domingo, 27 de fevereiro de 2011

Como é que a Europa ajuda o racismo sionista


Sara Irving*www.odiario.info

ALIANÇA ENTRE A UNIÃO EUROPEIA E ISRAEL 
Nesta entrevista de Sara Irving com David Cronin é desmascarada a íntima colaboração entre a União Europeia e Israel, particularmente no campo da investigação tecnológica e militar. Num momento em que milhares de jovens investigadores da União Europeia são lançados no desemprego e transformados na «geração da casa dos pais» (em Portugal a sua situação é dramática), são «800 projectos de investigação em que os israelenses estão envolvidos e o seu valor chega a qualquer coisa como 4.300 milhões de euros entre 2007 e 2013». São textos como esta entrevista que tornam impossível a partir de agora os jornalistas, nomeadamente os portugueses, dizerem «eu não sabia»… Agora já sabem.


Sara Irving (SR): Os seus antecedentes são principalmente os de um escritor sobre assuntos europeus e instituições. O que o levou a escrever sobre as relações entre a Europa e Israel e os palestinos? [N. do T.: David Cronin lançou há pouco o livro Europe’s Alliance with Israel: Aiding the Occupation [A Aliança da Europa com Israel: Ajuda à Ocupação]
 
David Cronin (DC): Um par de coisas. Em primeiro lugar, em 2001 eu estava em Israel e nos Territórios Palestinos Ocupados (TPO) numa «missão de paz» da União Europeia, pouco depois dos atentados de 11 de Setembro de 2001 nos EUA. Recordo, de modo particular, que fui a uma conferência de imprensa que Ariel Sharon [ex-primeiro ministro de Israel] deu no Hotel King David, em Jerusalém e fiquei surpreendido com a arrogância e a linguagem ofensiva que utilizou. Começou por dar-nos as boas vindas – recordo as suas palavras exactas - «à capital eterna do povo judeu durante os últimos 3.000 anos», de certo modo não reconhecendo que também a capital de duas outras grandes religiões monoteístas.
Falou da alegria que sentia cada vez que um atacante suicida se imolava, porque desta maneira os palestinos acabam consigo próprios no processo. Isso surpreendeu-me muito, e depois acusou a União Europeia (UE) de financiar o «terrorismo palestino», coisa que antes nunca tinha ouvido, e tudo aquilo era novo para mim.
Supus que era um pouco ingénuo, pensei que não há fumo sem fogo, e por último fiquei com a impressão que a UE estava a apoiar os palestinos. Nessa altura, Chris Patten era o Comissário das Relações Externas da UE, um «intermediário honesto», sempre a fazer finca-pé em que a UE fazia tudo o que era possível para continuar o «processo de paz», que a UE era o maior doador da Autoridade Palestina e estava a ajudar a desenvolver um embrionário Estado palestino.
Tomei muitas coisas num sentido errado. O meu ponto de inflexão foi muito mundano. Assisti a uma conferência organizada por um dos comités das Nações Unidas sobre a Palestina no Parlamento Europeu, em 2007, em Bruxelas, e aí assisti também a uma sessão que abordou a relação da UE com Israel. Essa foi a primeira vez que me dei conta da outra parte da história, quando foi fornecida toda a informação real sobre até que ponto a UE partilhava a cama com Israel.
Impressionou-me o facto de haver muita literatura – as obras de [Noam] Chomsky e outras – sobre a relação dos Estados Unidos com Israel. Aí decidi que se ninguém escrevia um livro sobre o assunto, teria que fazê-lo eu.

SI: Por trás das atitudes da Europa, qual é para si a maior «pressão»? No seu livro identifica vários elementos, a culpabilidade do Holocausto, o interesse económico ou a influência dos EUA. Quais são as principais forças neste jogo entre o capitalismo e as forças políticas?
 
DC: É uma combinação de coisas. Henry Kissinger disse uma vez que a UE nem sequer daqui a um milhão de anos poderia ser pode vir a ser um actor importante no Médio Oriente. Se não há dúvida que os EUA continuam a ser o grande jogador, e que continuam a sê-lo apesar do crescimento da China, a verdade é que a UE é o maior parceiro comercial de Israel e o maior doador da Autoridade palestina, pelo que em termos económicos tem enorme influência.
A ligação da UE a Israel baseia-se num acordo que entrou em vigor no ano 2000 e que, no seu artº 2º estabelece que o dito acordo está condicionado ao cumprimento dos direitos humanos. Os funcionários da UE defendem que a cláusula dos direitos humanos é uma aspiração, embora os legistas digam que é o que na UE se chama um «elemento essencial». É clara e juridicamente vinculativa, e há a obrigação por parte da UE de invocar esta cláusula e se for necessário penalizar Israel quando a não cumprir. Defendo que se trata de uma cobardia, não há vontade política de fazer frente aos israelenses nem ao poder hegemónico estadounidense nos assuntos internacionais.
Israel tem vindo a desenvolver relações cada vez mais estreitas com a UE e a NATO, instituições que partilham o mesmo pensamento estratégico que Israel, e que nalguns casos são as mesmas pessoas que estão a incrementar este processo. Tipzi Livni, quando era ministra das Relações Exteriores de Israel, deu-se conta que poderia ser um erro de Israel estar demasiado dependente dos EUA. Ela e os seus assessores tomaram consciência que havia outras potências emergentes no mundo. Conseguiram assinar acordos que melhoraram as relações de Israel com a UE e com a NATO ao mesmo tempo, em Novembro de 2008. Gabi Ashkenazi, o Chefe das Forças Armadas israelenses, visitou centros de operações da NATO em várias ocasiões, além de Israel ter participado em exercícios conjuntos com a NATO. Em Julho de 2010, alguns soldados israelenses morreram num acidente de helicóptero na Roménia [1]. Este facto mereceu muito pouca atenção da imprensa de referência, mas é um sinal de até que ponto Isreal eatá envolvida nos assuntos da UE e da NATO.

SI: Uma boa parte deste livro é sobre os benefícios de Israel com esta relação. Quais são os benefícios para a União Europeia?
 
DC: Essa é uma boa questão, porque é discutível que interesse realmente à UE uma amizade com Israel tal como está. Há uma escola de pensamento, e tenho alguma simpatia por ela, que defende que para a UE seria melhor esquecer-se de Israel e concentrar-se no desenvolvimento de relações mais estreitas com os Estados árabes. Mas os principais factores são as oportunidades empresariais e económicas.
Voltando ao ano 2000, de acordo com a agenda de Lisboa [2], a UE definiu como objectivo oficial converter-se na base informática da economia mundial. Mas para onde quer que vá a UE, os israelenses já o fizeram primeiro. A Intel está a desenvolver a próxima geração de chips de computadores nas suas instalações em Israel. Grande parte dos «sexy» da internet fizeram-se ali. Os israelenses dedicam cerca de 5% do seu PIB à investigação tecnológica, aproximadamente o dobro dos EUA. A Agenda de Lisboa definiu como objectivo 3%, mas na maioria dos casos não são cumpridos. Por isso o aspecto mais importante da relação da UE é a cooperação científica. Os israelense fizeram parte do Programa de Investigação Científica da União Europeia, desde a passada década de 90, e eu vi há dias alguns dados que mostravam que há 800 projectos de investigação em que os israelenses estão envolvidos e que o seu valor chega a qualquer coisa como 4.300 milhões de euros entre 2007 e 2013. Há um sentimento entre os funcionários da UE que tem de ter boas relações com os israelenses, porque estes estão muito avançados cientificamente. O outro lado da questão é que muito dos êxitos científicos estão intimamente ligados à ocupação. Como refiro no livro, Elbit [o fabricante de drones [avião não pilotado usado em bombardeamentos em Gaza N. do T.] e as industrias israelenses de aeronaves encontram-se entre os beneficiários das subvenções da UE à investigação científica. Do ponto de vista do contribuinte da UE estamos a ajudar a indústria de guerra israelense.
Na recente cimeira da NATO anunciou-se, pela primeira vez, um programa de defesa de mísseis com a cooperação da Rússia, ao que parece com a intenção de operar a partir de barcos de guerra dos EUA no Mediterrâneo. Que implicações tem tudo isto nas relações de Israel com a NATO?
Muitas. Se falarmos do que aconteceu com a flotilha de ajuda a Gaza, aquilo foi legalmente um ataque à Turquia. El Marmara Mavi era um barcop turco, a Turquia é um membro da NATO e depois do ataque pediu uma reunião de emergência desta organização [3]. Podemos imaginar qual teria sido a reacção se, por exemplo, fosse a Coreia do Norte que tivesse feito o ataque. Mas como foi Israel, ainda que tivesse havido uma declaração da NATO a condenar o ataque, não houve quaisquer outras repercussões. Tenho-me apercebido que, inclusive, continua a cooperação militar entre a Turquia e Israel, e a Turquia continua a utilizar armas israelenses nos seus ataques contra os curdos no norte do Iraque.
Em termos do novo conceito estratégico da NATO e do sistema de defesa antimísseis, houve muitas conversações que envolveram Israel. Sei que um grande número de funcionários da NATO foram a Israel e aí realizaram conversações no aeroporto, próximo de Telavive, sobre como vai Israel cooperar nesta nova estratégia. Israel desenvolveu uma grande quantidade de tecnologia na qual a NATO está muito interessada, como por exemplo a cúpula de aço para a protecção de mísseis de intercepção, pelo que os israelenses continuam na corrida e são consultados, e é perfeitamente concebível que tenham um papel directo na defesa de mísseis do novo sistema que tanto emociona os membros da NATO [4].
Os líderes, como Sarkozy, falam muito do programa nuclear do Irão, mas ignoram o de Israel. Você dá algum crédito à «opção Sanção», a teoria que diz que os países europeus estão bem conscientes da bateria de armas nucleares israelenses que poderiam destruir qualquer capital europeia, quase sem os europeus sem aperceberem? [5]
Por vezes há que dizer o óbvio, mas o problema, que infelizmente a maioria dos comentaristas omite, é que o grau de hipocrisia é incrível. Sabemos que Israel tem uma capacidade nuclear muito importante e nunca o escondeu. Diferentemente do Irão, não faz parte do Tratado de Não Proliferação Nuclear e também não permite inspecções às suas instalações nucleares., mas aos iranianos dizem-lhes que não podem desenvolver nenhuma capacidade nuclear ao mesmo tempo que sabemos que os israelenses já a possuem. É demasiado óbvia a moral dúplice. Ao mesmo tempo a «opção Sanção» está provavelmente na mente dos líderes da UE. Embora seja um assunto sobre o qual não me debrucei, eu não descartaria essa teoria.
Investigadores como Daoud Aamoudi em Stop The Wall colocou sérias dúvidas sobre as zonas industriais que estão a ser financiadas, supostamente como ajuda dos países europeus. As colónias israelenses já há muitos anos que estão a utilizar mão-de-obra palestina barata na produção de mercadorias destinadas à exportação. As zonas francas industriais no sul de África e na América Central trouxeram amiúde nefastas condições de trabalho e foram a origem de uma curta prosperidade, que durou até que um país concorrente baixe mais os seus padrões. È este o futuro que queremos ver na Palestina?
Temos que nos interrogar por que é que UE está tão interessada na promoção de Mahmud Abbas e Salam Fayyad [N. do T.: chefe do governo da Autoridade Palestina demitido por Abbas dia 14 de Fevereiro passado, na sequência dos protestos populares palestinos contra a Alta Autoridade e o seu governo]. A sua legitimidade democrática, na prática, é nula. O mandato de Abbas como presidente eleito terminou. A UE apresenta-se como defensora dos princípios democráticos que, com razão, dizem que os candidatos têm de cumprir determinadas normas, mas estas são esquecidas no caso dos territórios palestinos. Decidiu-se fazer caso omisso dos resultados de uma eleição democrática em 2006 porque os palestinos, segundo a UE e os Estados Unidos, votaram por um caminho errado».
O caso de Salam Fayyad é particularmente preocupante. Não é nada popular entre a sua própria gente, mas ele é encantador para o Ocidente. Temos que perguntar que é assim, e a única resposta que nos ocorre é que adoptou a doutrina neoliberal de pensamento que prevalece em Washington e Bruxelas. É um ex-empregado do Banco Mundial e do FMI e, como digo no livro, o documento que elaborou «Para um Estado palestino» enquadra-se no no tipo de programas que o FMI impôs em África na década de 80 do século passado e que tratou de impor pela força no meu país, a Irlanda [6]. Estamos a falar da diminuição de salários no sector público e da maioria das despesas excepto – significativamente – na despesa com segurança, e que pretende fazer do sector privado o motor do crescimento. A ideia para a Palestina é que esta se converta numa fábrica de Israel.

SI: O senhor escreveu para The Electronic Intifada sobre a participação da UE na formação das forças de segurança da Autoridade Palestina, supostamente como um programa para a construção do Estado. Que lhe parece a visão da UE sobre o que deve ser a Palestina? Estamos a falar de uma área muito pequena com estritas medidas de segurança e um regime económico neoliberal?
 
DC: Não tenho a certeza de que ainda se tenha de utilizar a palavra «visão». Não tenho a certeza que a UE tenha uma visão A «solução de dois Estados» é uma espécie de capa da UE, mas não acredito muito que haja uma análise séria do que isso quer dizer. Os acordos de Oslo, com todos os seus defeitos pelo menos fizeram com que se falasse de Gaza e da Cisjordânia como uma unidade, mas agora, para um palestino, é quase impossível movimentar-se nesses territórios, e Israel controla com mão de ferro a Cisjordânia, o que torna inviável a solução de dois Estados. Creio que, neste momento, os representantes da UE se escondem atrás da retórica. Não apresentam nenhum plano estratégico a longo prazo sobre onde querem ir, para além do fortalecimento das suas relações com Israel, à custa dos palestinos.
Devemos ter em conta que para a UE a força policial COPPS [a missão de treino da UE na Cisjordânia] é uma espécie de corpo precursor de uma força de polícia para um Estado palestino independente, mas estes rapazes não têm autoridade para prender os colonos israelenses nem para entrar na zona C [partes da Cisjordânia nas quais, devido aos Acordos de Oslo, Israel mantém o controlo de aplicação da lei, da construção e da planificação]. Mais de 60% da Cisjordânia está fora dos limites de acção desta força policial. Existem também uma enorme quantidade de razoáveis indícios de que a UE provas está a fazer vista grossa sobre os abusos exercidos pela polícia palestina. Há provas de torturas reunidas por organizações palestinas de direitos humanos, pelo que é bastante desagradável que a União europeia se apresente como uma ajuda benigna aos palestinos.

SI: Um dos problemas com os livros é a sua desactualização quando são postos à venda. Há algumas novidades importantes nas relações entre a União Europeia e Israel, para além das que revelou?
 
DC: A principal é que no Outono de 2010, Kathy Ashton, responsável da política externa da UE, recomendou que elevasse Israel á categoria de «parceiro estratégico». Todavia, não está claro o que isto significa, mas sugere que Israel teria a mesma importância que os EUA ou a China nas prioridades oficiais da UE. Ashton foi um desastre nas relações com Israel. Para sermos justos, devemos dizer importantes declarações sobre Jerusalém e a expansão aí das colónias israelenses, e sobre a pena de prisão do activista popular Abdullah Abu Rahmeh, que surpreenderam algumas pessoas. Além disto, os israelenses tratam-na com paninhos de veludo. Ashton visitou a Faixa de Gaza um par de vezes, mas recusou reunir-se com o Hamas e qualificou as visitas como meramente humanitárias, retirando-lhes importância e significado político. Pense-se o que se pensar do Hamas, ganharam umas eleições que foram reconhecidas como livres e justas por observadores políticos da UE em 2006. É inconcebível que Kathy Ashton visite um qualquer outro lugar do mundo e se recuse a encontrar com os dirigentes políticos locais. Este Verão, quando estava em Jerusalémdeu uma conferência de imprensa conjunta [o chanceler israelense, Avigdor] Lieberman e pelo único preso que mostrou preocupação, pelo menos em público, foi por Gilad Shalit [N. do T.: soldado israelense preso em 28 de Junho de 2006 na Faixa de Gaza]. Ignorou totalmente o facto de Israel prender todos os anos á volta de 700 crianças, na maioria dos casos por nada mais grave do que atirar pedras, e em muitos casos abusam deles nas prisões. Mas Kathy Ashton, não aprece estar interessada no abuso das crianças, mas está na sorte de um soldado que indubitavelmente deve ser tratado com humanidade e libertado, mas que era parte integrante das forças de uma brutal ocupação militar.

SI: O senhor termina o seu livro com o argumento que a União Europeia dá oportunidades aos defensores da soberania europeia. Quais as tácticas que pensa serem mais eficazes? Estão os deputados do Parlamento Europeu a agir erroneamente?
 
DC: Vou responder em primeiro lugar à segunda questão. Opus-me ao Tratado de Lisboa, mas uma coisa boa é que deu mais poderes ao Parlamento Europeu que, com todos os seus defeitos, é uma instituição eleita por sufrágio directo. No livro não entro em detalhes sobre isto, mas das três principais instituições da UE – o Conselho de Ministros, a Comissão Europeia e o Parlamento – este último foi o menos maleável. Apesar das fortes pressões, a maioria dos eurodeputados apoiaram o relatório Golgdstone sobre o ataque a Gaza em 2008-2009. Mais recentemente o Parlamento Europeu bloqueou um acordo técnico que tornaria mais fácil os bens industriais cumprirem com as normas da UE para a estandardização. É muito aborrecido e pouco atractivo, mas o Parlamento Europeu, ou melhor uma das suas comissões, fez perguntas incómodas e atrasou a entrada em vigor deste acordo.
É provável que não possam congelar todas as relações com Israel, mas o Parlamento pode dificultá-las. Definitivamente, é caso para os cidadãos da UE pressionarem os deputados do parlamento Europeu para que faça frente ao lobby israelense. Há grupos de pressão muito fortes a apoiar Israel, como o «Grupo de Amigos de Israel», que é uma aliança de partidos, pelo que é muito importante que o movimento de solidariedade com a Palestina enfrente este grupo de pressão, muito bem dotado de recursos e nada transparente, que tenta influir nas instituições chave.
Quanto à outra pergunta, creio que cruamente e de forma muito simples, as pessoas comuns não podem esperar que os seus políticos e os funcionários públicos tomem medidas contra Israel. É por isso que creio que se deve apoiar a campanha BDS [Boicote, Desinvestimento e Sanções]. Mas não devemos esquecer que é uma táctica, não uma estratégia total, u que temos de utilizar também outras tácticas. Israel investe muito tempo, energia e dinheiro a apresentar-se a si mesmo como «a única democracia do Médio Oriente», e o movimento de solidariedade com a Palestina tem de organizar todos os seus recursos para contrariar esta excelentemente montada propaganda.

Notas:
[1] “Tsahal in Romania“, Voltaire Network, 30 de julio de 2010.
[2] A estratégia de Lisboa, também conhecida como Agenda de Lisboa ou Processo de Lisboa, foi um plano de desenvolvimento para a economia da União Europeia entre 2000 y 2010.
[3] “Freedom Flotilla: The detail that escaped Netanyahu, Voltaire Network, 8 de Junho de 2010.
[4] “Le bouclier de l’invincibilité“, Réseau Voltaire, Nicolas Ténèze, 19 de Março de 2010.
[5] Israel aims its nuclear warheads at Europe, Voltaire Network, 11 de Março de 2010.
[6] Program of the Salam Fayyad Government, Voltaire Network, 26 de Agosto de 2009.

* Sarah Irving é escritora com várias obras dedicadas à Palestina. David Cronin, jornalista irlandês, é presentemente o correspondente da Inter Press Service, em Bruxelas.
Tradução de José Paulo Gascão

István Mészáros e a educação para além do capital

Escrito por Demetrio Cherobini   no Correio da Cidadania
 
Um clássico, um engodo e uma aposta: tal é o que se encontra na edição brasileira de A educação para além do capital de István Mészáros, lançado primeiramente em 2005 e depois em 2008, pela Editora Boitempo. O clássico fica por conta do próprio texto de Mészáros, uma proposta consistente, coerente e radical a respeito de como os revolucionários do século XXI podem orientar seus esforços no campo da educação, a fim de superar a dominação exercida pelo capital sobre o sócio-metabolismo humano e realizar a "comunidade humana emancipada". O engodo, destaque negativo da publicação, cabe inteiramente ao prefaciador do livro, Emir Sader, que, desgraçadamente, tenta desviar a atenção do leitor para preocupações e objetivos diversos dos que estão contidos nas formulações do pensador húngaro. A aposta, o que resta disso tudo, é a de que os trabalhadores saibam ter a postura crítica necessária para perceber e superar as mistificações ideológicas que proliferam em nossos dias – até mesmo em torno das publicações progressistas - e tentam lhes perpetuar na condição de acomodação, entorpecimento e paralisia frente ao seu inimigo visceral.
 
Desde A teoria da alienação em Marx, escrito na década de 1960, até seus textos mais recentes, como O desafio e o fardo do tempo histórico, de 2007, o ponto-chave que orienta a reflexão filosófica de Mészáros é a realização da transcendência positiva da auto-alienação do trabalho. O mesmo se dá, evidentemente, em A educação para além do capital, concebido originalmente como uma conferência a ser proferida no Fórum Mundial de Educação, na cidade de Porto Alegre, em 2004. Nesse contexto, pode-se dizer que a crítica radical da alienação é o elemento decisivo para se entender não apenas a proposta, discutida nesse livro, de "contra-interiorização" da realidade histórico-social, que precisa se dar em ambientes formais e informais de aprendizagem, mas da teoria social e política do filósofo húngaro em sua totalidade.
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Sem compreender isso, qualquer empreendimento que vise elucidar criticamente as proposições de Mészáros sobre as formas – atuais e vindouras - de mediar o sócio-metabolismo humano fica tremendamente prejudicado. A educação é importante para um projeto político-social alternativo porque a superação da alienação só pode ser feita por meio de uma atividade autoconsciente. Esta é, pois, a condição para passarmos de uma situação onde nos encontramos completamente fragmentados, cindidos, diminuídos, submissos às nossas próprias criações materiais e estranhos em relação aos nossos semelhantes, para uma outra, na qual poderemos nos desenvolver ao máximo e nos tornarmos ricos no sentido qualitativo da palavra: sujeitos que sentem intimamente a carência de uma multiplicidade de manifestações humanas de vida (Cf. Marx).
 
Mas quem lê desavisadamente o prefácio à edição brasileira de A educação para além do capital é induzido a crer que as preocupações de Mészáros são as mesmas de Sader, a saber: como fortalecer a esfera pública em contraposição ao domínio do privado. Vejamos, nesse sentido, o que afirma o politólogo brasileiro: "Talvez nada exemplifique melhor o universo instaurado pelo neoliberalismo, em que ‘tudo se vende, tudo se compra’, ‘tudo tem preço’, do que a mercantilização da educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os espaços educacionais em shoppings centers, funcionais à sua lógica do consumo e do lucro. O enfraquecimento da educação pública, paralelo ao crescimento do sistema privado, deu-se ao mesmo tempo em que a socialização se deslocou da escola para a mídia, a publicidade e o consumo" (Cf. SADER, 2005, 16).
 
Uma leitura atenta, contudo, vai nos mostrar que os termos de referência de Mészáros são completamente outros. Em primeiro lugar, porque não é o neoliberalismo que mercantiliza tudo – inclusive a educação -, e sim, em nosso contexto, o sistema do capital. Em segundo lugar, a questão realmente importante não é exatamente o "enfraquecimento da educação pública" em comparação com o crescimento do ensino privado. Ao colocar as questões desse modo, Sader tenta fazer-nos crer que a preocupação de Mészáros seria com um eventual fortalecimento do setor público em contraposição ao setor privado – seria, portanto, combater precipuamente o "neoliberalismo".
 
Mas o filósofo húngaro não é tão ingênuo assim e não mistifica dessa maneira o setor "público" (o Estado). Antes disso, está muito mais interessado em demonstrar como é o sistema do capital – e não somente o "neoliberalismo" -, com todas as suas contradições, incluindo-se aí o próprio Estado, que faz parte de sua base material e que deve ser superado em concomitância com esse complexo mais amplo no qual está inserido. A educação pode contribuir com esse propósito, desde que não se limite apenas ao âmbito formal de ensino – note-se, então, que não se trata de colocar a questão em termos de "público" e "privado" - e se volte para a formação das mediações materiais não antagônicas de regulação do sócio-metabolismo humano. E isso só pode ser feito se a educação em questão for radicalmente crítica, isto é, articuladora teórico-prática de negação e afirmação no sentido da construção do socialismo ponto importantíssimo que nem sequer é tocado no curioso prefácio.
 
A preocupação de Mészáros, portanto, é em firmar uma educação revolucionária, e não meramente "pública" (ademais, em Para além do capital, o filósofo húngaro deixa bem claro que o objetivo dos socialistas é a socialização do poder de decisão sobre todos os âmbitos da atividade humana, e não a mera estatização das coisas – porque isto não elimina, em definitivo, o problema da alienação).
 
Em terceiro lugar, é um equívoco completo afirmar algo parecido com "a socialização se deslocou da escola para a mídia, a publicidade e o consumo". Na verdade, a socialização - isto é, o aprendizado das relações, normas e valores sociais, a internalização do mundo humano, a apropriação ativa das produções histórico-culturais - nunca poderia ter feito esse percurso porque ela é, na verdade, como a educação, "a própria vida", ou seja, se confunde com a própria vida, seja na escola ou fora dela. O referido prefácio, portanto, desvia o foco da nossa atenção para pontos que não são preocupações centrais de Mészáros. Constitui, na verdade, um tragicômico registro de um caso de prefaciador que apresentou como se fossem do prefaciado idéias que na verdade não lhe pertenciam (acreditamos que mistificação seja um termo bastante apropriado para designar o sentido desse tipo de operação intelectual).
 
A educação para a superação da alienação é, de acordo com Mészáros, a que se insere conscientemente na luta de classes. Aí, ela se desenvolve a partir da adoção crítica de um ponto de vista estruturalmente antagônico em relação ao sistema do capital. Essa nova práxis compreende tal perspectiva, os interesses que lhe são inerentes, articula-os em torno de uma ideologia capaz de proporcionar os devidos "estímulos mobilizadores" para as ações sócio-políticas da "classe com cadeias radicais" rumo à sua emancipação. É uma educação que está, pois, consciente de que só uma revolução pode libertar os trabalhadores da prisão configurada pelos processos alienados e alienantes de produção e reprodução do capital.
 
Nesse contexto, todas as mistificações sobre as relações dos homens com os produtos do seu trabalho, onde estes lhes aparecem como auto-constituídos e dotados de propriedades humanas, devem ser combatidas. A educação socialista é, por definição, uma educação desmistificadora dos processos atualmente estabelecidos de controle sócio-metabólico, realizados de acordo com as exigências do capital. É, pois, numa palavra, crítica radical dos fetiches de um sistema que vive de produzir fetiches – incluindo-se aí, evidentemente, o próprio fetiche do Estado.
 
O projeto socialista requer, assim, que nos orientemos a partir de um quadro estratégico adequado, de atuação nacional e internacional, com vistas a irmos para além do capital, e não meramente do capitalismo e seu regime jurídico garantidor da propriedade privada. A educação para além do capital é aquela que, concebendo-se como mediação indispensável, se integra conscientemente nesse projeto de transição que deverá fazer vir à luz uma sociedade capaz de proporcionar tempo disponível para a realização das potencialidades humanas. A educação é, portanto, na visão de Mészáros, parte de um projeto político-social - mediação coadunada com outras mediações - que precisa progressivamente negar a forma de sociabilidade atualmente cristalizada e afirmar uma alternativa viável em relação a ela. É esse movimento que constitui, pois, a crítica radical, a práxis revolucionária rumo à comunidade humana emancipada, a sociedade regulada pelos produtores livremente associados de que falava Marx.
 
É importante ressaltar tais questões, pois Mészáros volta a elas freqüentemente. É a crítica da ordem do capital que deve constituir a forma da educação transformadora. Isto exige uma ampla e profunda modificação de práticas e relações materiais – ou seja, dos sistemas de mediações atualmente estabelecidos -, que deve se dar com base no objetivo de transferir o poder de decisão sobre os processos sócio-metabólicos da humanidade para os produtores associados. Por isso, a reflexão sobre educação não pode se realizar meramente tendo-se em vista os ambientes formais de ensino, mas sim, sobretudo, as esferas informais de apropriação dos produtos históricos. Nessas duas "frentes de batalha", ela necessita se estabelecer como prática que é, assim como a revolução, auto-determinada e permanente.
 
O filósofo húngaro frisa constantemente que as formas de apropriação do mundo que o capital controla não se dão somente na escola ou na universidade, mas na vida como um todo. Por causa disso, a educação revolucionária não pode visar apenas os ambientes formais de ensino, mas sim se voltar para todas as outras atividades em que a interiorização ocorre, a fim de produzir uma contra-interiorização (ou contra-consciência) radical. Não mais hierárquica, fetichista, perdulária, destrutiva, e sim sustentável, cooperativa, consciente, emancipada, numa palavra, socialista. Por tal razão, uma educação alternativa só pode ser bem fundamentada se estiver amparada por uma teoria política concretamente produzida para fins específicos de confrontação de um determinado sistema de relacionamento social. Isto deve estar claro para os sujeitos envolvidos com atividades formais de ensino, pois eles necessitam ser capazes de fazer com que a sua instituição específica se abra para toda a sociedade, a fim de poder se articular com os movimentos materiais que visam superar a ordem do capital rumo à "nova forma histórica".
 
A teoria de Mészáros é, portanto, uma defesa intransigente e sem concessões de que as instituições de ensino e seus participantes – educadores, educandos, trabalhadores da educação, comunidade escolar – entrem numa relação dialética com os processos políticos e sociais que, em nosso tempo, visam à construção do futuro emancipado da humanidade. Isto não significa, contudo, que tal teoria não diga algo digno de poder ser utilizado para orientar ações dentro do âmbito da escola ou da universidade. Por exemplo: se a atividade organizada pelo sistema fetichista de exploração de trabalho excedente – isto é, o sistema do capital - é estruturada hierarquicamente, a prática superadora de tal conjunto de relações precisa se ordenar de modo diverso. Isto pode ocorrer tanto no que toca à própria estrutura institucional como no interior da sala de aula: um movimento progressivo de transcendência da forma da interiorização que se dá de acordo com a lógica do capital (hierárquica), para uma outra, não fetichista, horizontal, cooperativa, auto-determinada. É esse novo tipo de prática social que torna possível a generalização do pensamento crítico e a formação da consciência socialista de massa de que fala Mészáros.
 
Uma forma revolucionária de educação é, pois, segundo o filósofo húngaro, imprescindível para as classes trabalhadoras na sua luta contra o capital. Não uma educação que, impregnada de retórica mistificadora, contemporize com interesses escusos de partidos que desejam se perpetuar nos postos mais altos do Estado a partir de uma engenharia política hábil na conciliação entre as classes. Não uma educação que se dê meramente no âmbito "público", mas que seja capaz de criticar os próprios fundamentos da divisão entre o público e o privado. Não uma educação que fetichize o Estado, considerando-o como panacéia para todos os problemas, mas que combata suas contradições lá onde elas se enraízam. Finalmente: não uma educação apenas contra o setor privado, o neoliberalismo, o partido X ou Y, e sim uma educação contra o capital, suas personificações e seus ideólogos de todos os tipos - principalmente, os que exercem sua influência deletéria no interior da própria esquerda...
 
Ficha
 
Título: A educação para além do capital
Autor: István Mészáros
Editora: Boitempo
Ano: 2008 (2ª edição)
Páginas: 124
Preço: R$ 25,00
 
Sobre o autor: István Mészáros nasceu em Budapeste, em 1930. Em sua juventude, trabalhou em fábricas de aviões, tratores, têxteis, tipografias e até no departamento de manutenção de uma ferrovia elétrica. Aos dezoito anos, graças ao fato de haver se formado com notas máximas, ganhou uma bolsa de estudos na Universidade de Budapeste, onde pôde conhecer o filósofo György Lukács, de quem foi grande amigo e discípulo. Da Hungria, Mészáros foi para a Itália, onde trabalhou na Universidade de Turim. A partir de 1959, seu destino foi a Grã-Bretanha, onde lecionou em vários lugares: no Bedford College da Universidade de Londres (1959-1961), na Universidade de Saint Andrews, na Escócia (1961-1966), e na Universidade de Sussex, em Brighton, na Inglaterra (1966-1971). Em 1971, trabalhou na Universidade Nacional Autônoma do México, e em 1972 foi nomeado professor de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade de York, em Toronto, no Canadá. Em janeiro de 1977, retornou à Universidade de Sussex, onde veio a receber o título de Professor Emérito de Filosofia em 1991. Afastou-se das atividades docentes em 1995 e atualmente vive na cidade de Rochester, próxima a Londres.
 
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).

Esse é o nosso povo...

Impressionante a capacidade mostrada por John Lennon da Silva, dançarino de street dance em uma brilhante coreografia, feita por ele mesmo. E ainda tem gente daqui que despreza nossos jovens pobres, somente atribuindo a eles a desgraça das drogas, roubos e dos assassinatos.
É de emocionar!

Reflexões sobre a intolerância

“Aqueles que não conseguem lembrar do passado estão condenados a repeti-lo” (George Santayana, 1863-1952)

Nesta semana, assisti ao documentário Luz, Trevas e o Método Científico.[1] As imagens mostram guerras religiosas, perseguição à ciência, às mulheres e hereges. A história da humanidade é, também, a história da intolerância.A práxis humana é muito mais complexa do que a vã filosofia maniqueísta imagina. A aposta maniqueísta é interessada e consciente – ou ingênua. Os eventos históricos mostram que as coisas não são tão simples quanto parecem. O bem pode se converter em mal. Reduzir a práxis histórica a apenas duas cores é desconhecer a complexidade dos fatores subjetivos, interesses e práticas dos que fazem a História.
Luz, Trevas e o Método Científico relata a luta da ciência contra a intolerância religiosa e política. Historicamente, a intolerância está presente na esfera das relações humanas fundadas em sentimentos e crenças religiosas e laicas. É uma prática que se autojustifica em nome de Deus – e/ou ideologias – e adquire o status de uma guerra de deuses encarnados em homens e mulheres que se odeiam. Heinrich Mann, em A Juventude do Rei Henrique IV, fornece uma descrição que permite visualizar seus efeitos:
“Mas no país inteiro também se incendiava e matava em nome das crenças inimigas. A diferença das crenças religiosas era levada profundamente a sério, e transformava as pessoas que normalmente nada separava em inimigos extremados. Algumas palavras, especialmente a palavra missa, tinham efeito tão terrível que um irmão tornava-se incompreensível e de sangue estranho para outro”. [2]
José Saramago denominou este ódio recíproco como “O Fator Deus”. [3]
Na Idade Média, a intolerância religiosa se intensificou contra os judeus,as mulheres e os heréticos. “Os inquisidores caçavam dissidentes e os obrigavam a abjurar sua “heresia”, palavra que em grego significa “escolha”, escreve Armstrong. A Inquisição na Espanha forçou os judeus à conversão ao cristianismo e, finalmente, expulsou-os. Esta se tornaria uma prática comum em outras épocas e nações. Com a identificação entre religião e política, a perseguição aos dissidentes foi intensificada e motivada pelos interesses políticos em disputa. A inquisição espanhola foi usada para “forjar a unidade nacional”. Mas a utilização deste recurso não se restringiu ao catolicismo romano. Como relata Armstrong: “Em países como a Inglaterra seus colegas protestantes também foram implacáveis com os “dissidentes” católicos, tidos igualmente como inimigos do Estado”. [4]
Com a formação e consolidação dos Estados nacionais modernos, a intolerância vincula religião e política, identificando uma à outra. O herege religioso é visto como um desafiante da ordem política monárquica; o dissidente político é encarado como um desafiador do dogma religioso adotado pelo Estado-nação. [5] A política terminaria por impor a sua autonomia em relação ao poder religioso. Então, a intolerância tomou a forma de lutas ideológicas.
Maquiavel já anunciara este caminho quando, ainda no renascimento, advogou que os fins justificam os meios, em outras palavras, que a razão do Estado deve se impor a despeito dos meios utilizados. Nestas condições, o problema para Maquiavel não está em usar a violência, mas em saber usá-la, na intensidade certa e no momento oportuno. Em defesa do florentino, observemos que trata-se da construção do Estado e das necessidade deste expressar a autoridade soberana e absoluta. Thomas Hobbes retoma este tema no século XVII, com a defesa de um Estado absolutista, o Leviatã, ao qual submetemos a nossa liberdade. As liberdades dos súditos ficariam restritas aos interstícios onde o soberano não alcança, no mais ele é absoluto. Estes autores expressam a idéia de que o poder político não deve admitir concorrentes, ou seja, o poder político deve ser autônomo em relação ao poder religioso.


[1] O vídeo está dividido em sete partes e disponível a partir do link http://www.youtube.com/watch?v=G0oImVekJzg. Acesso em 11.02.2011.
[2] MANN, Heinrich. A Juventude do Rei Henrique IV. São Paulo: Editora Ensaio, 1993, p.11. Esse período de intensas guerras religiosas envolvendo o continente europeu, que gerou barbáries como a Noite de São Bartolomeu (1572), também é tratado no romance A Rainha Margot, de Alexandre Dumas.
[3] SARAMAGO, José. “O Fator Deus”. Folha de S. Paulo, 16.09.2001. (Publicado também in: Revista Espaço Acadêmico, n. 05, outubro de 2001)
[4] ARMSTRONG, Karen. Em Nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p.24.
[5] Dessa forma, “a intolerância religiosa assumiu formas especialmente virulentas, porque se julgava que a solidez do poder absoluto do rei dependia da aplicação do princípio de que a religião do povo deveria ser a religião do príncipe. Desencadeadas por um massacre de protestantes ocorrido em 1562, as guerras de religião da França se caracterizaram por atrocidades sem precedentes, como a matança de São Bartolomeu (25 de agosto de 1572), e só terminaram mais de 20 anos depois, quando Henrique 4º assinou o Edito de Nantes, concedendo liberdade de culto aos protestantes (1598). Mas a longa história da perseguição à religião reformada ainda não havia terminado, pois em 1685 Luís 14 revogou o Edito de Nantes, o que levou à demolição dos templos, à proibição das assembléias e à emigração forçada de cerca de 300 mil protestantes. Mas estes eram tão intolerantes quanto os católicos”. ROUANET, Sergio Paulo. “O Eros da diferença”. Folha de S. Paulo, Caderno Mais, 09.02.2003. (Publicado também em: Revista Espaço Acadêmico, n. 22, março de 2003).

Maria Gadú TUDO DIFERENTE

Levantes populares: do Oriente Médio ao Meio Oeste


Há apenas algumas semanas, a solidariedade entre jovens egípcios e policiais do Wisconsin, ou entre trabalhadores líbios e funcionários públicos de Ohio, seria algo inacreditável. O levante popular na Tunísia foi provocado pelo suicídio de um jovem chamado Mohamed Bouazizi, universitário de 26 anos de idade, que não encontrava trabalho em sua profissão.Nos conflitos que vemos hoje em Wisconsin e Ohio há um pano de fundo semelhante. A “Grande Recessão” de 2008, segundo o economista Dean Baker, ingressou em seu trigésimo mês sem sinais de melhora. O artigo é de Amy Goodman.


Cerca de 80 mil pessoas marcharam no sábado passado ao Capitólio do estado de Wisconsin, em Madison, como parte de uma crescente onda de protesto contra a tentativa do flamante governador republicano Scott Walker, não só de acossar os sindicatos dos servidores públicos, mas de desarticulá-los. O levante popular de Madison ocorre imediatamente em seguida aos que vêm ocorrendo no Oriente Médio. Um estudante universitário veterano da guerra do Iraque, levava um cartaz que dizia “Fui ao Iraque e voltei a minha casa no Egito?”. Outro dizia: “Walker, o Mubarak do Meio Oeste”.

Do mesmo modo, em Madison, circulou uma foto de um jovem em uma manifestação no Cairo com um cartaz que dizia: “Egito apoia os trabalhadores de Wisconsin: o mesmo mundo, a mesma dor”. Enquanto isso, em uma tentativa de derrubar o eterno ditador Muammar Kadafi, os líbios seguem desafiando a violenta ofensiva do governo, ao mesmo tempo que mais de 10 mil pessoas marcharam terça-feira em Columbus, Ohio, para se opor à tentativa do governador republicano John Kasich de dar um golpe de estado legislativo contra os sindicatos.

Há apenas algumas semanas, a solidariedade entre jovens egípcios e policiais do Wisconsin, ou entre trabalhadores líbios e funcionários públicos de Ohio, seria algo inacreditável.

O levante popular na Tunísia foi provocado pelo suicídio de um jovem chamado Mohamed Bouazizi, universitário de 26 anos de idade, que não encontrava trabalho em sua profissão. Enquanto vendida frutas e verduras no mercado, em repetidas oportunidades foi vítima de maus tratos por parte das autoridades tunisianas que acabaram confiscando sua balança. Completamente frustrado, ele ateou-se fogo, o que acabou incendiando os protestos que se converteram em uma onda revolucionária no Oriente Médio e Norte da África. Durante décadas, o povo da região viveu sob ditaduras – muitas das quais recebem ajuda militar dos EUA -, sofreu violações dos direitos humanos, além de ter baixa renda, enfrentar altas taxas de desemprego e não ter praticamente nenhuma liberdade de expressão. Tudo isso enquanto as elites acumulavam fortunas.

Nos conflitos que vemos hoje em Wisconsin e Ohio há um pano de fundo semelhante. A “Grande Recessão” de 2008, segundo o economista Dean Baker, ingressou em seu trigésimo mês sem sinais de melhora. Em um documento recente, Baker diz que devido à crise financeira “muitos políticos argumentam que é necessário reduzir de forma drástica as generosas aposentadorias do setor público e, se possível, não cumprir com as obrigações de pensões já assumidas. Grande parte do déficit no sistema de aposentadorias se deve à queda da bolsa de valores nos anos 2007-2009”.

Em outras palavras, os mascates de Wall Street que vendiam as complexas ações respaldadas por hipotecas que provocaram o colapso financeiro foram os responsáveis pelo déficit nas pensões. O jornalista vencedor do prêmio Pulitzer, David Cay Johnston disse recentemente: “O funcionário público médio de Wisconsin ganha 24.500 dólares por ano. Não se trata de uma grande aposentadoria; 15% do dinheiro destinado a esta aposentadoria anualmente é o que se paga a Wall Street para administrá-lo. É realmente uma porcentagem muito alta para pagar Wall Street por administrar o dinheiro”.

Então, enquanto a banca financeira fica com uma enorme porcentagem dos fundos de aposentadoria, os trabalhadores são demonizadas e pede-se a eles que façam sacrifícios. Os que provocaram o problema, em troca, logo obtiveram resgates generosos, agora recebem altíssimos salários e bonificações e não estão sendo responsabilizados. Se rastreamos a origem do dinheiro, vemos que a campanha de Walker foi financiada pelos tristemente célebres irmãos Koch, grandes patrocinadores das organizações que formam o movimento conservador tea party. Além disso, doaram um milhão de dólares para a Associação de Governadores Republicanos, que concedeu um apoio significativo à campanha de Walker. Então, por acaso resulta surpreendente que Walker apoie às empresas ao outorgar-lhes isenções se impostos e que tenha lançado uma grande campanha contra os servidores do setor público sindicalizado?

Um dos sindicatos que Walter e Kasich têm na mira, em Ohio, é a Federação Estadunidense de Empregados Estatais de Condados e Municípios (AFSCME, na sigla em inglês). O sindicato foi fundado em 1932, em meio à Grande Depressão, em Madison. Tem 1,6 milhões de filiados, entre os quais há enfermeiros, servidores penitenciários, seguranças, técnicos de emergências médicas e trabalhadores da saúde. Vale a pena lembrar, neste mês da História Negra, que a luta dos trabalhadores da saúde do prédio n° 1733 de AFSCME fez com que o Dr. Martin Luther King Jr. Fosse a Memphis, Tennessee, em abril de 1968. Como me disse o reverendo Jesse Jackson quando marchava com os estudantes e seus professores sindicalizados, em Madison, na semana passada: “O último ato do Dr. King na terra, sua viagem a Memphis, Tennessee, foi pelo direito dos trabalhadores negociarem convênios coletivos de trabalho e o direito ao desconto da quota sindical de seu salário. Não é possível beneficiar os ricos enquanto se deixa os pobres sem nada”.

Os trabalhadores do Egito, formando uma coalizão extraordinária com os jovens, tiveram um papel decisivo na derrubada do regime deste país. Nas ruas de Madison, sob a cúpula do Capitólio, está se produzindo outra mostra de solidariedade. Os trabalhadores de Wisconsin fizeram concessões em seus salários e aposentadorias, mas não renunciaram ao direito a negociar convênios coletivos de trabalho. Neste momento seria inteligente que Walker negociasse. Não é uma boa época para os tiranos.

Tradução: Katarina Peixoto