Brizola Neto no TIJOLACO
A repórter Marcelle Ribeiro publica uma pérola de matéria hoje, em O Globo,
que faço questão de reproduzir, na íntegra, com meus sinceros
aplausos. É o retrato da batalha pelos nossos “Corações e Mentes”, como
dizia o clássico documentário sobre a Guerra do Vietnã. A revista
americana Life - do famoso gruto Time-Life- fazia matérias
alardeando a pobreza brasileira, pelo nada nobre motivo de desqualificar
o país e se contrapor à ascensão da esquerda nacionalista brasileira. E
a resposta, na bucha, dos Diários Associados, que editavam a publicação
de maior circulação no país, O Cruzeiro.
A matéria só tem uma omissão, importantíssima mas compreensível, pelo fato de a repórter trabalhar onde trabalha. É não dizer que o grupo Time-Life, de tão preocupado que era com o controle ideológico do Brasil ter se associado a Roberto Marinho para erguer a Rede Globo de Televisão, que cumpriu – e cumpre – muito melhor este papel do que qualquer outro veículo de comunicação jamais fez.
A matéria só tem uma omissão, importantíssima mas compreensível, pelo fato de a repórter trabalhar onde trabalha. É não dizer que o grupo Time-Life, de tão preocupado que era com o controle ideológico do Brasil ter se associado a Roberto Marinho para erguer a Rede Globo de Televisão, que cumpriu – e cumpre – muito melhor este papel do que qualquer outro veículo de comunicação jamais fez.
Em plena Guerra Fria, disputa entre revistas ‘Life’ e ‘O Cruzeiro’ evidenciava preocupação dos EUA com avanço da esquerda no Brasil
SÃO PAULO – Uma grande revista americana expõe, em fotos que
ficaram famosas mundo afora, a miséria numa favela carioca. Para dar uma
resposta ao “imperialismo americano”, uma das maiores revistas
brasileiras revida, com uma reportagem mostrando a pobreza de uma
família num cortiço de Nova York. Foi o ponto de partida, em plena
Guerra Fria, para um debate ideológico, social – com direito a
arrecadação de fundos nos EUA – e de ética no jornalismo.
O ano era 1961, e os EUA nutriam preocupação crescente com o
avanço da esquerda na América Latina. A Casa Branca temia que o governo
de João Goulart transformasse o Brasil em uma nova Cuba. E os
brasileiros, incomodados com a ingerência americana na política
nacional, desejavam mostrar que a pobreza não era exclusividade daqui,
aconselhando os vizinhos do norte a olharem para o próprio quintal.
Essa história, que teve como protagonistas as revistas “Life” e
“O Cruzeiro”, é relembrada por uma nova pesquisa de Fernando de Tacca,
professor do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp,
que ganhou com ela o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia/Funarte, no ano
passado.
Tacca analisou a reportagem da “Life” que traz uma imagem do
carioca Flávio da Silva, 12 anos na época, alçado à fama ao ser
fotografado doente e deitado numa cama na Favela da Catacumba, na Lagoa.
Ele estudou, também, o revide de “O Cruzeiro”, a melhor revista
brasileira da época, que publicou pouco depois a manchete “Repórter
Henri Ballot descobre em Nova York um novo recorde norte-americano:
MISÉRIA”.
Flávio, símbolo da pobreza
Com o título “Uma família castigada numa favela do Rio. O
temível inimigo da liberdade: pobreza”, a “Life” de 16 de junho de
1961 apresentou ao mundo a história da família de José Manuel da Silva e
Nair Germana da Silva. Com oito filhos, o casal morava na comunidade
da Catacumba, que, após a remoção dos seus cerca de 10 mil habitantes
nos anos 70, deu lugar ao Parque da Catacumba.
Acompanhado do jornalista brasileiro José Gallo, o fotógrafo
americano Gordon Parks passou dias observando a vida da família de
retirantes nordestinos. Focou o seu olhar no menino Flávio, de 12 anos,
que, mesmo asmático, cuidava dos irmãos menores e das tarefas
domésticas.
Na reportagem, os Silva são apresentados como um exemplo de
pobreza que pode ser encontrada também em Venezuela, Chile, Bolívia e
Equador e que implica “perigo acentuado”. “Na maior parte aglomerados em
bolsões (…), largamente distribuídos nos morros das cidades, onde a
abundante pobreza se torna campo fértil para a exploração política
comunista e castrista”, disse a revista.
A reportagem sobre o Brasil foi a segunda de uma série de “Life”
sobre a América Latina. A primeira tratava da ascensão de Fidel Castro
em Cuba, com analogia às Ligas Camponesas brasileiras, lideradas pelo
então líder comunista Francisco Julião – que, do fim dos anos 50 ao
golpe militar de 1964, tentou implantar a reforma agrária no país, para
temor dos americanos. A terceira reportagem abordou a Bolívia.
- O objetivo ideológico da “Life” era alertar para o avanço dos
movimentos populares na América Latina e sua influência no sucesso da
Revolução Cubana – explica Tacca.
O pesquisador ressalta, também, a relação da reportagem com o
acordo conhecido como Aliança para o Progresso, tema de uma reunião dois
meses antes. Idealizada pelos EUA, e tendo como pano de fundo a Guerra
Fria, a Aliança previa investimentos na América Latina para promover o
desenvolvimento regional, tentando conter o avanço do comunismo e a
influência de Fidel Castro no continente.
Tacca explica que, para a “Life” e o governo americano, a pobreza
era o berço preferido da temida proliferação da ideologia esquerdista.
A reportagem sobre a Catacumba foi publicada numa época em que a
política externa brasileira preocupava os EUA, com os presidentes Jânio
Quadros e João Goulart – este último, derrubado pelos militares –
simpáticos a uma aproximação com países comunistas.
A reportagem de “Life”, publicada também na edição em espanhol,
comoveu os americanos, sensibilizados com a imagem do menino Flávio. Sua
fotografia foi publicada ao lado de outra, em que o corpo de uma
suposta vizinha do garoto jaz num caixão.
A revista organizou uma arrecadação de dinheiro nos EUA para
ajudar a criança, levada àquele país para fazer tratamento. A família do
garoto ganhou uma casa própria e mobiliada, fato noticiado por grandes
jornais brasileiros da época. A “Life” fez nova reportagem sobre a
recuperação de Flávio, que apareceu sorridente na capa da edição de 21
de julho de 1961, e a nova vida de sua família.
Mas a denúncia da miséria no Rio mexeu com “O Cruzeiro”. A
revista enviou o fotógrafo Henri Ballot para Nova York, com a missão
de mostrar que também havia miséria nos Estados Unidos. Na cidade, a
publicação mostrou, em fotos com ângulos semelhantes aos usados pela
reportagem da “Life”, a vida de uma família portorriquenha num cortiço
sujo e infestado por insetos e ratos. “A miséria não é exclusividade
nossa”, dizia o texto de 7 de outubro de 1961.
Como a rival americana, “O Cruzeiro” destacou a vida de um dos
filhos da família, Ely-Samuel Gonzalez, de 8 anos. “O seu corpo magro de
subnutrido é coberto de feridas, roído por baratas que invadem sua
cama cada noite”, escreveu, destacando uma fotografia em que o garoto
aparecia deitado coberto de baratas, em alusão à imagem de Flávio da
Silva na “Life”.
A reação de “O Cruzeiro” gerou um debate sobre a ética do
fotojornalismo. A revista “Time” publicou, poucos dias após a edição
brasileira, reportagem questionando a postura do fotógrafo brasileiro
Henri Ballot. Ele foi acusado de ter montado a foto em que Ely-Samuel
aparece dormindo com baratas no cortiço em Nova York.
A “Time” relatou o polêmico embate entre “Life” e “O Cruzeiro” em reportagem com o título “A imprensa: vingança carioca”.
“O fato é que a fotografia mais comovente de Ballot – a de
Ely-Samuel, frágil filho de 8 anos de Gonzalez, dormindo num colchão
imundo e com aparentes baratas em seu corpo – fora posada. O fotógrafo
capturou e distribuiu baratas com esse objetivo”, denunciou a “Time”,
que enviou repórteres para conversar com a família portorriquenha
retratada por Ballot.
A revista “O Cruzeiro” não contra-atacou a reportagem da “Time”.
“O que, de certa forma, é uma aceitação da versão americana”, escreve
Tacca na pesquisa.
Após fazer as polêmicas imagens sobre a miséria americana e ter
sua ética questionada pela “Time”, Ballot foi proibido de voltar aos
EUA, num momento de acirramento da Guerra Fria.”
As balas e as baratas, a rigor, se existiram, têm pouca importância.
Havia muito mais que ética jornalistica em disputa ali, como os anos
seguintes iam mostrar com o apoio à criação de um monopólio de mídia no
Brasil.