sexta-feira, 3 de julho de 2009

Obsolescência planejada: motor do consumismo

Osvaldo ferreira Valente

Lixão eletrônico em Guiyu, China. Foto : Basel Action Network BAN
Lixão eletrônico em Guiyu, China. Foto : Basel Action Network BAN

[EcoDebate] Tenho insistido, em vários artigos publicados aqui neste portal e em outros veículos, que a origem de todos os problemas ambientais está no consumismo da população que cresce a níveis insuportáveis para a capacidade de sustentação da Terra. Se o mundo, que luta pela manutenção da floresta amazônica, não demandasse tanta carne para consumo, não haveria porque o pecuarista se aventurar na região. Raciocínio simplista? À primeira vista pode ser, pois haverá sempre o contraponto de que é possível produzir mais carne sem expandir a fronteira agrícola. Mas já escrevi, aqui neste portal (Produtividade agrícola x conservação ambiental, em 19/05/2009), que o aumento de produtividade só pode ser conseguido, a partir de certo ponto, com procedimentos que têm custos ambientais. Nada neste mundo é capaz de ocorrer só com vantagens. As desvantagens estão sempre agregadas.

Um comportamento que deveria estar merecendo uma reação forte das Ongs ambientalistas é o uso do conceito de “obsolescência planejada”, ou seja, aquele que programa a fabricação de um produto com tempo de vida limitada, deixando já datado o novo lançamento, mesmo e quase sempre só com maquiagem ou com introdução de tecnologia supérflua para a maioria da população. E a propaganda vem forte, apelando para o “status” que será alcançado pelos usuários. Desta armadilha nem os pobres se livram, pois ela está camuflada em um grande número de produtos por eles consumidos. Daí vem o enorme consumo de plásticos para caixas de equipamentos eletrônicos, para os celulares que entulham as gavetas ou que vão para o lixo com baterias e tudo. E aqui a culpa não está no campo e nem na Amazônia, está nas cidades, pois elas são os templos do consumismo, do trabalho escravo, do desrespeito aos direitos elementares da cidadania etc. Nelas deveriam estar concentrada as preocupações das Ongs que lutam pela conservação ambiental. Mas como o trabalho aí é muito difícil, começando por comportamentos inadequados dos próprios membros de tais entidades, fica mais fácil e charmoso eleger os ruralistas do agronegócio como molduras para a nossa limpeza de consciência. Não quero dizer com isso que os ruralistas são santos, nem estou aqui para defender comportamentos meramente capitalistas, mas a expansão da soja, por exemplo, veio suportada pelo aumento do consumo. E consumo de quem? Principalmente dos países ricos, de onde vêm muitas Ongs que lutam pela Amazônia. Não há, neste caso, como não fazer a pergunta: não seria mais lógico que elas brigassem, em seus países de origem, para um consumo mais racional, pressionando menos o uso da terra para produção? Talvez assim as pequenas propriedades rurais fossem suficientes para a produção dos volumes necessários. Mas elas não brigam pela diminuição do consumo, mas pelo boicote do produto brasileiro. Fico preocupado, num mundo de busca desenfreada pelo lucro, se não há interesses econômicos por trás disso, como o uso das barreiras ambientais pelas corporações multinacionais ou pelos países dominados por elas. Já não duvido mais de nada, pois o capitalismo está muito além do horizonte avistado por nós.

O Henrique Cortez escreveu, recentemente, artigo falando sobre a necessidade de as Ongs reverem as suas maneiras de agir ( O ambientalismo é um movimento social?, em 29/06/2009). E eu concordo plenamente, pois acho que os problemas precisam ser atacados nos fundamentos que os sustentam. Se a obsolescência planejada induz a substituição de um bem por outro, mesmo que essa substituição não traga nenhuma mudança efetiva no serviço prestado, estamos apenas aumentando o consumo de alguma matéria prima retirada da natureza ou produzida com o seu desgaste. Aí está um campo espetacular de ação das Ongs, ou seja, mostrar à sociedade que ela está correndo o risco de cair em armadilhas do consumo, que se transforma em consumismo e que é ardilosamente preparado e programado. E veja que o marketing abusivo já começa a atacar o público infantil, conforme alerta o Instituto Alana, uma Ong que trabalha com o assunto e vem alertando para a estratégia de propaganda que visa transformar a criança numa aliada do consumismo. A obsolescência planejada começa pela conquista da criança e do adolescente, ligando produtos a pessoas famosas e explorando as fantasias próprias da idade ou até mesmo com aquela ideia simples, mas eficiente, de que com a novidade você vai ser admirado pelos colegas e amigos.

É no marketing da obsolescência planejada que está, hoje, uma das grandes razões do uso exagerado de recursos naturais e que está colocando a Terra numa condição acelerada de insustentabilidade.

Osvaldo Ferreira Valente é engenheiro florestal, especialista em hidrologia e manejo de pequenas bacias hidrográficas e professor titular, aposentado, da Universidade Federal de Viçosa (UFV); colaborador e articulista do EcoDebate ovalente{at}tdnet.com.br

Sobre o Irã...

Irã: será que o gato vai cair do precipício?




Escrito por Slavoj Zizek

Quando um regime autoritário se aproxima da sua crise final, sua dissolução normalmente segue dois passos. Antes do seu colapso real, acontece uma misteriosa ruptura: subitamente as pessoas sabem que o jogo acabou, deixam simplesmente de ter medo. Não é só que o regime perde a sua legitimidade; o seu próprio exercício de poder é entendido como uma impotente reação de pânico. Todos nós conhecemos a clássica cena dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício, porém, continua a andar, ignorando o fato de que deixou de existir chão debaixo das suas patas, mas só começa a cair quando olha para baixo e toma consciência do abismo: para cair, ele só tem de se lembrar de olhar para baixo...

Em Xá dos xás, um relato clássico da revolução de Khomeini, Ryszard Kapuscinski localizou o preciso momento da sua ruptura: num cruzamento de Teerã, um único manifestante recusou-se a mexer-se quando um policial lhe ordenou que andasse; embaraçado, o oficial simplesmente foi-se embora. Em poucas horas, toda Teerã soube deste incidente e, apesar de continuarem os combates de rua durante semanas, todos sabiam de alguma forma que o jogo acabara. Está acontecendo algo de semelhante agora?

Há muitas versões para os eventos em Teerã. Alguns vêem nos protestos a culminação de um "movimento de reformas" pró-ocidental, seguindo as características das revoluções ‘laranja’ na Ucrânia, Geórgia etc., uma reação laica à revolução de Khomeini. Apóiam os protestos como o primeiro passo para um Irã secular, liberal-democrático, livre do fundamentalismo muçulmano. São contraditados por céticos que pensam que Ahmadinejad venceu mesmo, que é a voz da maioria, enquanto o apoio a Moussavi vem das classes médias e da sua juventude dourada. Em resumo: deixemos cair as ilusões e enfrentemos o fato de que Ahmadinejad é o presidente que o Irã merece. Depois há os que desvalorizam Moussavi, como membro do regime clerical com diferenças meramente cosméticas em relação a Ahmadinejad: Moussavi também quer continuar o programa de energia atômica, está contra o reconhecimento de Israel e além disso contou com o pleno apoio de Khomeini como primeiro-ministro nos anos da guerra com o Iraque.

Finalmente, os mais tristes de todos são os apoiadores de esquerda de Ahmadinejad: para eles, o que está realmente em causa é a independência iraniana. Ahmadinejad venceu porque ergueu a bandeira da independência do país, expôs a corrupção da elite e usou a riqueza do petróleo para aumentar os rendimentos da maioria pobre - este é, dizem-nos, o verdadeiro Ahmadinejad atrás da imagem dos meios ocidentais de um fanático que nega o Holocausto. De acordo com esta visão, o que realmente está acontecendo hoje no Irã é uma repetição da derrubada de Mossadegh - um golpe financiado pelo Ocidente contra o presidente legítimo. Esta visão ignora fatos: a alta participação eleitoral - de 85%, muito mais que os habituais 55% - só pode ser explicada como voto de protesto. Mas também demonstra a cegueira diante de uma genuína manifestação da vontade popular, assumindo complacentemente que, para os atrasados iranianos, Ahmadinejad é suficientemente bom - eles ainda não estão suficientemente maduros para serem governados por uma esquerda laica.

Opostas como são, todas estas versões lêem os protestos segundo o eixo da linha-dura islâmica versus os reformistas liberais pró-Ocidente, e é por isso que têm tanta dificuldade para localizar Moussavi: ele é um reformador apoiado pelo Ocidente que quer mais liberdade pessoal e economia de mercado ou um membro do establishment clerical cuja eventual vitória não afetaria de qualquer forma séria a natureza do regime? Essas oscilações extremas demonstram que tais visões não conseguem ver a verdadeira natureza destes protestos.

A cor verde adotada pelos apoiadores de Moussavi, os gritos de "Alá akbar!" que ressoam dos telhados de Teerã na escuridão da noite, indicam claramente que os seus protagonistas vêem a sua atividade como uma repetição da revolução de Khomeini de 1979, como um regresso às origens, a reversão da recente corrupção da revolução. Este regresso às origens não é só programático; diz mais respeito ainda ao modo de atividade das multidões: a enfática unidade do povo, a sua abrangente solidariedade, auto-organização criativa, a improvisação das formas de organizar os protestos, a mistura única de espontaneidade e de disciplina, como na impressionante marcha de milhares em completo silêncio. Trata-se de um genuíno levante popular dos ludibriados partidários da revolução de Khomeini.

Há algumas consequências cruciais a retirar desta percepção. Em primeiro lugar, Ahmadinejad não é o herói dos pobres islamistas, mas um genuíno populista corrupto islamo-fascista, uma espécie de Berlusconi, cuja mistura de postura ridícula e rude poder político causa desconforto mesmo entre a maioria dos aiatolás. A sua demagógica distribuição de migalhas aos pobres não nos deveria iludir: atrás dele não estão só os órgãos da repressão policial e um aparelho de Relações Públicas bastante ocidentalizado, mas também uma forte e nova classe rica, resultado da corrupção do regime (a Guarda Revolucionária do Irã não é uma milícia da classe operária, mas uma megacorporação, o mais forte centro de riqueza no país).

Em segundo lugar, deveríamos traçar uma clara diferença entre os dois principais candidatos opostos a Ahmadinejad, Mehdi Karroubi e Moussavi. Karroubi é efetivamente um reformista, propondo basicamente a versão iraniana das políticas de identidade, prometendo favores a todos os grupos particulares. Moussavi é algo inteiramente diferente: o seu nome representa a ressurreição genuína do sonho popular que sustentou a revolução de Khomeini. Mesmo se este sonho era uma utopia, deveríamos reconhecer na genuína utopia a própria revolução. O que isto quer dizer é que a revolução de Khomeini de 1979 não pode ser reduzida a uma tomada de poder da linha-dura islamista, foi muito mais que isso.

Agora é o momento de recordar a incrível efervescência do primeiro ano depois da revolução, com a esfuziante explosão de criatividade social e política, experiências de organização e debates entre os estudantes e o povo comum. O próprio fato de esta explosão ter sido sufocada demonstra que a revolução de Khomeini foi um evento político autêntico, uma abertura momentânea que desencadeou forças desconhecidas de transformação social, um momento em que "tudo parecia possível". O que se seguiu foi um fechamento gradual através da tomada do controle político pelo establishment islâmico. Para usar termos freudianos, o movimento de protestos de hoje é o "regresso dos reprimidos" da revolução de Khomeini.

E, por último, mas não menos importante, o que isto significa é que há um genuíno potencial libertador no Islã - para encontrar um "bom" Islã não é preciso ir ao século X, temo-lo aqui mesmo, na frente dos nossos olhos.

O futuro é incerto - com todas as probabilidades, os que estão no poder vão conter a explosão popular, e o gato não vai cair no precipício, mas voltar a ter chão. Contudo, já não será o mesmo regime, mas apenas um poder autoritário e corrupto no meio de tantos outros. Qualquer que seja o desenlace, é decisivo ter em conta que estamos testemunhando um grande evento emancipatório que não cabe no enquadramento da luta entre liberais pró-ocidentais e fundamentalistas anti-ocidentais. Se o nosso pragmatismo cínico nos fizer perder a capacidade de reconhecer esta dimensão emancipatória, então nós, no Ocidente, estaremos efetivamente entrando numa era pós-democrática, preparando-nos para os nossos próprios Ahmadinejads. Os italianos já têm o seu nome: Berlusconi. Outros esperam na fila.

Slavoj Zizek é sociólogo, filósofo e crítico cultural. Pesquisador da Universidade de Ljubljana (Eslovênia).

Publicado originalmente em Support for the Iranian People 2009.

Tradução de Luis Leiria, editor do site Esquerda.net, de onde o texto foi retirado.