasileiros levados à Suíça, em sua maioria mulheres, para fins de exploração sexual ou trabalho análogo à escravidão.
Ao todo, dentro do período analisado, foram registrados 475 casos de tráfico internacional de pessoas oriundas do Brasil. Entre as vítimas, 337 sofreram algum tipo de exploração sexual, 135 foram submetidas a algum tipo de trabalho forçado e 3 foram casos indefinidos. À frente da Suíça como destino preferencial aparece o Suriname, país que serve como rota de passagem para a Holanda, com 133 casos. Em terceiro lugar está a Espanha, com 104 casos, seguida pela própria Holanda, com 71 casos registrados pelas autoridades brasileiras.
A publicação do estudo foi possível graças a uma parceria entre a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) brasileira e o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC). Para sua elaboração, foram coletados dados e estatísticas criminais em outros órgãos da administração pública no país, como a Polícia Federal, a Secretaria Nacional de Segurança Pública e a Assistência Consular do Ministério das Relações Exteriores. A maior parte das vítimas, segundo o que foi levantado, é recrutada nos estados de Pernambuco, Bahia e Mato Grosso do Sul.
O perfil das vítimas, de acordo com a SNJ, obedece a um padrão, já que a maioria é constituída por mulheres entre 10 e 29 anos, solteiras e com baixos níveis de renda e escolaridade. Já o padrão dos criminosos é duplo. Na fase de aliciamento e tráfico, o crime é praticado em geral por mulheres. Já aos homens cabe atuar em uma “segunda fase” do crime, com o controle da prática a qual a vítima é submetida (geralmente prostituição), sempre obtido através de coerção e violência.
Apesar da divulgação do inédito diagnóstico, o governo brasileiro ressalta que os números certamente estão aquém da realidade dos fatos: “Esses números mostram somente aquilo que desaguou nos órgãos de segurança ou de atendimento às vítimas. Ainda temos um cenário de muitos dados ocultos”, afirma Fernanda dos Anjos, diretora do Departamento de Justiça da SNJ. O secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, concorda: “Uma das características do tráfico de pessoas é a invisibilidade das vítimas e a negação delas em se reconhecerem como tais”.
Ajuda suíça
Ciente do problema relativo ao tráfico de pessoas oriundas do Brasil, o governo da Suíça, por intermédio do Ministério das Relações Exteriores, apoiou material e financeiramente os trabalhos do UNODC no país entre 2008 e 2011. Nesses três anos, ao lado dos governos da Suécia e da Noruega, a Suíça aportou 50 mil euros anuais para aumentar a capacidade brasileira de combater esse tipo de crime. A ajuda suíça se inseriu no Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, lançado no Brasil pelo Ministério da Justiça em 2008 e que terá uma segunda edição em 2013.
“O controle e a prevenção ao tráfico de pessoas são compromissos do governo da Suíça, que acredita na construção de redes ativas entre setores públicos e privados da sociedade civil e em organizações internacionais como o UNODC para desenvolver mecanismos de cooperação e enfrentar o problema com eficiência”, afirmou o governo suíço em nota divulgada sobre a parceria firmada no Brasil.
De acordo com o Ministério das Relações Exteriores da Suíça, a maioria das vítimas do tráfico internacional de pessoas que chegam ao país é composta por mulheres forçadas a cumprir serviços domésticos ou se submeter à prostituição e outras formas de exploração sexual. Segundo o UNODC, a Tailândia e os países do Leste Europeu formam ao lado do Brasil o principal polo do tráfico internacional de pessoas tendo a Suíça como destino.
“Bom trabalho”
Para o coordenador da Unidade de Governança e Justiça do UNODC, Rodrigo Vitória, a ajuda vinda da Suíça e de outros países europeus tem sido fundamental para que o Brasil dê um salto de qualidade no combate ao tráfico de pessoas. Com essa ajuda, o UNODC realizou nos últimos três anos eventos em diversas cidades do país _ um deles, em São Paulo, contou com a participação da Rainha Silvia, da Suécia _ e participou ativamente do encontro para avaliação do primeiro Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, realizado em Belo Horizonte.
“O Brasil tem desenvolvido um bom trabalho em termos do enfrentamento ao tráfico de pessoas. O país está revisando sua legislação, e núcleos e postos foram criados aqui, o que é uma experiência muito interessante. A forma como o Brasil criou o seu segundo Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas se deu a partir de um processo amplamente participativo. O país está no caminho certo, atuando muito na área de prevenção e tentando também, na medida do possível, reforçar as forças policiais para melhorar a parte de investigação”, avalia o coordenador do UNODC.
Maurício Thuswohl, swissinfo.ch
Rio de Janeiro

sábado, 15 de setembro de 2012

Os palestinos nos livros escolares de Israel (Como se faz a desumanização de um povo)

Neste documentário, Nurit Peled-Elhanan fala de sua pesquisa relacionada com o conteúdo dos livros didáticos de Israel. Ela expõe em detalhes como estes livros são elaborados com o objetivo de desumanizar o povo palestino e fomentar nos jovens estudantes israelenses a base de preconceitos que lhes permitirá atuar de forma cruel e insensível com o mesmo durante o serviço militar. Conforme explica Nurit Peled-Elhanan, a construção de mundo feita a partir dos livros didáticos, por serem as primeiras a se sedimentarem na mente das crianças, são muito difíceis de serem erradicadas. Daí a importância que o establishment israelense dedica à ideologia a ser transmitida nos livros didáticos. Neles, os palestinos nunca são apresentados como seres humanos comuns. Nunca aparecem em condições que possam ser consideradas normais. Segundo Nurit Peled-Elhanan, não há nesses livros nem sequer uma fotografia de um palestino que mostre seu rosto. Eles são sempre apresentados como constituindo uma ameaça para os judeus.
 

sábado, 11 de agosto de 2012

Brasil pode ter sido mais decisivo que EUA nos golpes latino-americanos


Documentos ultrassecretos provam que a ditadura brasileira chegou a exportar técnicas de tortura à militares da região

The National Security Archive/Reprodução
O Brasil pode ter tido um papel mais importante que os EUA nas ditaduras latino-americanas, embora a articulação estreita entre Brasília e Washington para perseguir militantes de esquerda nos anos 60 e 70 seja ainda quase desconhecida para a história oficial.
A missão de desvendar os meandros dessa cooperação e o verdadeiro papel que militares e civis brasileiros desempenharam em ditaduras como as do Chile, Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia caberá à recém-instaurada Comissão da Verdade, diz o pesquisador norte-americano Peter Kornbluh em entrevista ao Opera Mundi.
[O ditador brasileiro Emílio Garrastazu Médici e o presidente dos EUA Richard Nixon]

Segundo Kornbluh – que esteve em maio em Brasília para reunir-se com membros da Comissão –, existem papéis ultrassecretos que provam que o Brasil exportou técnicas de tortura para os países vizinhos, além de fornecer respaldo político, ajuda financeira e suporte material para ditadores militares da região.
Leia mais:
"Comissão da Verdade brasileira tem de ser agressiva nas buscas", diz Peter Kornbluh

Nós sabemos, por exemplo, que o presidente (brasileiro Emílio Garrastazu) Médici e o presidente (dos EUA Richard) Nixon mantiveram um canal de comunicação ultrassecreto sobre a intervenção brasileira no Chile e, possivelmente, em outros países do Cone Sul no início dos anos 70”, diz Kornbluh, que é diretor dos Arquivos da Segurança Nacional. A organização de Washington, fundada em 1985, é especializada no requerimento, interpretação e publicação de documentos secretos norte-americanos liberados para consulta pública sobre os golpes na América Latina.

Documentos secretos obtidos pela organização de Kornbluh em agosto de 2009 revelam a cooperação estreita entre Nixon e Médici. Num dos memorandos revelados, o presidente norte-americano diz a seu colega brasileiro: "espero que possamos ter uma colaboração estreita, uma vez que há muitas coisas que o Brasil pode fazer, como país sul-americano, e nós, dos EUA, não podemos. A relação entre ambos era tão importante, diz a análise feita na época pela National Secutiry Archives, que ambos estabeleceram um canal privilegiado de contato, "como forma de manter a comunicação direta sem usar os canais diplomáticos formais".

Médici tinha como canal seu assessor direto, o chanceler Gibson Barbosa, mas "para assuntos extremamente privados e delicados", indicou o coronel Manso Netto. Do lado norte-americano, o contato era Henry Kissinger, conselheiro e confidente de Nixon. Toda a comunicação estabelecida por meio desse canal secreto permanece desconhecida.

Kornbluh começou a lidar com arquivos secretos na década de 60, quando investigou papéis do governo norte-americano sobre a crise dos mísseis em Cuba. Na época, a então União Soviética transportou para a ilha mísseis capazes de alcançar o território dos EUA em plena Guerra Fria. Kornbluh também mergulhou em arquivos do episódio que ficou conhecido como Irã Contras quando, em 1986, durante o mandato do então presidente Ronal Regan, figurões da CIA foram flagrados traficando armas para o Teerã, mesmo com o regime sob embargo. Ele publicou dois livros sobre o tema, além de um terceiro, mais tarde, sobre a ditadura no Chile, que recebeu do jornal americano Los Angeles Times a classificação de “livro do ano” de 1998.

O pesquisador norte-americano é figurinha fácil em programas de reportagem investigativa como o 60 Minutes, da rede CBS, e congêneres da CNN. Sua informações e análises sobre o papel dos EUA são conhecidas, mas o envolvimento com os arquivos brasileiros será algo novo, que pode revelar detalhes ainda desconhecidos – e desagradáveis – sobre o real papel brasileiro na história latino-americana.

Acusação direta

Em maio, o Opera Mundi publicou reportagem especial na qual fontes brasileiras e chilenas acusam a Embaixada do Brasil em Santiago do Chile de ter sediado as reuniões prévias ao golpe liderado pelo general Augusto Pinochet, além de ter facilitado o envio da primeira linha de crédito à ditadura chilena por empresários brasileiros, no valor US$ 100 milhões.

Arquivo pessoal

Peter Kornbluh: relutância das fontes militares brasileiras em liberar papéis é obstáculo para Comissão da Verdade do país

“O único brasileiro presente na noite em que a Junta Militar chilena prestou juramento, no dia 11 de setembro (dia do golpe), foi o então embaixador do Brasil no Chile (Antonio Castro do Alcântara Canto), em cuja residência foram feitas as reuniões-chave para que Pinochet se juntasse ao golpe", disse a jornalista e escritora chilena Mónica Gonzalez, autora do livro La Conjura – Os Mil e Um Dias do Golpe.

"Empresários de São Paulo financiaram o grupo de ultra-direita Patria y Libertad que perpetrou atividades terroristas para desestabilizar o governo [de Salvador] Allende. Torturadores brasileiros vieram ao Chile após o golpe para ensinar técnicas de tortura, interrogar e levar de volta ao Brasil ativistas brasileiros exilados no Chile", completou um dos assessores diretos de Allende, o atual diretor do PNUD (Programa da ONU para o Desenvolvimento), Heraldo Muñoz.

Para Kornbluh, declarações como as de Mónica e Muñoz podem ser provadas por documentos ainda desconhecidos. O pesquisador é um grande conhecedor do poder de certos papéis empoeirados. Em 1998, quando o democrata Bill Clinton era presidente, ele conseguiu a liberação de 24 mil documentos secretos da CIA, do Departamento de Defesa, do Departamento de Estado, do Conselho de Segurança Nacional e do FBI sobre a participação dos EUA no golpe de 11 de setembro de 1973, no Chile. Pouco tempo depois, Kornbluh aplicou o mesmo modelo de busca para o caso argentino, onde conseguiu acesso a mais de 5 mil informações até então reservadas da ditadura militar.

“A ironia poética do envolvimento dos EUA na América Latina é que isso criou um rico acervo que pôde ser usado para revelar quais violações dos direitos humanos foram cometidas no passado e quem as cometeu. Esperamos conseguir informações semelhantes no Brasil nos próximos meses”, disse.

Jogo duro

Kornbluh diz que um dos obstáculos ao trabalho da Comissão da Verdade no Brasil ainda é a relutância das fontes militares em liberar papéis, por exemplo, sobre a Guerrilha do Araguaia – movimento de resistência armada à ditadura que foi aniquilado pelo Exército Brasileiro em seguidas investidas, entre 1972 e 1975, na região norte.

Roberto Stuckert Filho/PR

Presidente Dilma Rousseff durante cerimônia de instalação da Comissão Nacional da Verdade, no Palácio do Planalto, em Brasília

Os documentos relativos à operação nunca foram revelados pelos militares, mesmo depois da condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em dezembro de 2010, pela “detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil e camponeses da região” do Araguaia. Eles dizem que os papéis foram todos destruídos.

Kornbluh diz que o argumento é comum e já foi usado em outras ditaduras da região. "Na Guatemala, a Comissão transformou num assunto o fato de os militares negarem informações, esconderem documentos. A publicidade disso fez com que alguns militares guatemaltecos dessem passos significantes adiante, liberando mais documentos sobre o papel do alto comando nas atrocidades massivas”, conta. “A Comissão de Verdade do Brasil deveria ser agressiva na busca por registros militares e, se os militares não cooperarem, deveria então estar preparada para dar publicidade geral, responsabilizando os que obstruírem os registros desta história negra.”

A sugestão foi, aparentemente, feita por Kornbluh aos membros da Comissão da Verdade no Brasil, embora o pesquisador tenha se negado a dar detalhes sobre o encontro realizado em Brasília, em junho.

terça-feira, 19 de junho de 2012

Dilma no pau-de-arara mineiro



Juremir Machado

Para quem gosta de insultar o bom senso com a conversa rasteira e reacionária sobre investigar e punir os tais dois lados, o jornal Estado de Minas traz um documento arrasador. Mostra como a atual presidente Dilma Rousseff foi torturada pela ditadura.

Quem pagou?

Quem foi punido?

Ninguém.

*

Documento traz detalhes da tortura sofrida por Dilma


Reportagem do EM que noticiou o julgamento em Juiz de Fora (Dilma aparece no banco dos réus, no alto à direita)  (Marcos Michelin/EM/D.A.Press - Reprodução)
“Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia”, conta Dilm
A presidente Dilma Vana Rousseff foi torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava até agora. Em Minas, ela foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram problemas graves na sua arcada dentária. É o que revelam documentos obtidos com exclusividade pelo Estado de Minas , que até então mofavam na última sala do Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG). As instalações do conselho ocupam o quinto andar do Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Um tanto decadente, sujeito a incêndios e infiltrações, o velho Maletta foi reduto da militância estudantil nas décadas de 1960 e 70.

Perdido entre caixas-arquivo de papelão, empilhadas até o teto, repousa o depoimento pessoal de Dilma, o único que mereceu uma cópia xerox entre os mais de 700 processos de presos políticos mineiros analisados pelo Conedh-MG. Pela primeira vez na história, vem à tona o testemunho de Dilma relatando todo o sofrimento vivido em Minas na pele da militante política de codinomes Estela, Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também Ana (menos conhecido, que ressurge neste processo mineiro). Ela contava então com 22 anos e militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dando origem à VAR-Palmares.
As terríveis sessões de tortura enfrentadas pela então jovem estudante subversiva já foram ditas e repisadas ao longo dos últimos anos, mas os relatos sempre se referiam ao eixo Rio-São Paulo, envolvendo a Operação Bandeirantes, a temida Oban de São Paulo, e a cargeragem na capital fluminense. Já o episódio da tortura sofrida por Dilma em Minas, onde, segundo ela própria, exerceu 90% de sua militância durante a ditadura, tinha ficado no esquecimento. Até agora.

Sede do Quartel General de Juiz de Fora, onde teriam ocorrido as sessões de tortura  (Roberto Fugêncio/ Tribuna de Minas)
Sede do Quartel General de Juiz de Fora, onde teriam ocorrido as sessões de tortura

Tortura psicológica
“Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: ‘Me dá o contato da organização com a polícia?’ Eles queriam o concreto. ‘Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura.’ A pior coisa é esperar por tortura.”
Ameaças
“Depois (vinham) as ameaças: ‘Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber’. Em São Paulo me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não lembro, pois os lugares se confundem um pouco.”
Sequelas
“Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.”
Sozinha na cela
“Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém. Havia um buraquinho na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban (Operação Bandeirantes), as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em Minas sempre ficava sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que eu estava presa: por exemplo, Maria Celeste Martins e Idoina de Souza Rangel, de São Paulo.”
Visita da mãe
“Em Minas, estava sozinha. Não via gente. (A solidão) era parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em São Paulo, logo após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la ”
Cena da bomba
 (Reprodução) 
“Em Minas, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 72 para Juiz de Fora (nunca me levaram para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª Região Militar, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro.”
Frio de cão
“Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o
‘prazer’ de conhecer o comandante general Sílvio Frota, que posteriormente me colocaria na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego.”
Motivos
“Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas.”
Morte e solidão
“Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida.”
Marcas da tortura
“As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim.”

 Escrito por Santana FM / Fonte Estado de Minas

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Israel manda demolir povoado palestino na Cisjordânia

Todas as casas do povoado beduíno de Deqeiqa, no sul de Hebron, receberam ordem militar de demolição, em um mais um exemplo da política de expulsão israelense na Cisjordânia ocupada, segundo denunciam organizações de direitos humanos.

Este povoado, situado nas empobrecidas e desérticas colinas do sul de Hebron, é lar de cerca de 400 pessoas que vivem da pecuária e não têm eletricidade, nem água corrente. Em janeiro, o exército israelense demoliu 17 estruturas, entre elas um sala de aula, precários estábulos e 12 casas, e agora outras 75 estruturas, a maioria casas, também correm o risco de serem derrubadas.

Segundo Alon Cohen, da ONG israelense Bomkom, o problema com Deqeiqa é que esta área "está situada a 650 metros da linha verde, e (os israelenses) querem transferir a população quatro quilômetros ao norte, ao povoado de Hameda", uma medida que considera "impossível", tanto pela falta de espaço, como por questões culturais já que os habitantes de Hameda são de outra tribo beduína.

Yariv Mohar, porta-voz dos Rabinos pelos Direitos Humanos, acredita que as autoridades israelenses "querem anexar o sul de Hebron para que passe a ser parte do Neguev, porque está muito perto da fronteira e tem poucos habitantes palestinos".

O argumento do Exército é que Deqeiqa, fora dos mapas israelenses, é um mero "agrupamento de casas" e que não pode se manter como comunidade.

O porta-voz da Coordenação das Atividades do Governo israelense nos Territórios Palestinos (COGAT), o comandante Gay Inbar, disse à Agência Efe que o Exército "ainda está examinando uma série de alternativas para melhorar o padrão de vida das povoações" nessa zona e disse que "quando souberem as opções abrirão um diálogo com os líderes tribais".

Contudo, os moradores deste povoado disseram que nenhum oficial entrou em contato com eles, exceto as ordens de demolição, e que estão há mais de um século vivendo nessas terras, e que não têm para onde ir.

Yousef Nayada, líder local, denunciou que "os israelenses constroem casas de luxo nos assentamentos enquanto retiram as dos palestinos". Sobre a transição para Hameda, o representante se opõe: "Lá (Hameda) não resta um só metro quadrado livre. Temos três mil ovelhas e cabras e 150 camelos, precisamos de espaço".

Para Cohen, existe um "claro apartheid no sistema de planejamento urbano na Área C", cerca de 60% da Cisjordânia, e onde Israel tem controle administrativo e de segurança, segundo estabeleceram os Acordos de Oslo.

"O assentamento de Carmel tem 2,2 mil dunams (220 hectares) para 360 habitantes, enquanto Hameda tem 300 (30 hectares) para os mesmos habitantes, e querem colocar lá os 400 de Deqeiqa".

Khalil Nayada, morador de Deqeiqa e pai de 12 filhos, disse que se sente angustiado depois que recebeu as ordens de demolição para suas três propriedades: um estábulo e dois edifícios de barro.

"Tenho que manter 14 pessoas. Temos 50 cabras e no ano passado, quase não choveu, gastamos cerca de 45 mil shekels (8,9 mil euros) e tivemos uma renda de 30 mil (5,9 mil euros)", disse.

Apesar das dificuldades, Nayada não quer sair da terra povoada por seus antepassados: "Meu avô nasceu neste povoado e morreu aqui em 1951".

A advogada Avital Sharon, que apelou no Supremo Tribunal contra as 34 ordens de demolição emitidas em novembro, explica que a corte não concedeu uma liminar para paralisar a demolição até que saia a sentença, por isso as casas poderiam ser derrubadas a partir de quinta-feira.

Avital também não vê uma solução na transferência forçosa para Hameda, sugerida pelas autoridades militares israelenses, já que "os beduínos têm sua própria terra natal, que todas as tribos reconhecem, e não podem ir até outro povoado e pegar suas terras. As famílias de Hameda nunca o permitirão", disse.

"Israel não faz planos urbanísticos para os beduínos, mas sim para os assentamentos. A discriminação é tão óbvia que não pode ser ignorada. Inclusive, legalizam retroativamente as colônias e descumprem ordenes de demolição dos tribunais. Quando querem, o fazem, mas não será assim em Deqeiqa", concluiu.




Fonte: EFE, Patria Latina

sábado, 19 de maio de 2012

64 anos do Nakba: A limpeza étnica da Palestina e as responsabilidades ocidental e brasileira

Por Idelber Avelar na REVISTA FORUM

Imagens do êxodo palestino em 1948

I -Palestina Árabe

A derrota que os árabes impuseram ao domínio bizantino na Palestina, confirmado entre os anos 633 e 638 da era cristã, foi bem recebida pela população local, tanto por cristãos como por judeus e samaritanos, que ainda eram grupos numericamente importantes na região. Estes últimos grupos tinham todos os motivos para preferir a organização árabe, vítimas que já eram da intensa perseguição cristã, que só pioraria com os séculos (aliás, no início do período árabe na Palestina—que se estenderia pelos próximos 1.300 anos–, uma pequena população judaica voltaria a se estabelecer em paz em Jerusalém, depois de 500 anos de ausência, que datavam da sangrenta expulsão que os romanos lhe haviam imposto no segundo século da era cristã). O período árabe também foi bem recebido pelos cristãos da região, que “eram arameus [e] não ficaram incomodados pela organização árabe, pois a etnia era semelhante, de origem semítica”, não tendo eles “motivos para gostar da administração bizantina, de origem romana, não semítica”1. Na Palestina árabe, apesar de um imposto específico para judeus e cristãos, eles gozavam de proteção como “Povos do Livro”, e a atmosfera não tinha muito em comum com o regime de terrorífica perseguição que se instalaria nas regiões controladas pelo Cristianismo. A Sura 2 de Maomé explicitamente rejeita a conversão e o proselitismo violento: “Não obrigueis ninguém em assuntos de religião”. A violência sectária só voltaria a se disseminar na Terra Santa com as empresas cristãs de conquista conhecidas como Cruzadas, a primeira das quais foi proclamada pelo Papa Urbano II em 1095 e resultou no estabelecimento do “Reino de Jerusalém”, em 1099, uma fortaleza de reduzidas relações com seu entorno árabe, ironicamente semelhante, neste aspecto, ao enjaulamento que as construções israelenses ilegais hoje impõem a Jerusalém.
As cruzadas à Palestina enfrentariam os muçulmanos locais aos invasores cristãos, com a pequena população judaica da região frequentemente lutando ao lado daqueles contra estes, como em 1099, em Jerusalém, e em 1100, em Haifa. No século XII, na época da Segunda Cruzada, os muçulmanos se reunificam politicamente sob o comando do General Saladino, curdo nascido em Cairo. Saladino recupera Damasco (1174), Acre, Jafa, Beirute, e a própria Jerusalém, em 1187. Na Terceira Cruzada, Ricardo Coração de Leão derrotaria Saladino, forçando-o a negociar e celebrar o tratado de paz que “abriu caminho a um período de calmaria militar e tolerância religiosa na Palestina”2, permitindo aos cristãos visitar os lugares sagrados. A Quarta Cruzada (1199) planejava tomar o Egito por mar, mas fez um desvio para a região da atual Turquia, instalando o Império Latino de Constantinopla. A Palestina só voltaria a ser afetada pela Cruzada de Federico II que, conhecedor da língua árabe, foi capaz de “obter do sultão a entrega pacífica, embora condicionada, de várias terras e das cidades de Belém, Nazaré e Jerusalém, onde o imperador entrou e foi coroado em 1229”3. Já em 1244, Jerusalém voltaria ao poder dos árabes, e o último reduto cristão na Palestina, São João de Acre, cairia em 1291. O controle de toda a área entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo—os atuais territórios de Israel e da Palestina Ocupada—permaneceria em mãos árabes até a invasão turco-otomana, em 1517. Mesmo durante o período marcado pela sua incorporação ao Império Turco-Otomano (de 1517 até 1917, com uma interrupção egípcia durante a década de 1830), a Palestina manteria sua enorme maioria árabe, organizada segundo laços sociais bem arraigados na região, que o império turco não alteraria significativamente.
As sucessivas demonstrações de desmemória na política ocidental para o Oriente Médio contrastam com o forte arraigo que certos eventos históricos possuem na reminiscência das massas árabes. Em 1993, acusado de estar celebrando com os israelenses, em Oslo, um tratado que não concedia nada aos palestinos e o instalava na posição de cão de guarda de Israel, o líder Yasser Arafat insistia, um pouco pateticamente (dadas as condições em que negociava), que ele não celebraria qualquer paz, mas “a paz de Saladino”. O leitor dos EUA não tinha a menor noção do que se referenciava ali, mas o povo árabe não deixava de notar a ironia involuntária da impotente insistência de Arafat na menção a Saladino. Antes de entrar no período histórico que imediatamente influencia o curso dos acontecimentos que nos ocupam, portanto, é boa ideia lembrar alguns fatos que se desprendem desse esquemático sumário de alguns séculos de história palestina. Inicia-se no século VII uma intensa arabização da região, que já era visível em séculos anteriores a Maomé, mas que solidifica suas raízes com a chegada dos árabes a Jerusalém, em 638, e a construção da mesquita Al-Aqsa. Durante os próximos 1.300 anos os árabes serão a grande maioria em toda a região da Palestina. No período das Cruzadas, estima-se que havia em torno de 1.000 famílias judias na região.4 Em 1914, já depois das primeiras ondas migratórias estimuladas pelo sionismo, a Palestina (ainda, naquele momento, sob domínio otomano) tinha uma população de 657.000 árabes muçulmanos, 81.000 árabes cristãos e 59.000 judeus.5 De acordo com o censo da Palestina de 1922, feito pelos britânicos, a população era 78% muçulmana, 9,6% cristã (árabe, claro) e 11% judaica. No entanto, no jornalismo “ponderado” sobre a região, mesmo depois de 60 anos de limpeza étnica e 43 anos de ocupação ilegal, você verá desinformados funcionários da grande mídia dissertando, “mui ponderadamente”, sobre os “direitos” dos dois povos sobre a Palestina.
O domínio otomano sobre a Palestina dura de 1517 a 1917, com uma interrupção de 10 anos de administração egípcia na década de 1830. A submissão ao império turco não altera de forma significativa o regime de posse baseado na renda agrícola das terras, já visível no período do sultanato, anterior aos otomanos. Esse sistema relativamente descentralizado de vilas e aldeias, com arrecadação por senhores de terras e trabalho de cultivo por lavradores, arraiga-se na região e ajuda a explicar o terror dos palestinos com—e sua impotência para se defender contra—a violenta campanha de confisco de terras e separação de raças que se inicia com o armamento dos sionistas, nas décadas que antecedem a fundação do estado de Israel. Nas primeiras décadas do século XX, o sionismo armado traria à região um modelo eminentemente europeu de organização territorial e compreensão do espaço, caracterizado pela acumulação, posse e construção de barrreiras fronteiriças. Munidos desse olhar que historicamente relativiza os fatos, nos preparamos para explicar alguns “mistérios” que cercam a história recente: como foi possível que metade de uma população árabe palestina que já se media em bem mais de um milhão tenha sido expulsa tão rapidamente por algumas dezenas de milhares de colonos sionistas? Como foi possível que o nascente estado judeu tenha adquirido uma supremacia tão incontestável no conflito com seus vizinhos árabes e com os palestinos? Para repetir a pergunta que abre um artigo já clássico de Walid Khalidi: Por que os palestinos foram embora?6Observando a realidade relativamente fluida de comunicação entre as aldeias árabes, a intensa organização acumuladora de terras e de armas entre os colonos sionistas e o papel das grandes potências–particularmente da Grã-Bretanha—no processo, começamos a vislumbrar a explicação, que só se completará, claro, com um estudo do que aconteceu em 1948. A compreensão dessa diferença nos regimes de posse da terra, no entanto, é parte da explicação da vitória sionista. Essa explicação, aliás, não tem a menor necessidade de recorrer a estereótipos antissemitas do judeu mais esperto ou conspirador, nem a estereótipos antissemitas do árabe mais atrasado ou indolente, nem a falsificações da mitologia oficial israelense, que repetiram durante décadas que os palestinos saíram voluntariamente ou obedecendo a misteriosas ordens radiofônicas dos próprios árabes, mentiras já cabalmente corrigidas pela própria historiografia israelense.
531 aldeias palestinas foram destruídas no Nakba

II – Da Declaração de Balfour (1917) à Palestina do Mandato Britânico (1922-48)

Quando se estuda o processo histórico pelo qual se chegou à atual, desastrada situação na Terra Santa, salta aos olhos a responsabilidade das potências ocidentais que, ao longo do século XX (para nos atermos à história mais recente), jogaram um jogo duplo, perigoso e marcado pela reversão do que se havia dito antes. Pensando em seu próprio interesse e em completa desconsideração pelo destino de milhões de civis inocentes, a Grã-Bretanha literalmente toca fogo na região, ao fazer promessas contraditórias aos povos árabes e ao movimento sionista. O reino de Sua Majestade não possui sequer a desculpa de que se tratava de uma causa nobre. Era 1916 e 1917, e tratava-se da consolidação de sua coalizão na Primeira Guerra Mundial. Ao contrário da Segunda Guerra, defensável como reação legítima à agressão nazi-fascista, a Primeira é um típico conflito napoleônico-clausewitziano moderno, um choque entre impérios. A Turquia, aliada dos alemães, mantinha a Palestina árabe sob o seu império otomano (como se viu acima, um jugo relativamente frouxo, onde a vida palestina seguia com considerável autonomia, situação que nem de longe tinha nada em comum com o horror das posteriores expulsão e ocupação israelenses). Interessada em atrair os árabes, a Grã-Bretanha promete para depois da guerra, em correspondência oficial entre Sir Henry Mac Mahon e o xeque Hussein, de Meca, a criação de um estado independente nas províncias do império turco em que se falava o árabe. A luta dos árabes contra a dominação otomana acabaria sendo decisiva para a vitória de seus aliados britânicos naquele front. Toda a evidência histórica demonstra que as lideranças árabes esperavam que os britânicos cumprissem sua palavra e confirmassem o estado árabe independente depois da guerra. Não foi o que aconteceu.
Ter prometido algo aos árabes não impediu que a Grã-Bretanha celebrasse com a sua aliada França um tratado contraditório com a promessa anterior. Os acordos de Sykes-Picot, de 1916, entre Grã-Bretanha e França, reservavam aos franceses a Síria e o Líbano. Em 1917, as forças otomanas se rendem ao general britânico Allenby em Jerusalém e em 1918 se confirma o fim do regime otomano na Palestina. O Tratado de Versalhes, de 1919, selaria o arranjo de Sykes-Picot entre França e Grã-Bretanha, deixando aos britânicos a área da Jordânia (então chamada de Transjordânia), do Iraque e da Palestina. A Liga das Nações, fundada depois da guerra, avalizaria esse arranjo, segundo o qual as duas potências ocidentais se responsabilizariam por um “mandato” temporário sobre essas regiões, até a sua independência formal. Em 22 de julho de 1922, a Liga das Nações aprova o mandato britânico na Palestina, que deixaria como legado o progressivo armamento dos colonizadores sionistas e a catástrofe palestina de 1948.
Ao mesmo tempo em que prometia independência aos árabes, o império britânico fazia sua famosa promessa ao movimento sionista internacional, a Declaração de Balfour (1917), patentemente contraditória com a promessa feita aos árabes e com o próprio arranjo subjacente a Sykes-Picot e a Versalhes. Enviada pelo secretário exterior britânico Arthur James Balfour ao Barão Rotschild, para transmissão à Federação Sionista da Grã-Bretanha e da Irlanda, a declaração mudaria a história do Oriente Médio: “O governo de Sua Majestade vê favoravelmente o estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e usará seus melhores esforços para facilitar a realização desse objetivo, ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judias existentes na Palestina, ou os direitos e status político desfrutados por judeus em qualquer outro país”. Apesar de que a declaração mencionava a preservação de todos os direitos da população nativa, é evidente que “Balfour não tinha nenhum interesse em consultar os árabes da Palestina acerca de seu futuro”7. Em suas memórias, Lloyd-George, primeiro-ministro em 1917, se refere à declaração como uma recompensa a Chaim Weizmann, um dos líderes sionistas mais importantes daquele momento (depois primeiro presidente de Israel) e químico que havia desenvolvido um método de sintetizar a acetona na produção de pólvora. A declaração também está inserida na tentativa de mobilizar as comunidades judaicas da Rússia e dos EUA no apoio aos esforços de guerra britânicos, e termina sendo um enorme estímulo ao movimento sionista. Depois da vitória aliada, o próprio Chaim Weizmann participaria da Conferência de Paz de Paris, em 1919, clamando por uma “Palestina tão judia como a Inglaterra é inglesa”8, num momento em que os judeus representavam não mais que 10% da população da Palestina. No ano seguinte, fundava-se na Palestina a Hagana, organização paramilitar judaica depois responsável pelo extermínio ou limpeza étnica de centenas de aldeias palestinas.
Só depois de três décadas (1880-1910) de migração, compra de terras e armamento sionistas é que aparecem os primeiros registros de preocupação entre as lideranças palestinas. Em 06 de maio de 1911, o palestino e membro do parlamento otomano, Said al-Husayni, apontava que “os judeus planejam criar um estado na área que incluirá a Palestina, a Síria e o Iraque”9. Segundo o historiador israelense Ilan Pappe, já entre 1905 e 1910 há alguma evidência de discussão, entre líderes palestinos, do fenômeno do sionismo como movimento político que acumulava poder e terra. Mas só a partir da queda do regime otomano na Palestina (1917) e o começo do período britânico (ocupação em 1918, mandato da Liga das Nações em 1922), o movimento sionista se lançaria paulatinamente a um plano de limpeza étnica dos árabes. Ali passa a ser visível a preocupação sistemática e, por vezes, o pânico das lideranças palestinas com as ondas migratórias, a acumulação de terras e a violência física que se iniciava. Mas ao longo das duas últimas décadas do século XIX e das duas primeiras do século XX, a imigração sionista não esteve entre as grandes preocupações dos palestinos.
Campo de refugiados Nahr al-Barid, Líbano, inverno de 1948

Na década de 1920, os palestinos representavam ainda uma maioria de 80% a 90% na região. A tentativa inglesa de construir estruturas paritárias que reconciliassem as promessas contraditórias feitas por eles ao povo árabe e ao movimento sionista encontrou compreensível resistência entre os palestinos, que “se recusaram, no começo, a aceitar a sugestão britânica de paridade, especialmente uma paridade que os colocava na prática em desvantagem—o que incentivou os líderes sionistas a endossarem-na”10. Começa a se desenhar ali um paradigma que seria reconhecível até os dias de hoje: 1) instala-se uma mediação ocidental que recomenda uma solução patentemente favorável ao sionismo; 2) os árabes protestam, apontando, como no caso em questão, que a paridade entre um povo que representa 90% da população e outro que totaliza 10% contraria o mais elementar princípio da democracia; 3) a liderança sionista, com intenso trabalho de relações públicas, manifesta concordância tática com a solução apresentada, sabendo que a recusa árabe os coloca na posição de, ao mesmo tempo, aceitar um plano e não se comprometer com ele; 4) enfraquecidos politica e militarmente, os representantes árabes voltam atrás e aceitam a solução originalmente apresentada pela potência ocidental; 5) ante a concordância árabe com o plano, é a vez da liderança sionista dizer que a solução lhe é inaceitável, o que lhe permite arrastar o impasse e, a partir de sua posição de força, aboncanhar mais e mais, ao mesmo tempo em que adia outra vez uma solução definitiva; a vitória não impede que a liderança sionista prolongue o impasse, reinstalado por um aumento das suas exigências; 6) esse prolongamento faz com que todo o ciclo se reinicie, com mais concessões árabes e mais impasse, até o ponto a que chegamos hoje, em que a população palestina já não tem o que oferecer, exceto alguma forma mágica de desaparição. Esse filme se repete com macabra previsibilidade, ante o olhar conivente das potências cúmplices (Grã-Bretanha e, depois, os EUA), desde 1928, vinte anos antes da fundação do estado de Israel. É a data em que as lideranças palestinas, “apreensivas com a crescente imigração judia ao país e com a expansão de seus assentamentos colonizadores, concordam com a fórmula [paritária] como uma base para as negociações”11. É a data em que os sionistas já não a aceitam e os britânicos permanecem de braços cruzados. Esses mesmos sete passos se repetirão em 1947-48, no episódio que os apologistas da ocupação israelense descrevem como o momento em que as Nações Unidas ofereceram um plano de partição “que os judeus aceitaram e os árabes recusaram”. Já veremos adiante todo o contexto que essa frase omite.
Entre 1924 e 1928 chegam mais 67.000 judeus (metade dos quais oriundos da Polônia), elevando a população judaica para 16% do total da Palestina do Mandato. Naquele momento, os judeus são donos de 4% da terra na Palestina. O censo de 1931 registra uma população de 1,03 milhão de almas, 16,9% judeus. A não implementação, por parte da Grã-Bretanha, da fórmula paritária que ela própria havia proposto, leva à rebelião árabe de 1929, o primeiro grande sinal de descontentamento com a política imposta no Mandato. Imagine um povo que representa quase 85% da população se rebelando, em sua própria terra, para ter a paridade que lhe havia sido proposta com os outros 15% que acabavam de chegar. Agora imagine que a autoridade administrativa responsável pela proposta se beneficiara da colaboração desse povo, como aliado seu, numa guerra mundial, e que a moeda de troca oferecida por essa colaboração não era paridade nenhuma, mas um estado seu, autônomo, em suas terras. Com isso você terá os elementos centrais para entender a primeira rebelião de desobediência civil árabe na Palestina moderna. Os confrontos em torno ao Muro das Lamentações em 1929 levam à morte de 133 judeus e 116 árabes, a maioria por mãos inglesas.12 Em 1931, funda-se o Irgun, outra organização paramilitar judia que se caracterizaria pelos ataques sangrentos aos árabes.
Ao se completar uma década e meia da queda do regime otomano e uma década da implantação do Mandato Britânico na Palestina, vão se configurando os elementos que produziriam a tragédia: 1) o fim da ameaça otomana ao sionismo, que depois de 15 anos já não tem que temer qualquer eventual expulsão sua da Palestina vinda do regime de Istambul; 2) o pesado armamento de grupos paramilitares sionistas como a Hagana e o Irgun, que vão acentuando a escolha por conquista e violência; 3) a perplexidade das lideranças palestinas, arraigadas em séculos de organização social descentralizada e não equipadas por sua experiência para se contrapor de forma efetiva à ofensiva territorial e armamentista do sionismo; 4) a incapacidade de setores das elites árabes de perceber a natureza do fenômeno sionista, vendo-o muito mais como uma “tentativa irresponsável por parte da Europa de transferir ao país o seu povo mais pobre e sem estado”13; e evidentemente 5) a subida ao poder do Partido Nacional Socialista alemão, que em menos de uma década alçaria 19 séculos de antissemitismo a níveis jamais vistos, com a intensa campanha de perseguições, agressões bélicas e matanças que culmina, já numa Europa em guerra, com o genocídio de 6 milhões de judeus.
Poster da organização paramilitar judaica Irgun, 1937

Qual é, então, a Palestina que assiste à invasão hitlerista da Polônia que dá início à Segunda Guerra Mundial em 1939? Robert Fisk acerta ao descrevê-la como presa a uma “atmosfera de suspeita, paranóia e intenso sofrimento”, tanto para árabes como para judeus, “os primeiros com medo de a Grã-Bretanha acabar autorizando a fundação do estado israelense em suas terras, e os segundos observando a aniquilação de sua raça na Europa”14. Não há dúvidas de que, na medida em que vão ficando visíveis as dimensões do Holocausto judeu na Europa, reforça-se a percepção sionista de que a implantação de seu estado na Palestina é uma questão de sobrevivência. Mas antes mesmo do início da Segunda Guerra Mundial, em 1938, a voz de historiadores como George Antonius já se levantava contra a eventual “resolução” do problema às custas dos árabes palestinos:
O tratamento dado aos judeus da Alemanha e outros países europeus é uma vergonha para seus autores e para a civilização moderna; mas a posteridade não exonerará nenhum país que não consiga enfrentar sua parte dos sacrifícios necessários para aliviar o sofrimento e a angústia dos judeus. Impor a maior parte da carga à Palestina árabe é uma miserável forma de esquivar-se das responsabilidades que deveriam recair sobre todo o mundo civilizado. Também é moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo em uma tentativa de pôr fim à perseguição de outro. O remédio para a expulsão dos judeus da Alemanha não deve ser buscado na expulsão dos árabes de sua pátria; e também não se conseguirá o alívio da angústia dos judeus às custas da angústia de um povo inocente e pacífico.15
Seria difícil formular o protesto em termos mais claros e moralmente firmes que os de Antonius. Suas palavras datam de 1938 e são, portanto, anteriores à guerra e aos horrores dos fornos crematórios nazistas; precedem, em uma década inteira, a fundação do estado de Israel e a expulsão de 750.000 palestinos de suas terras. Mais de sete décadas depois de enunciadas, elas ainda ecoam em sua atualidade e retidão ética.

III – A responsabilidade da diplomacia brasileira no Nakba: Oswaldo Aranha

Antes de transferir a questão da Palestina às mãos das Nações Unidas, em fevereiro de 1947, os ingleses apresentaram a proposta de um estado binacional, rejeitada pelos sionistas. Na mitologia oficial israelense, é frequente a referência à rejeição árabe do plano de partição apresentado pela ONU em 1947, mas é muito menos comum qualquer menção à rejeição sionista do plano inglês de um estado binacional. Já antes da transferência da questão à ONU, a liderança sionista tinha bastante claro que a Grã-Bretanha saía da Segunda Guerra Mundial como uma potência de segunda ordem, muito mais interessada, portanto, em abandonar o imbróglio da Palestina que em ajudar a resolvê-lo. Também já estava claro para os sionistas que só restavam os britânicos entre eles e a execução do plano de limpeza étnica, e que a saída britânica da região era iminente. O imperialismo ocidental mais uma vez largava um desastre de sua criação nas mãos de uma população nativa não equipada para resolvê-lo. Qualquer semelhança com o Iraque atual não é mera coincidência.
O Brasil também tem sua responsabilidade histórica no arranjo que produz a catástrofe palestina. Foi Oswaldo Aranha, diplomata brasileiro, quem presidiu as discussões que levariam à fundação do estado de Israel. Até mesmo a hagiográfica biografia de Aranha escrita pelo norte-americano Stanley Hilton dá alguma ideia do que foram as manobras do diplomata brasileiro. Convocado pelo general Dutra em 1947, Aranha seria o representante brasileiro no Conselho de Segurança da recém fundada Organização das Nações Unidas. Depois, seria eleito presidente da sessão especial da Assembleia Geral encarregada de discutir o problema da Palestina. Aranha prometeria aos representantes árabes “plena liberdade de discussão” do tema, logo depois que a Assembleia rejeitara uma proposta árabe para que se incluísse na agenda a questão da independência da Palestina. Não foi o que aconteceu. Ante a observação do Grã Mufti de Jerusalém, de que “os judeus queriam se apoderar da Palestina para sua maior expansão na região”, Aranha retrucou que “a opinião do Mufti não me interessa”16. A recomendação do comitê enviado à Palestina foi favorável ao ponto de vista sionista, ou seja, a partilha, por uma maioria de sete votos (num total de onze). Mas na Asssembleia Geral, vinte países se abstiveram e a recomendação não teve os dois terços necessários. Hilton relata que os últimos dias de novembro foram de crescente tensão, e que apesar das declarações públicas de Aranha, de que não exerceria nenhuma influência, sua atuação nos bastidores era fortemente alinhada com os sionistas, fato reconhecido por Abba Eban, membro da equipe negociadora da Agência Judaica na ONU17.
Quando a liderança sionista percebe que ainda não detinha a maioria, inicia uma manobra pelo adiamento da votação. Aranha “inteirado da situação, usou de sua autoridade para ajudar: quando terminaram alguns discursos protelatórios encomendados, anunciou ‘com irreverência’ que, sendo período de férias nos Estados Unidos, seria justo que a Assembleia o respeitasse e suspendeu a sessão”18. Quando se reabriram os trabalhos, no dia 29 de novembro, eram os árabes que sentiam que haviam perdido terreno. Tentaram adiar o voto. Aranha ignorou uma moção do Irã, que pedia um reexame da questão palestina e um adiamento dos trabalhos para janeiro de 1948. Aranha, que tinha “a mão mais rápida no martelo que já vi”, segundo a expressão de Abba Eban, procedeu a conduzir a votação, que aprovou a partição da Palestina por 33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. Note-se aí, claro, a limitada representatividade da ONU naquele momento anterior à descolonização na África e Ásia. Os árabes, num padrão que se repetiria ao longo do anos, deixaram o espaço livre para os sionistas ao se retirarem do recinto. Chaim Weizmann, que seria o primeiro presidente de Israel, testemunhou a Aranha que “a sessão da Assembleia não poderia ter terminado com esta decisão histórica [...] se não fosse vosso esforço persistente e vossa devoção como presidente”19.
Musa Kazim al-Husseini, ex-prefeito de Jerusalém, espancado por tropas inglesas

Em 29 de novembro de 1947, quando a ONU adotou a resolução de partição da Palestina, os árabes representavam dois terços da população da região. Eles eram aproximadamente 90% no início do Mandato Britânico, em 1922. A partição proposta pelo Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina (UNSCOP, pela sigla em inglês) concedia ao terço judeu nada menos que 56% do território, deixando aos dois terços árabes somente 44% da terra. Por pressões do Vaticano e das nações católicas, a resolução da partição reservava à cidade de Jerusalém (de população de 200.000 pessoas, divididas mais ou menos igualmente entre árabes e judeus) a condição de área internacionalmente governada. A divisão demográfica dos dois putativos países era bizarra: no estado árabe, deveriam viver 818.000 palestinos, hospedando 10.000 judeus. No estado judeu, viveriam 438.000 palestinos entre 499.000 judeus. Esse estado detinha a esmagadora maioria das terra férteis e, das 1.200 aldeias palestinas, aproximadamente 400 estavam incluídas em seu interior, sob soberania sionista20. Elaborada pelo UNSCOP, cujos membros não sabiam muito sobre a Palestina, a partição se transformaria na Resolução 181 da ONU. Não é de se estranhar que a liderança palestina do momento a rejeitasse. Com o boicote palestino ao UNSCOP, com certeza um erro político grave, a liderança sionista, de ampla superioridade bélica, se viu livre para dominar também o jogo diplomático.
A amarga ironia da história, quando a vemos do ponto de vista árabe, é que, como já argumentou a própria historiografia israelense (Simcha Flapan, por exemplo), se os palestinos tivessem aceitado a partição, a liderança sionista com certeza a teria rejeitado21. Basta examinar as comunicações entre Ben-Gurion e a hierarquia sionista para ver como a rejeição árabe ao plano de partição permitiu ao sionismo aceitá-lo publicamente e ao mesmo tempo trabalhar contra ele. Logo depois da adoção da Resolução 181, Ben-Gurion afirmava ao círculo da liderança sionista que a rejeição árabe ao plano significava que “não há fronteiras territoriais para o futuro estado judeu” e que as fronteiras “serão determinadas pela força e não pela resolução de partição” (p.37). Respondendo a um líder sionista e ministro do exterior (Moshe Sharett) acerca das possibilidades de defender o seu território, Ben-Gurion afirmava: “seremos capazes não só de nos defendermos, mas de infligir golpes letais aos sírios em seu próprio país—e tomar a Palestina como um todo” (p.46). Essas comunicações, disponíveis para consulta nos próprios arquivos israelenses, demonstram claramente que a liderança sionista viu o plano de partição como uma conquista tática, que colocava em definitivo sobre a mesa a legitimidade de um estado judeu na Palestina e estabelecia um trampolim para conquistas posteriores. Essas conquistas, é certo, foram facilitadas pelo perplexo boicote palestino ao Comitê da ONU. Reitere-se, então, que as citações de Ben-Gurion acima são parte de uma ampla documentação que prova que a liderança sionista jogou um jogo duplo e não se comprometeu com a partição como fórmula definitiva. Isso jamais é mencionado pelos apologistas da ocupação de Israel que repetem a consigna de que “os judeus aceitaram a partição de 1947 e os árabes a rejeitaram” como justificativa dos crimes cometidos por Israel em 2010, e bem além dos limites dessa partição.
Antes de descrever a expulsão dos palestinos de suas terras, mais um elemento do xadrez político legado pelo Mandato Britânico deve ser explicado: o acordo sionista-jordaniano que deixa os palestinos sem o apoio do principal exército árabe na Guerra de 1948 e à mercê do superior poder bélico sionista. Aliada dos ingleses na Primeira Guerra Mundial, a família real Hashemita havia recebido os reinos da Jordânia e do Iraque como recompensa por seus serviços. O que passou a ser conhecido como Transjordânia “era um pouco mais que um principado desértico e árido ao leste do Rio Jordão, cheio de tribos beduínas e aldeias circassianas” (p.43). As férteis terras da Palestina situadas a oeste do Rio Jordão, no que hoje é conhecido como Cisjordânia (ou seja, o grosso do território do que é, legalmente, a Palestina atual), passaram a ser objeto da cobiça da família real Hashemita. Havia poucos judeus ali, e entre 1946 e 1947 a realeza jordaniana e a liderança sionista chegaram um acordo: os jordanianos não interfeririam na guerra árabe-israelense que se avizinhava—promessa que os jordanianos cumpriram—e a região da Cisjordânia seria anexada pelo reino dos Hashemitas, sem interferência sionista—promessa que os israelenses quebraram em 1967, ao ocupar o território e mantê-lo sob seu controle, picotagem policial e colonização armada até hoje. Também ali se instalaria um paradigma repetido incontáveis vezes desde 1948. Acuados pelo poder superior dos sionistas, as elites árabes vizinhas rifavam os palestinos, deixando-os entregues à própria sorte num jogo no qual não tinham nenhuma chance. É mais um elemento da tragédia do Oriente Médio.
Revisando os diários de Ben-Gurion e os arquivos israelenses posteriores à partição, o historiador Ilan Pappe encontra certa surpresa e júbilo entre a liderança sionista com o caráter limitado da reação palestina ao recorte de suas terras. Seguindo-se à Resolução 181, os palestinos se limitam a convocar uma greve geral de três dias, durante a qual a repressão inglesa foi duríssima. As revoltas árabes que aconteceram entre 1936 e 1939 deram também à organização paramilitar judia Hagana sua primeira experiência na execução das táticas militares aprendidas com a Grã-Bretanha. A destruição da liderança política palestina seria decisiva para o rumo posterior dos acontecimentos. O quadro que precede a guerra de 1948 é de intenso armamento sionista, coincidindo com um momento de particular fragilidade da liderança palestina, destroçada pela repressão britânica à revolta de 1936-39. No jogo diplomático, começa a pesar a consciência culpada da Europa, em choque com as dimensões gigantescas do Holocausto judeu, recém perpetrado. Quebrar as promessas feitas aos árabes era preço relativamente pequeno para expiar, às custas de outrem, a culpa européia pelo judeocídio. No xadrez político da região, o acordo sionista-jordaniano neutralizava o principal exército árabe. Em pânico com os constantes ataques dos grupos paramilitares judeus (Hagana, Irgun e Stern), a população autóctona, já em 1947, começa a perceber o poderio sionista como uma força imbatível. Estava aberto o caminho para a limpeza étnica da Palestina.

IV – A preparação da expulsão

Toda sorte de distorções e mitos já foram circulados sobre o que aconteceu na Palestina entre o final de 1947 e o começo de 1949. Na mitologia oficial israelense, no senso comum, no jornalismo mais venal ou preguiçoso, nas Wikipédias e até mesmo em livros embalados como se fossem de pesquisa historiográfica séria, essas distorções foram sedimentando uma coleção de narrativas que recorrem a falsificações não raro contraditórias entre si: 1) que o povo palestino como tal não existia; 2) que ele existia mas que saiu voluntariamente de suas terras em 1948; 3) que não saiu voluntariamente, mas que tampouco foi vítima do sionismo, pois abandonou suas aldeias atendendo a ordens radiofônicas dos próprios árabes; 4) no ramo da pseudo-historiografia sem-vergonha, paga para mentir, já apareceram até livros sobre como os palestinos não eram tão antigos assim na região, já que eles teriam chegado também em imigração recente. Essas diferentes versões da mitologia oficial vão se sucedendo ou se combinando, a gosto do freguês, formando uma geleia geral de enganação empacotada. Acompanham-na algumas frases que, até corretas em si mesmas, omitem um universo de contexto que lhes transforma o sentido, como é o caso de “os sionistas aceitaram a partição proposta pela ONU, os árabes, não”, analisado acima, e “a guerra de 1948 foi iniciada pelos palestinos”, mantra que é essencial em todo mascaramento do processo.
Expulsão em aldeia palestina durante o Nakba

Como se sabe agora, a liderança militar sionista ficou surpresa com o caráter limitado dos protestos palestinos que se seguiram ao decreto da partição, em novembro de 1947. Afinal de contas, seu território havia sido rachado com uma comunidade minoritária de colonos, que receberam não só um naco de 56% do território, desproporcional à sua representação na população, mas um naco que continha pelo menos 400 aldeias palestinas, nas quais 800.000 palestinos deviam seguir vivendo sob soberania imposta e recém chegada. Ao longo dos dias que se seguem à partição, o comando sionista se reúne para encontrar formas de ataque possíveis, ante a ausência de pretextos. Os arquivos estudados por Ilan Pappe, das reuniões a liderança judaica na Palestina, dão amplo testemunho do planejamento da limpeza étnica. Os fazendeiros dos Kibbutzim transformavam suas cooperativas em postos militares, enquanto nas aldeias palestinas a vida seguia seu curso, no qual a “normalidade era a regra e a agitação a exceção”, segundo os informes do próprio Palti Sela, membro de uma unidade de inteligência sionista. Ao longo do mês de dezembro de 1947, anterior à guerra propriamente dita, as aldeias palestinas sofrem uma campanha de terror e intimidação das organizações paramilitares judias que representam o primeiro capítulo da limpeza étnica da Palestina.
A linguagem da ameaça foi prática comum naquele momento, como mostra o exemplo citado por Ilan Pappe, de panfletos lançados às aldeias sírias e libanesas na fronteira palestina: “Se a guerra for levada até você, ela causará expulsão massiva de aldeões, com suas mulheres e crianças … haverá matança sem piedade, sem compaixão” (p.56). Lembremos que nesse momento o sionismo já possui um mapa completo das aldeias palestinas, incluindo-se informação sobre água, possíveis defesas e indivíduos vinculados à resistência árabe durante os protestos de 1936-39. Esse mapeamento seria chave na destruição das centenas de aldeias palestinas e na expulsão de centenas de milhares de habitantes autóctonos da região No mês de dezembro se disseminam as ações que a Hagana chamava de “reconhecimento violento” (hassiyur ha-alim): invadir uma aldeia à noite, instaurar toque de queda, atirar em qualquer um que ouse sair de casa, permanecer durante algumas horas e ir embora. A aldeia de Deir Ayyub foi uma das vítimas de dezembro de 1947. Com aproximadamente 500 habitantes, ela acabava de comemorar a abertura de uma escola. Foi invadida por tropas judaicas que passaram a atirar indiscriminadamente nas casas. Deir Ayyub ainda seria atacada três vezes antes de ser destruída em sua totalidade em abril de 1948 (p.56). No nordeste da Galileia, na aldeia de Khisas, algumas centenas de muçulmanos coexistiam pacificamente há tempos com uma centena de cristãos. Até que no dia 18 de dezembro de 1947, tropas judaicas a invadiram e passaram a explodir casas durante a noite, provocando a morte de quinze aldeões, pelo menos cinco crianças. Ações como estas proliferaram ao longo de dezembro de 1947, e não costumam ser mencionadas pelos que justificam as atrocidades de Israel com o argumento de que “os palestinos iniciaram a guerra” em janeiro de 1948.
As ações de expulsão da população anteriores à declaração formal de guerra em janeiro de 1948 não se limitaram às aldeias pequenas. Na cidade de Haifa, principal porto da Palestina, 75.000 palestinos “foram submetidos a uma campanha de terror instigada conjuntamente pelo Irgun e pela Hagana. Como haviam chegado em décadas recentes, os colonos judaicos construíram suas casas no alto das montanhas. Viviam topograficamente acima dos bairros árabes e podiam disparar e lançar morteiros contra elas. Começaram a fazê-lo com frequência a partir do começo de dezembro. Usaram também outros métodos de intimidação: as tropas judaicas rolavam barris cheios de explosivos, e enormes bolas de aço, na direção das áreas residenciais árabes, lançavam óleo misturado com combustível nas estradas, que aí incendiavam. Os residentes palestinos, aterrorizados, corriam para fora de suas casas para tentar apagar o fogo, e aí passavam a ser alvo de rajadas de metralhadora” (p.58). A descrição documentada do que aconteceu em Haifa em dezembro de 1947 é importante porque a cidade é, com frequência, mencionada como exemplo de que as lideranças judaicas insistiram para que os palestinos ficassem e eles saíram “voluntariamente”.

V – Epílogo e promessa

Não está contada aqui, evidentemente, nada da história do Nakba propriamente dito. Para se entender a monstruosidade a que foi submetida o povo palestino, há que se conhecer os quatro planos de limpeza étnica da Palestina elaborados pela liderança sionista desde antes da II Guerra Mundial. O Plano A, também conhecido como “Plano Elimelech”, toma seu nome do líder do comandante da Hagana que, em 1937,  já elaborara, a pedido de Ben-Gurion, um projeto de limpeza étnica a ser executado no momento em que os ingleses abandonassem a Palestina. O Plano B foi escrito em 1946 e ambos depois se fundiram no Plano C, que previa: a) assassinatos seletivos da liderança política palestina; b) destruição da infraestrutura de transporte palestina; c) sabotagem específica às fontes de sustento da população nativa, como os moinhos; d) ataques escalonados às aldeias; e) bombardeios de ônibus, cafés, locais de reunião. O fundamental desse plano é mantido no projeto que é efetivamente executado, o Plano D (Dalet), anterior à guerra de 1948, e que previa a sistemática expulsão do povo palestino de suas terras.
O Plano Dalet já é consenso entre a liderança sionista em Dezembro de 1947, antes da oficialização da guerra. Ao cabo do processo de limpeza étnica, espantosamente curto e brutal, mais da metade da população palestina nativa (pelo menos 750.000 pessoas) foi expulsa, 531 aldeias foram destruídas e onze bairros urbanos foram esvaziados de sua população, um crime contra a humanidade de enormes proporções, ainda hoje negado e envolvido em falsificação. Hoje, os refugiados e seus descendentes vivem esparramados por, em números aproximados, Jordânia (2 milhões), Líbano (430.000), Síria (480.000), além de 800.000  que são parte da população palestina que mora sob ocupação militar israelense na Cisjordânia (2,3 milhões) e outro 1,1 milhão que vive sob bloqueio (e frequente bombardeio) militar israelense em Gaza. Outros 1,2 milhão de palestinos vivem como cidadãos de segunda classe em Israel. O melhor guia do Nakba é o livro de Ilan Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine, infelizmente ainda inédito em português. Pretendo publicar num futuro próximo, aqui pela Editora Publisher, um breve livro que contará um pouco dessa história.  Se você lê inglês e se interessa pelo acompanhamento diário do horror, sugiro o site Electronic Intifada.
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Referências fotográficas: aqui e aqui.  
Referências bibliográficas: otoRe.N
1 Aragão, Maria José. Israel x Palestina: Origens, História e Atualidade do Conflito (Rio de Janeiro: Revan, 2006), p. 23-4.
2 Aragão, p. 32.
3 Aragão, p. 33.
4 Heynick, Frank. Jews and medicine, An Epic Saga, KTAV Publishing House, Inc., 2002 p.103.
5 McCarthy, Justin. The Population of Palestine. (Nova York: Columbia UP, 1990), p. 37-8.
6 Khalidi, Walid. “Why did the Palestinians leave?” Journal of Palestine Studies 34.2 (2005): 42-54. Ver também Benny Morris, The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited (Cambridge: Cambridge UP, 2004). 
7 Fisk, Robert. A grande guerra pelo Oriente Médio. Trad. Sandra Dolinsky (São Paulo: Planeta, 2007), p. 432.
8 Pappé, Illan. The Ethnic Cleansing of Palestine (Oxford: OneWorld, 2006), p. 283.
9 Pappe, p. 11.
10 Pappe, p. 14.
11 Pappe, p.14.
12 Pappe, p. 283.
13 Pappe, p.12.
14 Fisk, p.511.
15 Antonius, George. Arab Awakening: The Story of the Arab National Movement (Londres: International Book Center, 1938), p. 387.
16 Hilton, Stanley: Oswaldo Aranha: Uma biografia (Rio de Janeiro: Objetiva, 1994), p. 439.
17 Eban, Abba. Personal Witness: Israel Through My Eyes (Nova York: Putnam’s Sons, 1992).
18 Hilton, p. 456.
19 Hilton, p. 459.
20 Pappe, p. 34-5.
21 Flapan, Simcha. The Birth of Israel: Myths and Realities (Nova York: Pantheon, 1987).